A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 2 – Arco 1: Dr. Yellow

Capítulo 5: O Descendente.

12/04/2002 13:00 da tarde

Castigado por um sol quente, Hector aguentava o calor da maneira que podia. Sua roupa preta não facilitava, ainda mais com a multidão e os prédios altos ao redor que impediam qualquer brisa de chegar até seu rosto suado. Apenas mais um dia normal no centro da cidade.

“Lucas Silva… Vamo vê onde esse cara tá.”

Incapaz de andar sequer alguns metros sem trombar em algum passante, ele aos poucos perdia a paciência que já era escassa.

Graças ao apressado Victor, o detetive de cartola procurava ansioso pelo letreiro que lhe foi dito em mensagem.

O Lucas trabalha no açougue Driboi. Tente ser gentil com ele, por favor.

Como se já não bastasse, por causa da imensa ansiedade em correr para o centro da cidade, acabou esquecendo seu caderno de anotações em casa. Mesmo com essa decepção, não tinha mais tempo a perder.

Hector tentava se concentrar, mas as propagandas eram tão altas que — além de incomodar — quase estouravam seus tímpanos. Perdido naquela selva de pedra dominada por animais sedentos por promoções, o rapaz seguiu em busca de sua loteria de informações.

Na maioria das lojas haviam adereços para o feriado que se aproximava, o Dia do Tarche, comemorado no dia 28 desse mesmo mês. Entre os chapéus customizados com chifres de cervo e um soco-inglês de plástico, algo que se destacava era uma espada dourada, um símbolo histórico que agora ocupava o espaço de um pequeno chaveiro.

Kanemuri. Por quase todo lugar que passava, aquele nome era citado no mínimo duas vezes. Não era de se esperar menos, visto que aquela tribo fazia parte das famosas lendas do 1° Colapso.

Hector teve uma memória vaga, sobre um assunto que leu em um livro alguns anos atrás.

A Kanemuri, de acordo com os registros históricos, não só foi a primeira comunidade humana a existir, como também tinha uma língua própria, ao contrário do resto do mundo que sempre falou português. O mais intrigante de tudo, era a fama deles de serem uma linhagem abençoada.

“Bem vago”, pensou o detetive. 

Porém, a última parte sempre atrai sua atenção. Linhagem abençoada não soava tão estranho, mas por mais que tentasse, não conseguia lembrar onde escutou aquilo.

Ele resmungou, incomodado. Não havia tempo para pensar naquilo no momento, pois quando olhou para cima, avistou mais adiante aquilo que procurava.

Num grande letreiro, o nome Driboi se destacava em meio a outras incontáveis propagandas. O rapaz ganhou um largo sorriso e foi até lá de imediato.

Em passadas ligeiras, rapidamente alcançou a fachada da loja. A marca era bastante conhecida, principalmente por fazer jus ao próprio slogan: “Driboi, driblando preços altos desde 1986.”

Hector deu uma curta averiguada, achando que o lugar seria maior. No fim das contas, era do tamanho de um açougue normal.

Apesar da fila não ser demorada, o detetive não tinha qualquer intenção de aproveitar as promoções. Ele passou por todos na maior tranquilidade existente, aproximou-se do balcão e então chamou:

— Estou à procura de Lucas Silva, me digam onde ele está.

Os funcionários encararam o rapaz com um olhar frívolo, limpando o sangue fresco de suas facas enquanto analisavam o garoto barulhento. Aquele que parecia o mais velho se aproximou.

Qual foi, menó? Seu tom era agressivo e impaciente. Ele encarava o da cartola com o cenho franzido e cansado, como se aquilo acontecesse todos os dias.

Por sua vez, Hector pegou algo em seu bolso e colocou contra o rosto do trabalhador, exibindo assim seu distintivo. O homem estalou a língua, retirando-se tão lentamente quanto uma tartaruga.

Ele se aproximou de uma porta e gritou: — Lucas! Tem um tira querendo te ver!

O homem então voltou a atender os clientes, deixando o investigador plantado no balcão por alguns segundos até que o suspeito surgisse.

— Bo-boa tarde, seu policial.

Um rapaz da mesma altura de Hector surgiu da ala dos fundos. A roupa e avental branco estavam cheios de sangue, os antebraços expostos e o rosto não mostrava um pingo sequer de cansaço. Seu sorriso chegava a ser reconfortante, mesmo na situação em que se encontrava.

Até onde era capaz de ver, Hector não encontrou um único corte no jovem, e sequer luva de proteção ele usava. Alguém com grandes habilidades de faca, com certeza. Curioso, fez uma rápida pergunta. Há quanto tempo ele trabalhava ali?

Ahaha! O jovem, acanhado, coçou a cabeça. Aquele era seu primeiro mês ali, então estava dando tudo de si para não ter de voltar ao antigo emprego, cujo ele comentou que não era muito rentável.

Por instinto, o detetive tentou pegar seu caderno, rangendo os dentes ao tocar o bolso vazio.

— Ei, você aí que deve ser o dono! Esse cara vai encerrar o expediente hoje, vou precisar dele.

Aquele mesmo velho encarou o investigador de canto, respondeu com um outro estalo de língua e continuou fatiando as peças de carne.

Acreditando que aquilo era uma espécie de “ok”, Hector encarou Lucas e, em tom de ordem, lhe disse para acompanhá-lo.

Ameaçado pelo olhar — e distintivo — daquele tira, a única opção do açougueiro foi trocar de roupa o mais rápido possível, e então passar a seguir aquele homem pelas ruas do centro da cidade.

— Se-senhor… O que exatamente busca comigo? E-eu tenho que encontrar uma outra pessoa ainda.

— Essa pessoa sou eu, tenho certeza. Agora cale a boca e me siga, cidadão.

Com os passos apressados, Lucas foi praticamente arrastado pelo detetive até uma praça não muito distante do açougue. Era bem grande, mas geralmente estava vazia, e não era diferente dessa vez. 

Os dois foram para uma pequena área com bancos de concreto, onde nem mesmo os deuses podiam enxergá-los, graças às árvores que tapavam completamente o céu.

Indicando o banco, Hector se sentou logo após a sua hesitante testemunha. Ao colocar seus braços sobre a mesa, Lucas lhe imitou.

— Jovem, um homem chamado Victor me disse que você sabia algo que poderia me ajudar. Diga-me, o que é?

Ah~! Uma mudança drástica ocorreu naquele rapaz. Toda a sua postura e semblante relaxou num instante, parecendo que era amigo de longa data do cartola. Então é você! Uma risadinha escapou.

Entretanto, o seu tom cômico não atingiu o investigador, cuja face travou numa ansiedade disfarçada pela testa franzida. Ao notar isso, o açougueiro teve um choque de realidade.

Gesticulando da maneira que podia, explicou sua relação com Victor. Eram amigos de longa data, mas isso não parecia ter convencido Hector. O investigador lhe encarava fixamente, absorvendo cada letra que saía de sua boca.

Quando terminou de explicar o que queria, Lucas finalmente alcançou o assunto que atraiu ainda mais da infinita atenção daquele detetive.

— O Victor comentou com você sobre… o perseguidor?

Antes mesmo de saltar no banco, Hector perguntou sobre. A resposta não foi tão surpreendente, estava falando da pessoa que Victor estava investigando há algum tempo.

O da cartola estava ciente. Seu colega procurava por um homem acusado de matar algumas pessoas de maneira, até então, desconhecida. Não parecia ter alvos únicos, sendo acusado de eliminar tanto agentes públicos quanto civis. Aparentemente, era apenas outro assassino como qualquer outro.

— O que isso tem a ver com a minha investigação?

Lucas hesitou novamente, várias vezes olhando ao seu redor um tanto preocupado, até enfim se sentir confortável para revelar entre alguns gaguejos. Ele estava sendo perseguido.

Em reação, Hector também procurou ao seu redor, mas não percebeu ninguém além de pessoas que caminhavam por aí. Enquanto batucava a mesa com rapidez, fez sinal para que o jovem prosseguisse.

O açougueiro o fez, dizendo que foi instruído a revelar isso por parte de Victor. Pelo que ouviu, o tal perseguidor estava buscando por pessoas especiais, ou algo do gênero.

Victor. Já não sabia mais o número de vezes que o nome de seu colega se repetiu naquela conversa. Com o que ele estava se envolvendo, afinal? Mas… pessoas especiais? Uma lâmpada piscou em sua mente.

— Especiais? Seja mais específico.

Hmm… Eu não lembro de ouvir esse termo, mas o seu parceiro me disse que os alvos desse cara eram aqueles com o… Fator B, eu acho.

Naquele instante, uma flecha de luz atravessou a cabeça de Hector. Era aquilo! Aquela era a palavra que tanto tentava se lembrar. Fator B, foi algo que ouviu na FESOL!

Lucas complementou, afirmando que pessoas com esse fator eram capazes de realizar feitos anormais, tanto em si mesma quanto ao seu redor. Mas logo em sequência, disse que não sabia muito sobre suas próprias capacidades.

A perna de Hector começou a se mover espontaneamente, os resmungos apareciam um atrás do outro e a mão não parava de coçar o queixo.

— Você sabe quem mais pode… ser uma dessas pessoas?

O açougueiro negou, e não parecia mentir. Seu corpo estava relaxado, a expressão era a de alguém que lanchava com um amigo de longa data e a preocupação de antes desapareceu. Alguém ficar tão calmo na frente de um agente que expunha a arma na cintura, com certeza não era normal.

Quando questionado sobre essa atitude, arregalou os olhos e encolheu de imediato, como uma criança repreendida.

Mesmo que o jovem estivesse mentindo, ainda assim havia sido útil. Uma outra lembrança surgiu na mente do detetive, levando-o de volta para uma ocorrência antiga que apareceu em sua agência certa vez.

Tsc! Hector lamentou-se, pois logo no dia em que mais teve informações, não tinha o caderno em mãos. Além disso, sabia que ninguém atenderia o pedido se pedisse para ficarem de olho naquele rapaz. Percebendo o quão solitário estava naquela situação, decidiu confiar apenas na própria memória.

Por fim, seu olhar firme caiu sobre Lucas uma última vez.

— Certo, antes de eu ir, tenho uma última pergunta. Eu não vou te delatar, te prender nem nada desse tipo, eu apenas quero a verdade. Não é pedir muito, né?

O garoto negou de imediato, com o olhar vagando entre os olhos do seu interrogador e a arma na cintura.

— Você não é um mero açougueiro, isso eu tenho certeza. Qual era o seu antigo emprego?

Lucas suspirou pesadamente, acreditando que seria capaz de sair daquele lugar sem ter de responder aquilo. Apesar da hesitação, ele parecia decidido. Victor nunca teria recomendado Hector se ele não fosse de confiança.

— Antes de ser açougueiro, eu trabalhava vendendo furos de reportagem, mas como eu disse, não me rendia muito dinheiro. Porém, enquanto eu trabalhava por lá, eu descobri algo que me chamou muito a atenção.

Com movimentos lentos, Lucas pegou algo no bolso da calça e colocou na mesa. Um total de três fotos reveladas.

Sério? Primeiro Victor com uma câmera Polaroid e agora Lucas com fotografias em papel? Estavam em pleno ano de dois mil e dois e aquelas velharias eram utilizadas?

Lucas não tardou em responder as reclamações. É mais seguro! E não estava errado. Não tinha como rastrear uma câmera antiga, muito menos um pedaço de papel.

— Seguro? Do que você tá falando?

— Já esqueceu? Eu acabei de dizer que tem um maluco me perseguindo!

Podia até ser isso, mas não era qualquer um que conseguiria acesso à tecnologia de rastreio, pelo menos, não na situação atual da nação. Que seja! Pensaria nisso depois, agora haviam pistas concretas bem na sua frente.

Com cuidado, Hector analisou as fotografias, incapaz de reconhecer o local. Elas foram tiradas de longe, com uma parte da lente sendo tapada por alguma coisa. Não era difícil perceber que foi algo feito na ilegalidade, mas não importava agora, pois o conteúdo era bem mais atrativo.

Parecia um campo de guerra, principalmente em razão dos vários soldados que marchavam em conjunto em diversas direções, todos fortemente armados. Ainda mais ao fundo, havia um muro alto — quase dez metros —, vigiado por mais militares e armas de fogo.

Onde? Ele sequer precisou perguntar, pois o semblante já falava por si só.

— O que você vê são fotos recentes da fronteira de Utopia.

A descrença surgiu no cenho do investigador, intensificada quando notou detalhes que comprovavam aquilo. Os uniformes tinham o brasão atual do exército — uma pomba branca carregando uma flor em seu bico —, esse que era trocado todos os anos, então não tinha erro.

“É realmente o mais recente. Eu já analisei incontáveis fotos... Não tem como isso ser falsificado. Mesmo assim…” Tudo apontava para um fato verídico, mas ainda assim, ele questionou: — Tem alguma ideia do que tá acontecendo na fronteira?

Apenas teorias. Duas palavras que viraram a mesa na mente do detetive, transformando a certeza na completa dúvida. Lucas afirmava sem parar que aquilo era real, vociferando que havia algo além das fronteiras que ninguém poderia sequer imaginar.

Hector tomou postura pensativa, e em nenhum momento desviou o olhar do açougueiro. Como exatamente ele chegou naquela conclusão maluca?

Dessa vez, não houve resposta. Ele então reafirmou, era apenas uma teoria, e cerrou o punho.

Hector massageou a testa ao passo em que uma dor de cabeça surgia. Mais uma vez, amaldiçoou-se por estar sem o caderno.

Com algumas poucas dúvidas respondidas, ele agora se encontrava ainda mais inquieto que antes. Porém, agora ele já tinha uma direção a seguir. Fator B… Não era a primeira vez que ouvia aquilo, e sabia que não seria a última.

— Ok. Eu já consegui o que eu queria. — Levantou-se, acenando em despedida. — Cuidado pra não tomar um tiro por aí, açougueiro.

Lucas resmungou e conteve um riso sem graça. Em baixo tom, retrucou:

— Eu não vou. Não é como se balas conseguissem me atingir.

Já longe demais para ouvir o jovem, Hector saiu da praça com um único objetivo, um certo local que acabara de se recordar.

Com rapidez, ele deu um novo passo em sua investigação, tornando as respostas que queria em alvos cada vez mais próximos. Porém, enquanto ele seguia ainda sem quaisquer ferimentos, uma outra pessoa tentava não ganhar ainda mais do que já possuía.

***

Em algum lugar perto do centro da cidade, num prédio de três andares, Victor se escondeu em um dos quartos mais altos. A porta não só foi trancada, como também barrada por todos os móveis que haviam por ali, exceto por uma cadeira, onde se sentava.

Já não visitava sua casa há tanto tempo que sequer lembrava onde era. Todo esse caos começou com uma simples ocorrência de desaparecimento, mas de alguma forma evoluiu para o agente sendo perseguido por pessoas que nem conhecia.

Com poucos dias de investigação, sua casa foi invadida e ele quase morto. Desde então, sua rotina tem sido uma fuga constante.

“Certo, vamos tentar mais uma vez!”

A única coisa que tinha em mãos era a velha câmera polaroid e a maleta onde a carregava. Uma máquina antiga, talvez uma das primeiras versões do modelo, mas com apenas alguns poucos sinais de degradação.

Ele cercou a câmera com a palma das mãos e forçou os membros, como um médium aplicando energia numa bola de cristal.

“Funciona... Funciona!!”

BAM! BAM! Batidas furiosas na porta tiraram-lhe a concentração e causaram um grande aumento em seu ritmo cardíaco.

“Essa coisa… A hora é agora! Se não funcionar, é o meu fim… É bom que você não esteja conspirando para a minha morte, Dr. Yellow!!”



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