A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 2 – Arco 3: Dia do Tarche

Capítulo 18: Planejamento

27/04/2002, 2 da tarde

Com a chegada da véspera do feriado, reconhecer aquela cidade era uma tarefa difícil.

Luzes verdes e vermelhas substituíam as dos postes. Pelo chão, pinturas da vida selvagem guiavam os passantes na direção do centro da cidade.

Nesse local, os preparativos finais mais pareciam a festa em si. Estátuas de papel machê se erguiam à quase cinco metros de altura, imitando a imagem de Cervos e de figuras humanas com tipagem de guerreiros indígenas.

A maioria, quiçá todos os estabelecimentos de Paradise estavam mais que no clima da comemoração. No entanto, ainda que o Hospital Santa Estrela não fosse uma exceção, a única coisa que Lívia atacava ao invés de uma bela pratada de Tarche apimentado era o teclado de seu computador.

Até pouco, o relógio marcava nove da manhã. O tempo passou rápido, mais do que normal, ela diria. E não apenas esse fator relativo, como vários outros pareciam ir contra o seu avanço na pesquisa.

"Que tipo de assunto ultrassecreto é esse? Eu não encontro absolutamente nada sobre ele!!"

Pela primeira vez em sua vida ela compreendia os sentimentos que Hector tanto reclamava. Talvez tivesse absorvido parte da infinita paranoia do detetive.

Não importava a fonte ou a maneira como procurava, a internet de algum jeito lhe arrastava para um assunto a léguas de distância daquele que pesquisou.

Era como se nada daquele tipo existisse, por mais que o chefe do hospital e ela mesma já tivessem adotado o fenômeno como algo tão comum quanto uma gripe.

"Manchas roxas, eu não encontro nada! Mas o veneno do Lírio Púrpuro é real… aparentemente."

Ainda que existisse um vídeo provando os efeitos do veneno citado, o incômodo constantemente presente na mente da garota lhe fazia ver o que não devia.

Na mesa havia diversas fotografias da sala de cirurgia e do corpo do marido da Vereadora Rose, sendo que a maioria das fotos foram adquiridas fora do contrato da médica.

As provas estavam bem ali, em sua frente, mas sua cabeça latejava na mais simples tentativa de conectar dois pontos naquele quebra-cabeça invisível.

As filmagens que teve acesso mostravam o esperado, imagens que ficaram gravadas em cada canto de suas lembranças.

O corpo da vítima escorria como gosma pela maca. A carne púrpura exalava um odor ardente que podia ser sentido através da tela, ao ponto de deixar a língua áspera em questão de segundos.

Nenhum gemido vinha do desfalecido, pelo menos ao que se lembrava da situação. O único som que preenchia a sala naquele dia era o estalar e quebrar de ossos decompostos.

"Um efeito tão extremo como aquele não é natural! Tem que haver outra explicação que não seja aquela flor… Um animal, talvez?"

Mesmo o guarda não sabia dizer corretamente o que havia visto nas câmeras. Falava que era um filme de terror, apenas.

"Nada faz sentido…!! Deve ser essa mesma enxaqueca que deixou aquele cara doido da cabeça."

Massageando as têmporas, não percebeu a porta do escritório se abrir.

Yo~! O cumprimento lhe tirou um suspiro, além de fazer uma veia saltar-lhe a testa.

— O que foi dessa vez, Igor?

— Uai, calma aí! Eu juro que não fingi mal-estar só pra conversar! O negócio dessa vez é sério.

Com um sinal de mão, ele chamou para dentro da sala aquilo que se tornou o foco da médica.

— Esse é aquele que você comentou? Albert, não é?

Um garotinho que aparentava entre oito e dez anos. Pele morena, cabelo negro e olhos caídos de mesma tonalidade. No geral, se diferia e muito de um nativo de Utopia.

Estrangeiro? A médica perguntou, respondida com um assentir de cabeça.

— Pelo que fiquei sabendo, o pai dele é de Santa Estrela, já a mãe mora em Solis.

— Os pais são de nações diferentes? Como ele veio parar em Utopia!?

Sua curiosidade era tanta que o olhar se tornou ameaçador ao ver da criança, que se escondeu atrás de seu novo pai.

Mas afinal, qual o motivo para Igor adotar uma criança?? Por vezes esse bombado comentava a falta de intenção em ter filhos, quem diria adotar um!

— Não me diga que… é por causa da semelhança entre vocês? — O receio em sua voz foi correspondido com o arquear de sobrancelha do rapaz.

— Ah! Entendi… — suspirou e desviou o olhar para um canto. — Não é por isso não. Na verdade, eu já deixei de me importar com esse fato.

— Hum… Tem certeza?

— Sim! Pode parecer estranho, mas foi como se minhas preocupações desaparecessem de um instante para o outro, na verdade foi literalmente isso! Haha!

Como médica, a vontade da garota era internar o colega imediatamente. Quem dera as preocupações sumissem como ele alegava.

Seu olhar caiu sobre Albert uma segunda vez. O rapazinho lhe fitava — ainda escondido — com uma curiosidade equivalente à sua, parecendo buscar resquícios de alguma coisa.

— O que foi, garoto? Quer um doce, por acaso?

Ela roubou um dos pirulitos que os dentistas deixavam por ali, oferecendo-o sem pensar muito.

Albert puxou o short de seu pai, apontando para a porta da sala em seguida.

— Quer ir embora? Certo, só um segundinho, filhote.

O atleta limpou a garganta com uma tosse falsa. — Sobre o feriado, eu queria saber se o Hector vai ou não.

— Ele…!? Espera, você também não sabe dele?

E algo aconteceu? Ele perguntava como se seus últimos dias tivessem sido dentro de uma caverna monótona.

— Eu não faço a menor ideia do que aconteceu com ele. Nem mesmo as informações que me pediu ele veio buscar! Simplesmente sumiu do mapa de um dia pro outro!!

Não era como se tal evento nunca tivesse acontecido antes, mas a duração do desaparecimento era de no máximo uma semana.

— Se souber dele, fala pra me encontrar no Escudo de Bronze durante a festa principal no feriado

— Qual o problema? Quer importar anabolizante de novo?

E-EU NUNCA FARIA ISSO!! Poderia negar o quanto quisesse, mas meras palavras não poderiam se sobrepôr à uma amizade de mais de dez anos.

Mas mesmo tamanha convivência, tantos momentos bons e ruins, ainda assim havia uma pequena lacuna vazia na estante de memórias da garota.

— Mas sério, qual é a do interesse no Hector assim de repente?

O rapaz coçou a cabeça, desviando o olhar de um lado para o outro constantemente até cair de forma inevitável na colega. Nada demais! Continuava afirmando com um balançar frenético de suas mãos.

A atenção de Lívia então caiu sobre a face mais séria que ali havia. Albert lhe encarava com afinco, ainda escondido atrás de Igor.

O olhar penetrante do pequeno mirava o seu com um foco inacreditável. Aquela pele negra e os olhos castanhos o tornava idêntico à Igor, realmente pareciam pai e filho.

Num erguer repentino de cabeça, ele perguntou: — O moço Hetor… onde… ele tá?

— Hum? Ah, não se preocupe com o “moço Hetor”, Albert. Ele é um colega do pai, nada pra se preocupar. — Com carícias na cabeça do filho, Igor buscou um complemento. — Certo, Lívia?… Hã~, Lívia?

Os olhos azuis da garota miravam o rapazinho. Algo em sua camisa chamava sua atenção, algo que os olhos de seu colega foram incapazes de enxergar. No fim, o único efeito que causou foi um arrepio na espinha do rapaz.

— E-eu acho melhor ir embora…! Va-vamos, filhote!

A criança se viu ser erguida para o alto repentinamente, se desequilibrando ainda que apoiada nos largos braços de seu protetor.

A mão de Igor caiu sobre a maçaneta e a girou. O corredor do hospital se revelava completamente vazio, como de costume na véspera de um feriado.

Imitando à Igor, um calafrio percorreu a espinha de Lívia. Dois olhares caiam sobre si, de direções diferentes, mas com a intensidade de uma besta.

Igor!! O grito repentino fez o rapaz girar o pescoço de uma vez. De canto, pôde ver a mulher suar frio enquanto o encarava fixamente.

— O-o que foi? — Seus braços pressionaram Albert, enquanto o corpo mantinha-se mirado para a saída.

Ela engoliu seco. — Eu vou… falar pro Hector sobre sua visita.

— Ce-cer… Certo! — Uma felicidade crescente tomou seu tom. — Eu tô indo agora, obrigado pelo favor!!

Fechou a porta em seguida, cortando de vez a troca de olhar que ela mantinha com Albert até o último instante possível.

Aquela sensação esvaiu-se pela metade, permitindo um alívio tomar seu peito. Porém, a paz durou muito menos do que imaginava.

O alerta de mensagens de seu celular tocou, fazendo seus dedos deslizar sobre o aparelho na mesma hora. Ao desbloquear a tela, lá estavam elas, mensagens pendentes de ninguém menos que Isaac.

Desculpa a demora, estava resolvendo umas últimas pendências pro dia.

Acho que não tenho como ir com você pro festival, pois vou ter que ajudar um colega com uma coisa durante a festa.

Se não se importar, podemos apenas nos encontrar no meio do evento depois que eu resolver essa questão.

O que acha?

Ok.

Uma boa resposta, em sua opinião, deixaria o rapaz se perguntando que tipo de erro terrível havia cometido.

Após adquirir o que queria, sua atenção finalmente pôde retornar ao computador na mesa.

Blocos de notas e guias do navegador guardavam desde informações básicas até as mais complexas teorias acerca do Lírio Púrpuro.

No entanto, um miar bem próximo lhe tirou das divagações. Assim que girou na cadeira, viu ele na janela que dava para o jardim de inverno à sua direita, um gato manchado lhe observando com cara mansa.

"Um gato dentro do hospital!? Só me faltava essa!"

Ela se preparou para apanhar o bichano, mas a porta do escritório se abriu antes que pudesse o fazer.

— Bom dia, Lívia — cumprimentou o diretor do hospital. — Vi que um gato havia invadido o prédio. Então ele estava aqui o tempo todo?

Ela o fitou caminhar até o animal. — Não sei, só cheguei a notá-lo agora.

Oswald abriu a janela e calmamente pegou o animal em seu colo, o qual se mostrou bem mais manso do que o esperado para um gato de rua.

— Eu pensei que tivesse te dado folga hoje. O que faz aqui?

— Resolvendo pendências.

Tecnicamente não era mentira, mas também faltava verdade para convencer aquele homem, sempre faltava.

— Você não pode fazer isso sem minha permissão. Além disso, é quase Dia do Tarche! Vá aproveitar com a família ou os amigos.

!? A insistência do homem fez sua sobrancelha arquear. Em que mundo alguém viciado em trabalho diria algo daquele tipo?

Seu olhar caiu na tela do notebook, desencadeando o rápido clique de seu dedo para fechar as abas de navegação antes que o Diretor desse a volta na mesa.

— Hum… Ta-talvez eu deva.

— Ah! E antes que eu me esqueça! Seu colega, Hector Wanderlust, vai aparecer no festival?

A pergunta lhe tirou um curto resmungo. — Por que quer saber dele?

— Ele foi diagnosticado com falha de memória uma vez, não é? Um ou dois anos atrás. E ainda apareceu meio alterado aqui semanas atrás. Em minha opinião, deveríamos interná-lo.

Argh! Ela suplicou internamente. Pelo menos com isso ambos concordavam.

— Ele não é do tipo que apareceria por vontade própria. Se quiser interná-lo, recomendo algumas viaturas para conseguir contê-lo.

Levantou-se, recolhendo seus pertences e indo em direção à porta. Podia sentir o olhar tanto do diretor quanto do felino cravados em suas costas.

A única pessoa que poderia lhe ajudar agora era Hector, mas sem ter ciência de sua atual localização, ela contava apenas com a sorte.

— Estou saindo. Até mais, Diretor!

Nenhuma despedida veio por parte do homem. De relance, foi notório o seu foco total na tela do notebook.

“Eu… fechei as guias, né?” Tivesse ou não, retornar até lá estava fora de questão.

Assim que a porta se fechou, a mensagem de aviso final tocou nos corações de cada um dos envolvidos naquela situação.

No ano de 2002, faltando apenas um dia para o feriado mundial conhecido como Dia do Tarche, a sirene de mudança tocava pela primeira vez em séculos, alertando todos que ainda pudessem ouvi-la sobre o evento que acabara de desencadear na, até então, pacífica cidade de Paradise.



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