Volume 1

Capítulo 12: COMPLICADO REVÉS

– Hã... você quer dizer que iremos agora? – Kai pousou sua xícara na mesinha.

Mael assentiu, sorridente.

– Que te impede de não começarmos já? – indagou, se levantando e limpando as pregas de suas vestes. – Ou você tem algo melhor pra fazer?

Pensando por esse lado, nada o impedia realmente. Só que algo o impedia sim, pensou.

– Como vai resolver meu problema se eu não consigo nem reter mana dentro do meu núcleo? Quero dizer, toda mana que eu tento acumular vaza igual peneira. É como se eu tentasse pegar água e mantê-la numa só mão. Nós sabemos que ela vaza entre os dedos e por brechas que nem nós mesmos conseguimos enxergar.

Mael olhou para Abwn e depois para o garoto. Um sorriso calorento envolveu seu rosto.

– Vamos por partes, Kai. Você tem um certo... digamos que empecilho aí. Mas tudo o que você aprendeu será jogado no lixo.

– Que quer dizer com isso?

Ele piscou.

– Vamos ao campo.

Kai seguiu os anfitriões com um pé atrás. Quando lembrou das falhas tentativas na peleja de manter mana, sua animação evaporou.

Abwn sentou num tronco próximo de uma enorme árvore no quintal de sua casa. Mael ficou em pé de braços cruzados.

O jovem humano ficou os encarando, esperando a grande revelação.

– Que sabe sobre magia, Kai? – foi a pergunta feita por Abwn que o tirou de seu torpor.

Ele piscou, pensando com seus botões se teria realmente de reviver toda aquela baboseira de antes. Foram sete anos na escola monástica e mais cinco na academia para magos e bruxos. Que de tão importante esses vitanti poderiam ensinar a ele que já não soubesse?

Não pense assim repreendeu a si mesmo, Eles estão se empenhando em te ajudar; será mais do que você fez nesses últimos tempos, chorão.

Essa auto reprimenda não serviu muito, já que ele fez uma careta.

Mael notou.

– É necessário que eu saiba qual seu entendimento sobre mana, Kai. Ao contrário do que muitos pensam, eu e meu pai não somos deuses sabichões. Nossa família sempre foi feita de sábios e agnósticos, sim. Somos escolásticos, formados na arte do aprender e ensinar. Acredite, muitos já vieram e já foram buscando nossos ensinamentos; mas não somos advinhas.

É verdade, ele pensou. Lembrou de Plumrose e de seu conhecimento sobre o mundo humano. Se uma criança tinha tal conhecimento sobre um povo tão distante, seria de lógica evidente que sujeitos já feitos em sua plenitude também o saberiam.

Respirou fundo e fechou os olhos.

– Magia é uma manipulação de mana usada para controlar a realidade em que vivemos. Magia não pode ser feita sem a mana; a energia do ser vivo, do... do mundo.

– Correto. E como magia pode ser feita?

– Através de condutores e de uma bateria potente. A própria mana é uma bateria.

– E o que é mana?

– A energia que nos rodeia, a energia do ser vivo. Mana é o farfalhar das árvores, é o gotejar da chuva; é o ondear do mar. Mana é tudo e nós somos mana.

– Correto. Agora voltando aos condutores: pode citar alguns deles?

Kai assentiu.

– O núcleo mágico é o condutor mais usado entre os povos. Digo, ele é uma espécie de bateria, também. Ele bombeia nossa mana, ele a carrega, nos faz evoluir. Se um ser vivo não a tiver, não pode praticar mana.

Mael assentiu, mas não em sinal de concordância.

– Os outros condutores são varinhas, grimórios, cetros etc. Esse tipo de condutor é não-natural, ou seja, criado pelo ser vivo como uma forma de condução prática. Além de que eles ajudam na completude das magias. Há também runas e matizes, que são bem eficazes em magias mais longas que requerem uma concentração maior. Runas em específico são mais eficazes pra guardar ou prender algo. Há também selos e...

– Tudo bem, Kai. – Interrompeu Mael, que sorriu e olhou para Abwn, que limpou seus óculos com uma calma estonteante. – É o suficiente. Você mostra aqui uma quantidade exorbitante de conhecimento ao que se refere a magia. Tenho certeza que usava muito disso antes. Há, no entanto, uma coisa que você se equivocou.

– Que foi...?

– Está errado ao dizer que um ser vivo só pode praticar as artes da mana se tiver um núcleo. Quero dizer, não é totalmente inverídico, mas também não é totalmente correto afirmar. O núcleo é sim uma bateria, um condutor natural..., mas, sem ele, o ser vivo tem sim a capacidade de manipular mana. Ninguém nasceu com a bunda virada pra lua, Kai. Todo o ser vivo, seja ele humano, elfo ou anão, pode e tem o direito de manipular mana. É como você disse: mana é tudo e nós somos mana.

As engrenagens de Kai começavam a girar. Um breve pensamento lhe arrebatou; será que ele podia voltar à prática de manipulação de mana... será que, com trabalho árduo e eficaz, seria novamente feliz com tudo o que lhe foi tirado?

Mael, por sua vez, foi breve.

– Entretanto, você não poderá manipular mana outra vez. Sinto muito.

O rapaz ergueu o rosto, a felicidade esvanecendo.

– Mas... você disse...

– Sim, e estou certo nisso. Contudo, seria muito mais difícil ensinar a alguém que já tem uma prática constante com remos, a remar com os braços. Não tem como ir contra a maré!

– Não entendi...

– Muito bem – Mael suspirou. – Pra um melhor entendimento... Vocês humanos adotaram e se apegaram demais às práticas do núcleo. Botaram na cabeça que ele é o único capaz de os fazer forte e que, sem ele, não podem manipular magia. Isso está tão enraizado em você que seria um porre tentar desiludir sua própria mente.

“Seria mais fácil ensinar uma criança humana sem núcleo a usar mana do que um humano que sempre teve e o perdeu em seu amadurecimento. Não tem como mudar o curso das coisas. Não poderia te ensinar a manipular mana sem a presença de um condutor tão forte. Mas isso não quer dizer que você não possa manipular magia, Kai.”

O rapaz começou a ficar confuso: afinal, ele podia ou não podia fazer magia? Em dado momento, já não sabia nem se aquilo era real. Pareceu confuso demais para ele.

– Desculpe, Mael... estou tentando me manter focado, estou mesmo. É só que... nada faz sentido.

O vitanti sorriu. Ergueu uma mão e o ar começou a desfocar, como se um balão de fogo fosse materializar ali. Ele abriu e fechou os dedos, o ar ondulando. Agora seu sorriso era tão grande que todos os dentes branquíssimos podiam ser vistos.

– Mana vive em nós, Kai. O que quero dizer é que você não poderá manipular mana como habitualmente estava acostumado. O que quero dizer é: não existe apenas um tipo de fazer magia. O núcleo, ao meu ver, é só um revés, um empecilho que tira toda força do ser vivo. Mas, sempre podemos voltar para a parte do condutor, afinal, que melhor condutor do que o corpo do ser vivo?!

– Isso – Kai ergueu o rosto, os olhos brilhando. – significa que...

– Sem um núcleo, o ser vivo pode sim manipular magia. O núcleo, que é existente em todos nós, mas que toma características diferentes, não passa de um reforço. Não estou dizendo que o núcleo é inútil, existem magos realmente fortes dentre os homens que rivalizam com o topo da cadeia alimentar do mundo bruxo; não, o núcleo não é totalmente inútil, até porque ele serve como condutor, como você bem disse, que ajuda a conter, a pressurizar a mana; que sem ele, a mana provavelmente explodiria, como deve ter acontecido com você.

Inconscientemente, Kai levou a mão esquerda a mão direita. Tocou suas cicatrizes fundas e há muito curadas. Era de conhecimento de todos que o núcleo mantinha a mana sob controle; sem ela, a mana explodiria.

– Todavia, mana não é a única via para as artes mágicas.

– Como assim?

– Isso que você vê ondulando... que pensa que é?

– Manti? Quero dizer, nunca vi mana nesse formato antes.

– Está correto, mas só em partes – o ar voltou a se estabilizar em volta de sua mão. – Manti não significa somente mana, Kai. Manti quer dizer energia, vitalidade. A sua mana é tão condensada que só aprendeu a viver com o núcleo; e acredito que boa parte dos humanos vive com essa redoma. Mas o núcleo não é necessário quando se tem entendimento. Existem outras formas de utilizar a manti, Kai. Isso que viu agora era Éter.

Kai franziu o cenho. Lembrava vagamente da menção de Éter nos livros que leu durante a época de academia. Sim, faria todo sentido.

– E existem outros como esse tal Éter?

– Boa pergunta! – Mael riu. – Existe sim. Há a manipulação de mana, a manipulação de energia cósmica, manipulação de Nether, que age como uma contraparte do Éter; manipulação de energia vital, manipulação do Chaos. Tudo isso é manti, a energia que permeia o universo. Existem outros, é claro; mas tudo o que citei é só pra base de entendimento.

– Então você me ensinará a usar Éter? – indagou, surpreso. Achou magnífico o modo como os vitanti lidaram contra os gorilas de Pele-pétrea; e olha que ele teve a breve sensação de que os vitanti não tinham usado nem 1/3 das verdadeiras capacidades do Éter.

– Errado – respondeu ele, tirando toda a alegria de Kai outra vez. – Infelizmente, o uso de Éter iria te matar. Éter e Nether são as únicas energias que não podem ser usadas por qualquer um. Tem que ter um entendimento para além de suas capacidades para aprender a usar isso. Sendo um humano, você levaria o dobro de tempo que um vitanti, que aprende desde cedo, para manusear essa energia.

“Humanos, elfos, anãos... todos ruiriam ao tentar utilizar Éter sem entendimento prévio que, mesmo sendo parte de uma magia elemental, pode ser bastante perigosa. Mas o que admiro nos seres humanos é sua versatilidade. São, de todos os povos, os que mais se destacam no uso de magia. Sempre inovadores.”

– Que quer dizer com isso?

– Os outros povos se concentram somente num uso de magia, de manti. Os anãos, utilizam bastante a magia elemental da terra, que é necessário mana. Os elfos, magia elemental do ar, luz e manipulação de mana. Os dragões, usam a manipulação elemental como um todo, exceto, é claro, o Éter. Eu poderia citar todas as formas de magia que os outros povos podem usar. Mas o que quero dizer, é: vocês da raça humana têm a capacidade de usar incontáveis variações de mana, sempre mudando seu estilo. Porque está no seu ser e estão mais propícios com a energia de mana.

– Mas se não posso usar mais mana, o que...

– Calma, rapaz, chegaremos lá. Há um outro tipo de energia que pode ser usada. – Disse Abwn, puxando um cachimbo e colocando uma erva bem cheirosa. Depois bateu com o indicador e deu um longo trago. O cachimbo acendeu.

Kai suspirou, espantado com a praticidade do velho vitanti. Parou para pensar em suas palavras; se era verdade que um outro tipo de energia poderia ser usado por ele, adoraria tentar.

– Os humanos são especialistas nas artes de mana, mas essa não é a única energia que pode ser facilmente aprendida por vocês – Mael retomou. – Dentro dessas energias que citei, vocês são compatíveis com dois tipos de manti: Energia de Mana e Energia de Chi.

Kai arregalou os olhos, lembrando de ter lido sobre a segunda também. Mas as lembranças eram embaçadas, antigas. Tudo o que lembrava era que um emaranhado de imagens e feitos tão estupendos que para ele, na época, lhe pareceram mitos.

– Achei que a Energia de Chi fosse um mito.

– E é – Mael piscou. – Há muito tempo houve um povo que foi extinguido da face da terra. Eram nômades, monges da paz. Mas o Chi propriamente dito ainda existe. Ele faz parte das cinco energias formadoras do cosmo.

Kai arregalou os olhos, compreendendo. Mael deu uma risada fraca.

– Mas ele não iria... hum... me destruir? – o rapaz indagou.

– Não. Chi é uma energia de força, do bem, ela tem consciência, diferente do Éter que tem o dever de ser manipulado e não manipular. O chi é a energia que existe em todos nós.

– Mas pensei que mana...

– Mana também. Mas mana é mais revolta: é uma energia para ser manipulada e não manipular. O chi é sua própria energia. Enquanto que as pessoas podem viver sem mana, sem o chi, não teriam vida. Nem existiriam.

– Você quer que eu manipule a minha energia, aquilo que se esvai quando corremos um pouco ou que se renova quando acordamos... como se fosse uma colher que pegamos a comida?

– Sim.

– Mas isso é algo inconsciente. Seria impossível manipular isso, algo invisível... volátil. Algo que existe no momento em que respiramos da primeira vez.

– Não é impossível, Kai.

– Por quê? Como pode ter tanta certeza disso?

– Porque sou um arqueólogo. Tenho o costume de viajar por este reino. Sou bem vindo no lar dos elfos. Os anãos, por sua vez, são bastante rabugentos, é um lugar que tenho poucos amigos. Mas o Grande Amarelo... lá é um lugar sem lei. Eles não ligam para raça, a força é o poder.

– E o que isso tem a ver?

– Numa de minhas expedições, encontrei uma vila soterrada pelo deserto árido. Sabe como o grande amarelo se formou, Kai?

Ele também tinha lido sobre isso, mas a irritação começava a toma-lo de assalto.

– Não – disse, rudemente.

– Há milênios atrás, houve uma contenda. Os protetores de Eteyow cuidavam para execrar outros Protetores que não queriam proteger: rebeldes sagrados. Essa contenda dividiu o mundo, que na época, era apenas uma pangeia. Quatro continentes se formaram dela e, um lugar em particular foi soterrado, virou cinzas; pó. Enxofre nasceu lá; mini vulcões e avalanches de terra se formam até hoje. Boa parte é inabitável, infértil. Mas virou o lar de muitos arruaceiros.

– Sim – Kai disse, impaciente. – Mas o que isso tem a ver, Mael?

– Vá direto ao ponto, filho. – Abwn aconselhou. – Você tende a se perder demais sem suas histórias.

– Certo – disse, ressabiado. – A vila soterrada pertencia ao Povo Nômade. Encontrei relíquias; objetos, brinquedos... encontrei até mesmo um lindo caderno cheio de matizes e protegido por runas, numa língua tão arcaica que só consegui traduzir recentemente. Ao contrário do que muitos pensam, o Povo Nômade não era uma raça estranha. Eram humanos, o primeiro povo a conseguir manipular Chi, Mana e Energia Cósmica.

“Eu realizei um estudo, Kai. Nunca vi ninguém que soubesse sobre esse chi. Era algo somente escrito ali, naquele caderno. Cada artimanha e modo de usá-lo. Eles continham o real segredo para ele.”

Kai ergueu o rosto e lembrou dos livros. Como poderia ter lido sobre algo que só tinha sido datado num caderninho soterrado? Mas, não importava como, a informação estava ali, no seu subconsciente, como se ele tivesse mesmo lido em algum lugar. Ou será que apenas sonhou?

Fez menção de perguntar. Mas parou diante do próprio pensamento: se era verdade que esse povo criou tal método de manipulação, era também ­– uma verdade óbvia – que somente os humanos tivessem posse de tal documento. Agora mesmo sua memória começava a falhar. Nem conseguia lembrar onde tinha visto a menção.

– E como pretende passa-la a mim, Mael? – ele indagou, decidido.

– Eu disse que seria seu professor, não disse? Vou te ajudar a ler o documento. Ensiná-lo em tudo que eu puder. Pelo menos até onde der.



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