A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 2 – Arco 4: Federação de Solum

Capítulo 38: Sonho Amaldiçoado

Junto do próprio corpo, o conceito de Pessoa escorreu para dentro dos ralos daquela sala de cirurgia, e pelo alto-falante ali retido, apenas um anúncio soou antes que o último médico se retirasse.

O indivíduo, Hector Wanderlust, está morto.

Enfim, Victor permitiu-se desabar ali mesmo, com uma das mãos apoiadas sobre a barreira de vidro e falhando em alcançar aquela triste massa corpulenta.

Observando o estado atual do homem, Alex se colocou de pé e iniciou:

— Perca de Humanidade, esse efeito foi observado em um certo local conhecido mundialmente, você sabe qual é. Para a nossa infelicidade, esse fenômeno também ocorre naqueles incapazes de aguentarem a EPC. — Sua mão foi até o ombro do soldado. — Me desculpe ter que fazê-lo ver isso, mas era necessário.

Necessário? Por que? Queria perguntar, mas se nem mesmo o corpo conseguia se mover, quem diria sua garganta. Seu olhar estava cravado naquele cadáver — ou o que sobrou dele. A cor ainda estava lá, vívida como nunca, e o cheiro de queimado transpassava o vidro com o único intuito de penetrar suas narinas.

Uma massa estufou-lhe o peito. Estava prestes a explodir! Fora, no entanto, contida. O gosto ranhoso era melhor que aquele captado no ar, quem sabe foi um jeito de seu corpo sobrepor o odor.

Alex se levantou, se pondo a encarar a mesma direção que Victor.

— Eles vão me procurar agora, avisando que o procedimento foi um fracasso. Não acho que eles vão tentar encontrar uma utilidade para o que sobrou do seu colega.

Apesar do tom leve, as palavras forçaram o corpo do soldado contra o chão. Cem, mil, talvez um milhão dos mais brutos pesos de academia lhe prendiam naquele ponto. A falta de lágrimas em seu rosto se tornou questionável. Talvez fosse pela falta de água, mas era inevitável o questionamento à sua própria humanidade naquele instante.

Se as gotas salgadas não saíssem, as colocaria para fora à força. Havia uma obrigação ali, uma forte sensação de dever a ser cumprido em prol do respeito daquele que se foi diante de seus olhos, que nem ajuda foi capaz de pedir.

Vamos!! O chamado de Alex não fora um convite. A mão do loiro caiu sobre seu braço, arrastando o peso morto junto de si até que este se levantasse por obrigação.

Um manequim, era literalmente isso que o Líder puxava por aquele novo corredor secreto. Uma simples existência que não observava, analisava, muito menos pensava por si. Fora uma eternidade de dois minutos, cessada ao abrir de uma nova porta que resultava no portão do inferno.

Era a sala de cirurgia. A barreira não mais os separava. Fora enfim possível um rápido (e hesitante) contato forçado por Alex.

Mole como gelatina, com textura ainda levemente áspera da pele e um intenso cheiro de carne mijada. Naquele instante, o nariz dos dois acabou atropelado por um rolo compressor, a boca salivou o máximo e apenas piorou a propagação daquele odor quente.

He-Hector…? Murmurou, e como esperava, nada recebera em troca além de um silêncio revelador.

A boca abria, querendo exprimir mais palavras, e fechava, contendo a invasão do gás tóxico saborizado. Abacaxi podre empapado. Ao invés de simplesmente vomitar, sentiu todos os seus intestinos se revirarem, procurando uma forma de escapar daquele fedor.

No instante em que dera passos para trás, querendo distância daquela gosma já inumana, a voz de Alex descendeu como um verdadeiro anjo; envolto em singelas trevas.

— Você quer trazê-lo de volta?

A reação, obviamente, fora um olhar de canto inicialmente despretensioso, confuso, buscando uma confirmação da real veracidade daquele argumento.

Não havia um sorriso, calma ou qualquer outra coisa no rosto branco. Os olhos azuis ainda brilhavam, mas de uma forma diferente. A seriedade se guiava não apenas para aqueles presentes na sala, alcançava também algo além dela, ainda escondido.

— Como eu disse — continuou —, não foi atoa que te trouxe aqui. Existe uma maneira de trazer a forma humana do seu colega de volta, mas claro, não é exatamente de graça, pelo menos não pra você.

Um giro sem medo se fez na direção do Líder, quem sabe um murro poderia vir junto também. Num ponto desses e queria entregar uma solução? Não fora ele mesmo a criar o problema? Que tipo de propaganda era essa!??

Bem, definitivamente uma do tipo que capturaria o cliente chamado Victor.

— Apenas me diga. O que exatamente eu tenho que fazer pra recuperar a vida do meu irmão?

Agora sim, o sorriso brotou como uma flor na primavera. Simples! Como havia dito, não seria de graça, mas Victor verdadeiramente não apresentou qualquer hesitação quanto a essa questão.

Alex iniciara uma explicação densa, abordando com profundidade pontos que pareciam totalmente irrelevantes, enquanto passava ligeiramente por pontos que aparentavam uma importância tão grande ao mundo quanto a própria vida do soldado.

Victor gaguejou: — Amuletos…? Que relação isso tem com o Hector?

— Os Amuletos são outros objetos de estudo. Nosso mundo é cheio dessas coisas, sabe, itens que te dão poder ou habilidades que sobrepujam a realidade cotidiana. Sinceramente, eu acho que já teríamos dominado o mundo se não fossem os perigos do oceano.

A ladainha continuou por mais alguns minutos, até que finalmente fosse atingido o ponto de interesse.

— A forma com que Hector pode retornar à forma humana não é através dos Amuletos. Vai por algo um pouco mais além deles, uma existência que ainda é um mistério para nós…

De dentro do seu jaleco branco, especificamente um dos bolso, ele tirou um item peculiar. Era a fonte daquela aura que Victor sentira anteriormente, agora intensificada ao revelar de sua face.

Tratava-se de um diamante um pouco menor que uma mão. Era semelhante ao vidro fosco, enegrecido por uma substância que parecia se mover entre o externo e o interno do objeto. E falando em interno, um líquido rubro minimamente denso ondulava a cada movimento, um oceano de gritos silenciosos.

— Esse item, além de desencadear efeitos que estão sendo analisados constantemente, possui a capacidade de comunicar-se diretamente com algo além do humano! — Ergueu o item acima de sua cabeça, em contemplação. — O nome desse item é…

Amuleto de Obscuridade

E aquele com o qual nos contatamos, pessoalmente eu o chamo de Encarnação do Poder. Alguns me questionam, mas me diga você. Alguém que só pode ser convocado por algo dito como “Encarnação da Morte” não poderia ter nome melhor? Não concorda comigo que aquele acima da própria morte detém a maior quantidade de poder?

Se sim ou não, eu não julgarei, o que importa é que ele existe.

E nós o apelidamos de

Dr. Yellow!

!! Um sentimento elétrico percorreu o corpo do soldado. A mera citação daquele estranho nome tomou a atenção de seu cérebro de uma forma que não pôde imaginar.

E mesmo com tamanho alerta que o destino lhe presenteara, recuar ou hesitar ainda mais estava longe de ser uma das atuais cogitações.

Estufou o peito e, longamente, expirou. — Qual é a condição?

Direto e reto, Alex respondeu: — Maldição…

— Todas as tentativas atuais resultaram numa espécie de maldição, onde essa figura tende a observar e, às vezes, até mesmo se manifestar fisicamente nas pessoas. Até agora não houve baixas causadas diretamente por ele, pelo menos até onde fomos capazes de descobrir.

A transparência de Alex era impressionante, beirando o assustador. Não hesitava em contar qualquer informação que pudesse (ou não) interessar Victor. Por um momento, os possíveis objetivos do Líder passaram pela cabeça do soldado, jogados para escanteio por sua própria prioridade.

— Eu aceito as condições! Vamos apenas fazer isso o mais rápido possível!

Vagou seu olhar até os restos de seu colega, fitando-o com um olhar esperançoso que acreditava ter sido motivo de uma curta tremulação na superfície de carne.

Alex comemorou com o alargar de seu sorriso e um concordar com a cabeça. Mas antes que Victor pudesse sequer pensar em buscar o Amuleto em suas mãos, levou uma das mãos à frente.

— Antes que você faça isso, Victor White, você se importaria se eu lhe pedisse para fazer uma outra coisa?

Ele arqueou uma sobrancelha, murmurando um Sim, meio confuso.

— É algo muito importante, então quero que preste bastante atenção…

Por mais que sua mente já estivesse cheia com preocupações gigantescas naquela hora, considerou justo escutar as palavras extras daquele que permitiu a desgraça e a esperança serem possíveis. Um homem misterioso, Alex ThunderGold.

 

***

 

Um ambiente negro, parcialmente avermelhado como o interior das pálpebras. Ao invés de veias, membros disformes rastejavam uns sobres os outros e, mesmo sem face aparente, murmúrios, lamentos e preces ecoavam em sua direção.

Não importava para onde olhasse, o pequeno círculo no qual estava isolado tinha caminho apenas para as trevas. Isso perdurou, no entanto, por um tempo curto que durava eternamente.

Os membros ondularam em divergência, abrindo um caminho largo para um local melhor iluminado. Tal luz, provinda principalmente das chamas, era ainda impedida de lhe alcançar por causa da barreira viva que ali se colocava.

À frente da montanha sorridente, um trono. Moldado por braços pretos e esqueléticos, de adultos a crianças, quiçá recém-nascidos, unidos por uma esperança já inexistente tanto no ambiente quanto no interior pútrido de cada um deles.

Eles pensam que eu sou um tipo de “gênio da lâmpada” agora?

Sortudos eles. Raiva, angústia, até mesmo felicidade. Não me lembro da última vez que as senti.

Uma voz em tom cômico proveio daquela mesma direção. Ele se aconchegava no trono, de pernas cruzadas e olhar afiado. Sua vestimenta era a própria escuridão, que mesmo ali, na sua mais poderosa forma, era incapaz de absorver a força; a eletricidade que emanava do estreito olho dourado.

Porém, ainda que seja algo próximo de mim, você ainda consegue aproveitar essas sensações.

De força e capacidades desconhecidas, tinha sua imagem temida até por quem desconhecia sua existência. Um medo intrínseco em cada ser vivo. Era isso que ele era. O instinto. Aquele cuja mágoa desperta medo no mais corajoso. A existência que sobrepujava a supremacia.

O lastimoso Pecador.

Por isso, observarei você a partir de agora, até que a morte nos separe…

Hector Wanderlust.

!! Abriu os olhos novamente, e incapaz de se levantar, pôs a vasculhar a região velozmente.

Claro!! Uma luz branca cegou-lhe no instante que olhara para cima. Logo que se acostumou, teve uma bela gratificação pelo feito.

Um rosto cansado, com olheiras que dominavam metade do rosto lhe recebeu com um sorriso que não dava para saber se era genuíno ou forçado.

— Fala… °tchê — disse °Victor, num° curto riso. — °Finalmente°… acordou?°

As bolhas de sono literalmente flutuavam ao seu redor. Há quanto tempo ele não dormia? Ou melhor, desde quando estava ali, no que identificou ser uma cama de hospital? A resposta foi adquirida com uma leve encarada na cômoda ao lado.

12/06/1999, 2:45 da madrugada

Se conseguisse se mover, teria dado um tapa naquele relógio retangular. Sequer lembrava ao certo quando desmaiou, mas isso não importava no momento.

— Vi… cto-r! — Forçou a voz, sentindo gosto de sangue na boca. — A-ma-re-lo… o-lho do… ra-do!

Seu colega não esboçou muita reação, limitando-se a um rápido afastamento. Tudo bem!, dissera logo em seguida, com o mesmo sorriso desde o início.

Tentou novamente procurar mais coisas ao redor, mas a vista limitava-se a um raio de talvez um ou dois metros. Cego. Não apenas de visão, sentia agora uma falta de perspectiva incapaz de ser descrita.

“Que se dane.”, pensou. Aquela sensação… ela poderia ser deixada para mais tarde. Tudo que importava agora era um bom, longo e… merecido descanso.

Seus olhos então fecharam novamente, incertos do local aonde iriam parar desta vez. Inferno, Paraíso, um outro Hospital? Não pensaria nisso até que acordasse novamente, isso se fosse acordar.

Felizmente, existiam pessoas capazes dar o veredito para essa questão, uma pena que era incapaz de ouví-las, assim como Victor, limitado ao espaço daquele cubículo completamente fechado.

— Ele acordou bem na hora, mas acabou dormindo de novo — disse Xeps, um tanto surpreso. — Aquilo que você disse… realmente é verdade, Sr. Alex?

— Hum? Ah, sim! É, eu aproveitei a oportunidade pra usar um composto novo nele, e no fim das contas acabou funcionando pra reverter o efeito do EPC. Por que? Por acaso tá duvidando de mim?

Xeps negou de imediato, desculpando-se das mais variadas formas possíveis (sério, faltou apenas lamber os sapatos do Líder).

— Enfim, não importa mais, certo? — Voltou sua atenção para aqueles dois, encarou fixamente por alguns segundos e, num tom pouco alterado, deu a ordem final. — Inicie o processo de “limpeza”, o pessoal da reabilitação cuida do resto.

SIM, SENHOR! Ele bateu continência e retirou-se a passos pesados, chamando outros engravatados que por ali estavam.

Alex permaneceu analisando a dupla. Um olhar enigmático, que atravessara o vidro e atraira a atenção do sonolento Victor para todos os cantos.

Por fim, uma intensa luz ganhou presença dentro daquela sala. Partia de cima, anunciava a chegada do que, para uns, era um anjo, mas para outros, não poderia ter outro nome além de...

— “Ocultar”. Hunf! Boa sorte, vocês dois.

E assim se fez. A luz dominou o quarto por completo e, consequentemente, o próprio tempo.

.

°

*

!!

DESGRAAAÇAAAAA!!

WOOAH!! Vindo de sua esquerda, o grito atraiu os olhos esmeralda de Hector para um homem atirado na areia. Pelo tipo, não passava de um banhista comum, acompanhado inclusive pela família que se colocava um pouco mais distante naquela estreita praia.

— E-ei, cara — levantou devagar, andando de joelhos até o detetive. — Você… tá bem?

Responderia, se pudesse, mas estava tão perdido quanto um cego num tiroteio. Vistoriou as mãos, os braços, o tronco, a cabeça… Estava realmente inteiro!?

O cidadão adicionou: — Você caiu do topo da montanha! Eu e minha mulher vimos você caindo por muito tempo! Mas não se preocupe, a ambulância já deve estar che—!!

Ergueu abruptamente. Sem alteração na visão. Estava leve como uma pena, na verdade, nunca em toda a vida sentiu-se daquela maneira. Uma sensação nova, como renascer ou voltar no tempo.

FESOL…

Fantoches…

Amuletos…

Dr. Yellow!!

Cada palavra trazia à tona uma verdade que sempre esteve ali, enjaulada dentro de sua própria cabeça. Uma revelação atrás da outra, e um novo ponto para seguir seguido de um objetivo final em constante aumento.

Gegege!

Era isso que chamavam de imortalidade? Talvez sim, talvez não. Naquele instante, apenas sabia que, independente de onde estivesse, Victor sentiria aquela crescente onda de mudança que Hector havia se tornado naquele mar de confusões inacabáveis.

Finalmente pôde se orgulhar. O relógio do celular marcava cinco para as duas da tarde, mas o de sua mente começara uma contagem regressiva para a aproximação do clímax de toda aquela investigação.

— É bom me dar boas explicações quando eu chegar até você… Alex!!!



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