Volume 1

Capítulo 17: MAIS PROBLEMAS

Quando saíram para a floresta, Mael deixou claro que eles iriam caçar. Mas, desde que pisaram nos túneis de saída, eles vinham sendo a caça.

E o vitanti não parecia nem um pouco alegre. E não era pra menos: foram atacados por uma série de criaturas sem ter nem um pouco de descanso. Mas o fato é que a floresta era realmente perigosa e, para Kai, aquilo poderia ser considerado comum.

Mas Mael era um vitanti e, até onde Kai sabia, o Protetor divino tinha permitido sua presença ali. Ou será que essa imunidade só se estendia pelo domínio do povo lilás?!

O pensamento fez o estômago dele borbulhar.

Segundo o próprio Mael, centopeias não costumavam sair logo cedo. Era pouco provável que ela tivesse saído somente pra uma corridinha matinal; o treino de pernas.

Improvável.

Assim como também foi estranha a reação dos caranguejos. Uma batalha nem tinha acontecido ali. Kai e Mael haviam fugido por pouco dos batedores, é verdade; ainda assim, não lutaram pra valer.

Não. Algo muito estranho acontecia ali. Mael estava compelido a acreditar nesta teoria da conspiração.

– Centopeias vivem embaixo da terra. Ali era muito longe do seu habitat natural. – Concluiu Mael, desviando de um enorme galho.

– Que está pensando?

– Algo está perturbando a paz dessas criaturas... posso sentir.

Kai pensou que só o que faltava era o vitanti ser um biólogo. Não, pensou Se ele for um biólogo fará mais sentido do que ser todas as outras coisas.

Seguiram por quase meio dia inteiro, Mael com a carranca mais feia que Kai já viu na vida. O rapaz até tentou argumentar que era aquilo mesmo que eles queriam, mas o vitanti pareceu irredutível quanto a sua suposição.

Estava convencido de que alguém vinha provocando esses ataques malucos.

Quando o clima esfriou, chegaram na beira de um enorme rio límpido; a visão da margem extrema era embaçada.

– Esse rio leva até uma cachoeira. Do outro lado estaremos mais perto dos tessaya.

Kai franziu o cenho.

– Afinal, qual o tamanho dessa floresta?

– Realmente não sei. É imensa.

– Cada vez que penso, imagino que aqui poderia ser um continente a parte. Eu já achava o reino de Algüros enorme – e olha que nem saí de Neve Sempiterna, mas aqui fica cada vez maior... pensar que uma civilização existe... povos com suas próprias maquinações.

Mael assentiu.

– Temos uma vida a parte, de fato. Se eu não conhecesse a floresta tão bem, teria me perdido mais vezes do que posso contar.

O rio estava com uma correnteza fraca, Mael pôs um pé depois o outro; iniciou uma caminhada lenta.

– Você diz que é viajado... – Kai seguiu os passos do amigo. – Qual o lugar mais bonito que já foi?

– Ah. Sabe, gosto de dizer que o Reino da Orquídea é lindo, e é mesmo..., mas o território dos elfos... é lindo.

– Como é lá?

– Como posso dizer? – Mael ficou calado por um tempo enquanto cruzavam uma parte escorregadia. Tornou a falar: – É dona de uma beleza imperial. São imponentes, sabe? Realmente realezas. É compreensível todo o orgulho que tenham, o ar de superioridade. Mas me trataram bem em minha visita. Nunca me afugentaram... foram realmente hospitaleiros.

– Mas, e quanto ao território em si: sua paisagem?

– Ah – Mael suspirou: chegaram ao outro lado. Ele pegou numa raiz e se certificou de que era firme; depois de se erguer, deu a mão ao amigo e o puxou. Tomaram a caminhada, então. – Como posso falar? É iluminado. Vivem para além de um enorme rio que desagua no Oceano de Netuno. O rio separa suas terras do reino dos anãos, que são seus inimigos juramentados e do Grande Amarelo, que divide o território dos homens por conta própria.

– Então pra chegar lá...

– Um homem teria dois obstáculos: o Grande Amarelo e o rio. E, como existe uma guarda realmente pesada na fronteira com território anão, ninguém em sã consciência tentaria por ali.

– Certo... e a paisagem?

– Ah – Mael sorriu, envergonhado. – Eu costumo divagar um pouco além da conta. Bem, a paisagem é uma beleza. O reino é construído no topo de uma montanha e é protegido por uma enorme muralha, bem como há várias falésias e montes escarpados abaixo. Logo no outro limite está o Oceano de Netuno do qual te falei. Eles são bem protegidos.

– E como você fez a proeza de entrar lá?

– Bem... os vitanti tem uma amizade longa com os elfos. Nós possuímos uma forma de entrar no território deles. Nem muito perto de suas muralhas, nem muito perto do rio. Mas devo dizer, há imensas florestas, praias, cidades, reinos... eu fui três vezes e não consegui visitar nem 1/3 de suas propriedades.

Era realmente impressionante. Kai só tinha lido ou ouvido falar dos elfos em livros e na academia. Os humanos mantinham certo desinteresse por esse povo. Talvez fosse a própria arrogância posta em duelo. Alguns humanos conseguiam ser duas vezes mais do que qualquer característica peculiar das outras raças, ele apostava.

Depois de algum tempo, Kai quebrou o silêncio.

– Como sabe que tem algo de errado, afinal?

O vitanti o olhou de relance, para ter certeza de que falava sério.

– É uma sensação. Nós somos sensíveis quanto à natureza, como você já deve ter percebido. Alguma coisa maligna está entrando em vigor, algo...

Uma imensa luz iluminou o campo de visão dos dois, mas nenhum som veio dela. Outra luz, e notaram que era parecido com uma explosão.

Uma aura varreu os arredores por dois segundos e os rapazes se encararam.

– Daquele lado fica a aldeia tessaya... rápido, é um ataque.

Kai assentiu. Correram por mais ou menos meia hora, até que, de chofre, Mael parou de correr.

– Que foi? – Kai perguntou.

– Há um manto sonoro logo a frente.

– Como sabe?

– Preste atenção...

Kai se virou para frente e respirou fundo. Aumentou seus sentidos e sentiu uma leve aura pulsar, mas não sabia ao certo se era realmente aquilo que o amigo disse. Que acontecia?

– Tudo o que sinto é uma energia, uma aura pulsando.

Mael franziu a testa.

– Não vê as cores vindo da barreira? Será que... Tanto faz. Os tessaya estão sendo atacados por magos humanos.

– Como sabe?

– Essa aldeia fica nas proximidades de um país humano. O lugar onde tem a barreira é proibido civilmente, então deduzo que sejam vagabundos.

– Mas isso é possível? Os tessaya são vitanti, afinal. Eles poderiam simplesmente...

– Não é assim tão fácil, Kai. Os tessaya não são guerreiros como meu povo ou os mudanti – ele saiu correndo e Kai o seguiu. – São um povo pacífico, trabalhador. Droga, eu disse pra ficarem longe dessas extremidades...

– Que faremos?

– Um dos magos deve estar sondando o lugar, em busca de invasores, mas duvido que sua magia alcance outros tipos de energia.

– Em tese deveria, não é? Quero dizer, é tudo... energia.

– Sim. Mas só indivíduos acima da escala de poder conseguem.

– E o que quer fazer?

– Vamos averiguar a situação e decidir conforme se desenrole.

E seguiram a todo vapor ao centro dos clarões.


***


A pequena aldeia rodeada por casinhas feitas de madeira e palha queimavam.

Choros e gritos de crianças podiam ser ouvidos por todo o lugar. Era um pandemônio.

Amarrados e subjugados, mais de cem tessaya de pele verde variada encaravam o rosto de seus algozes.

Ao redor deles, os corpos daqueles que tentaram lutar: mortos, um pálido olho azul, encarando o vasto emaranhado de estrelas.

Seus executores eram humanos; estavam na casa dos trinta.

Trinta assassinos. Usavam conjuntos de roupas divergindo entre couro, cota de malha e armaduras.

– Estão todos aqui? – indagou um deles. Era alto, pele branca e careca. Rosto quadrado e enorme barba amarronzada. Usava um colete de couro e alguns apetrechos nos braços e dedos. Um enorme machado estava preso nas costas. Seu olhar era de repulsa.

– Sim, chefe. Quem diria que realmente existissem esse tipo de coisa aqui?

– Foi uma dica muito específica, afinal. – Seu olhar era duro. Ele se aproximou do povo tessaya. – Quem é o líder aqui?

Um tessaya de pele verde limão encarava o corpo de um outro, não muito longe dali. Seu rosto era de uma expressão crua, amarga. Lágrimas lhe caiam. Ele ergueu seus olhos castanhos para o suposto chefe.

– Ah – o mercenário olhou do corpo do tessaya para aquele que agora lhe encarava. – Seu filho? Ou amante?

Ouviu-se uma série de gargalhadas.

– Você vai pagar por isso, saru’mono. Bulogg te amaldiçoa.

– Na verdade – o mercenário se abaixou. – Eu vou receber por isso. Tem um certo sujeito que acredita que meia dúzia de ricaços pagariam pra ter em sua galeria escravos iguais a você: sujeitinhos bisonhos e matutos multicores. É, a capital vai entrar em êxtase quando eu e meus homens desfilarmos com nosso novo troféu. Agora me diga – ele pegou com firmeza no rosto do tessaya, trazendo-o para mais perto. – Existem mais de vocês?

O tessaya cuspiu em seu rosto. O mercenário sorriu, dentes amarelos e podres.

Ele se levantou, limpou o cuspe e, quando pensaram que não faria nada, se virou e deu um soco no rosto do tessaya. Este caiu, mas o mercenário não parou por aí. Com as mãos nuas, desferiu uma série de socos até o rosto do tessaya estar tão desfigurado que poderia ser confundido com um caranguejo. O líder dos mercenários soltou o corpo no chão, sem vida, e soltou uma gargalhada seca.

– Por favor, não mate mais nenhum deles – disse um outro. – Eu... eu sou o seu líder. Pode me perguntar qualquer coisa, mas..., mas não matem meu povo.

O mercenário se virou para um tessaya de meia idade. Tinha uma pele verde escura, usava um conjunto de roupas branca e um cocar de penas vermelhas. Tinha a pele enrugada e olhos profundos e castanhos.

– Agora estamos falando a mesma língua. A pergunta segue sendo a mesma, samambaia.

O tessaya suspirou.

– N-não existe mais nenhum de nós. P-por favor, isso é tudo.

– Você não está mentindo, está? Eu odeio quem mente pra mim.

Um rapaz pigarreou. O mercenário se virou.

– Tem algo a dizer, criatura?

O pobre tessaya lançou um olhar nervoso para seu líder, depois tornou a olhar para o chão. Balançou a cabeça.

O mercenário, que captou o olhar, se levantou, sorrindo.

– Pensam que sou idiota. Pois bem, matarei um de seu povo, na contagem de dez minutos; se eu não tiver resposta, um de vocês morre.

Ele andou até um de seus homens e disse, baixinho:

– Quero que comece pelas crianças.

Dez minutos se passaram e ele fez a pergunta outra vez; como ninguém respondeu, o outro mercenário foi até eles e puxou um tessaya de, no mínimo seis anos do colo da mãe. Ela tentou impedir de todas as maneiras; mas não conseguiu evitar que levassem sua criança.

O líder dos bandidos pegou o menininho que berrava e colocou uma faca em sua garganta.

– Eu vou perguntar de novo: tem ou não tem mais de vocês?

– Por favor senhor – gritou o líder dos tessaya, em prantos. – Por favor, eu lhe imploro. Não há mais nenhum de nós. Somos uma pequena comunidade, os últimos... por favor, não o mate. Leve a mim, leve-me. Arranque minha vida, mas, por favor... não faça isso. Tenha misericórdia.

– Misericórdia? A culpa é sua, imundo, por não responder uma simples pergunta. Mas não se preocupe, sua hora há de chegar. No fim, tudo o que precisamos são as mulheres.

Ele passou a lâmina da faca pela garganta do menino. Sangue jorrou quase que imediatamente.

O garoto tentou, sob o olhar perdido da mãe, conter o sangue; foi inútil. Começou a sufocar; caiu ao chão e, finalmente, morreu.

Seu olhar pálido permaneceu encarando sua mãe; ela havia quebrado.

O grito preso em sua garganta, sem mais súplicas, sem mais pedidos. Ele havia ido.

– Nãããão! – o líder dos tessaya soltou um grito dolorido. Os outros de seu povo tentavam conter as lágrimas. – Por quê? Por que fez isso? Pra que tanta crueldade? Era apenas uma criança!

– Por que, você pergunta? – o mercenário sorriu. – Porque eu amo dinheiro.

Ele deu um passo e tornou a perguntar:

– Então, tem ou não mais de vocês?

Entrementes, uma flecha se fincou perto de seu pé. Uma densa aura varreu o lugar e ele esquadrinhou sua origem.

Próximo das cabanas em fogo, dois sujeitos o encaravam. Um deles, mais baixo e com cabelos longos e negros. Os olhos igualmente negros e puxados no canto, tinha uma expressão dura, raivosa.

O outro tinha uma pele roxa e usava óculos redondo. Seus olhos cinzentos olhavam com uma raiva absurda para o mercenário.

– Ora – o mercenário sorriu e abriu os braços. – Então quer dizer que tinha, hein? Apesar de eu achar que esse cabeludo aí é um humano comum.

– Desculpe, N’gollo – disse Mael, ainda encarando o mercenário. – Cheguei tarde demais.

O líder da tribo verde olhou do vitanti para o garoto. Então abaixou a cabeça, quase em súplica.

– Por favor, Mael, nos empreste sua força.

– Nem precisaria pedir.

Uma densa aura inundou o lugar e mais de dez mercenários deram um passo para trás, assustados. Alguns caíram sob um joelho, vomitando. Outros largaram suas armas e caíram de bunda no chão.

O chefe dos mercenários olhou enquanto somente alguns permaneceram em pé. Seu grupo foi reduzido a menos de 20, se desconsiderasse os amedrontados.

– Mael, não é? Uma forte aura você tem aí.

Ignorando, o vitanti deu um pulo e diminuiu o espaço, aparecendo há mais ou menos 10 metros.

Quando apareceu, segurava uma espada; cortou o peito de um mercenário em diagonal, rasgando couro, cota de malha e pele. Girou a espada e arrancou a cabeça de outro. Nem fez força.

Kai era igualmente forte. Usava somente suas mãos.

Chamava a atenção pelos golpes bem concentrados. Nocauteou cinco em uma sequência absurdamente mínima, sem usar qualquer tipo de magia.

Rapidamente, o que era vinte contra dois, se tornou cinco contra dois, contando com o próprio líder.

– Você – ele apontou para Kai. – Eu conheço estilos nobres quando os vejo... você é um nobre, não é? Não. A julgar pela sua cara, acho que só vivia entre eles. Então se odeia tanto os nobres quanto eu, vamos entrar num consenso aqui, que tal? Veja, eu não ia realmente matar todos...

– Você está com medo, mercenário? – indagou Kai, sem expressão. – Não pense que irá se safar dessa. Você cometeu um erro, e foi ao matar aquela criança que cruzou o limite. Não se mexe com inocentes.

Ele tinha uma expressão raivosa e uma aura começou a vazar. O chefe dos mercenários sentiu certo desconforto. Mas seus homens restantes caíram ao chão, sufocando, ficando azuis pela pressão.

Até mesmo alguns tessaya eram atingidos pela pressão.

– Kai – disse Mael, segurando em seu braço. – Tenha calma, controle seu chi...

– Não – Kai se desvencilhou.

Então avançou em direção do chefe. Os punhos ficando azuis.

Seus olhos brilharam e uma energia branca/transparente exalou de seu corpo.



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