Volume 1

Capítulo 18: DESCONTROLE E CONSEQUÊNCIAS

Tinham acabado de se aproximar da extremidade da floresta quando viram a criança tessaya cair, o pescoço cortado. Levaram tempo demais para chegar ali, haviam mercenários esquadrinhando os arredores.

Tiveram de lutar. Havia uma dúzia deles, que foram abatidos.

Mael ficou abalado e muito irritado quando viu o menino caído; mas foi Kai quem se enraiveceu mais.

Ele viu os vários corpos de pessoas mortas. Brutalidade, assassinato. E tudo por dinheiro.

Então quando viu o sorriso daquele imundo que matou o menino, só quis afundar seu rosto com socos e pontapés.

Quando Kai avançou em sua direção, o ar mudou. Só tinha poucos minutos até que o chi lhe tomasse todo o fôlego.

O mercenário já juntara as mãos.

– Yadaraf: Campo elétrico.

Em volta dele, vários raios fizeram um arco em uma espécie de domo.

Mas o escudo ruiu ao primeiro soco de Kai, que estava envolto em energia pura. O homem se assustou, mas logo se estabilizou.

Puxou o machado de suas costas e raios azuis correram por toda sua extremidade.

Ele ergueu sobre a cabeça e se impulsionou para frente. Quando o desceu, golpeou o chão, uma descarga elétrica foi em direção de Kai que desviou numa cambalhota lateral.

Kai pousou no chão e novamente diminuiu o espaço. Ao se aproximar, desferiu uma série de socos no tronco, costelas e abdome do grande mercenário, que cuspiu sangue; era lento demais para reagir.

O mercenário tentou socar por baixo, mas Kai desviou e se ergueu, dando um forte soco lateral em seu maxilar. Deu mais um soco em sua garganta com o nó do dedo médio. Sentiu o pomo de Adão amassar ao golpe.

Em seguida se abaixou e lhe deu uma rasteira e antes do homem cair ao chão, Kai lhe deu outro soco, amassando seu tórax.

O mercenário berrou e mais sangue saiu de sua boca. Os raios vacilaram e Kai, apesar do súbito desgaste, não parou por aí.

Suas mãos se livraram do chi azul e a aura branca lhe abandonou.

O mercenário tinha dificuldade para respirar e Kai montou nele. Começou a desferir socos com as duas mãos em seu rosto.

Direita... respirou. Esquerda... respirou. Direita, esquerda, direita, esquerda. Respirou. Continuou socando, já perdendo a noção do que acontecia.

Suas mãos sangravam em carne viva. O rosto do mercenário estava irreconhecível.

Havia uma abertura onde deveria estar o olho. Uma cratera em forma de punho; seu rosto foi tão amassado que poderia ter sido devorado por uma fera.

O mercenário não tinha mais vida... só uma carcaça, deformada e destruída.

Kai parou de socar e encarou o rosto do homem. Não havia mais olho esquerdo; seus ossos zigomático e lacrimal tinham virado papa. A carne, sistema neural, nervos... O olho direito estava saltado para fora, preso apenas ao nervo óptico.

O rapaz olhou para suas próprias mãos: trêmulas, ensanguentadas e esfoladas. Inchadas. Em carne viva.

Essa não foi a primeira vez que matara um homem. Contudo, foi a primeira vez que sentiu um enorme vazio crescer em seu peito. Não sabia se era pela crueldade do ato ou pelo pesar que sentia deste povo. Do mercenário ele não sentia nada além de repulsa.

A questão é que das outras vezes que matara, não sentira nada além de dever; desta vez foi pessoal. Será que isso estaria ligado à paz que deveria sentir? Ao fato de nunca, jamais, sequer cogitar ter ódio por outrem? Ou será que o momento foi tão silencioso que só agora ele parou para ouvir seus próprios pensamentos e sentir seus sentimentos?

Ciente dos olhares sobre si, ergueu o rosto, agora iluminado pela lua e fogo. O sangue do mercenário pintado em sua cara.

Os outros mercenários, presos em mãos de terra olhavam para a cena, aturdidos.

Os tessaya tinham olhares medrosos, assustados. Mael... este tinha um olhar misterioso. Parecia encarar sua alma.

Kai se levantou, respirou fundo. Caminhou lentamente e passou por Mael e os tessaya.

– Kai... – Mael respirou, triste. – Não era assim, Kai... não assim.

Ele continuou caminhando, e passou por N’gollo, que o encarava, cético.

– Pronto, assunto resolvido. – Disse.


 ***


O fogo das cabanas já tinha sido apagado. Os corpos dos tessaya mortos estavam num canto.

Os outros mercenários que tinham desmaiado continuavam assim. Estavam a um canto, sob guarda.

Os tessaya sobreviventes haviam se juntado num semicírculo, uma fogueira em seu centro. Alguns se propuseram a fazer algo para comer.

Mael seguia numa discussão acalorada com N’gollo.

Kai, no entanto, observava a mãe que perdeu seu filho. Ela ainda encarava o nada, terrivelmente abalada.

Ele abaixou o olhar e encarou suas mãos. Estavam inchadas e vermelhas. Ficaria uma cicatriz. Cicatrizes.

Mais uma, ele pensou, encarando a funda cicatriz que a explosão de mana gerou, há meses.

– Kai – disse Mael. – Kai, aqui. Venha.

O rapaz respirou fundo e caminhou até onde os outros vitanti estavam. Sim, era um só povo, no fim.

Alguns o olharam com dúvida e medo estampados em seus rostos. Outros até se encolheram sob sua visão.

N’gollo lhe lançou um olhar cauteloso. Aquele povo, que Mael costumava chamar de orgulhoso, perdeu toda pompa no primeiro segundo em que foram subjugados.

– Aqui – disse Mael, lhe entregando uma tigela. Estava com um olhar entristecido, mas não mudou seu modo de agir com Kai.

Isso era bom. Kai não gostaria de perder a boa amizade que tinha com o vitanti.

Por poucos segundos, Mael ele encarou as mãos esfoladas do rapaz, sem curativos.

Kai, por sua vez, olhou dentro da tigela, sem fome. Sentou ao lado do vitanti, sobre um tronco.

– Continuando – disse Mael. – É hora de vocês voltarem para o Reino da Orquídea. Peço que seja sábio em sua decisão, N’gollo.

– E a mantenho, garoto. Meu povo vive aqui há séculos, não iremos embora só porque tivemos um contratempo.

– Contratempo? – Mael indagou, calmo. – Não deveriam viver tão próximo da civilização do homem... N’gollo, vocês estiveram a um passo de serem brutalmente escravizados... só Bulogg... só Eteyow sabe o que poderia ter acontecido.

– Sim, e damos glória a ele. Mas não podemos abandonar nossa tradição. Não há lugar para nós no Reino da Orquídea; agradeço sua ajuda, mas ficaremos.

– Não seja cabeça dura, homem. Não vê que seu povo precisa disso? Vocês ainda têm um lar em nossa casa. Ela é sua também.

Kai olhou nos rostos dos tessaya; muitos davam a impressão de querer ceder ao pedido de Mael. Mas alguma coisa os impedia: seria medo, respeito ou devoção?

Ele soltou uma galhofa.

Os dois vitanti se calaram. O fogo crepitou sob o silêncio constrangedor.

N’gollo falou:

– Qual a graça?

Kai olhou nos rostos de cada um ali. Por último, fitou Mael, que encarava o fogo.

Tomou fôlego.

– Mael e seu povo claramente tem respeito por você, mas direi uma coisa, porque respeito é uma coisa que não tenho por ti: você toma sua decisão baseada em egoísmo.

– Egoísmo? Ora, seu...

– Sim, egoísmo. – Kai o interrompeu. – Hoje o seu povo quase morreu. Teve um garoto assassinado. É, foi trágico. E você, mesmo vendo isso de camarote, não muda a decisão. Que tipo de líder é você?

– Que tipo de líder? Quem é você, pra começo de conversa? Até onde sei, pode ser um deles... essa raça imunda... esses curoh’nekedoh.

– É, pode ser. – Kai tinha uma frieza e calma muito peculiares em sua voz. – Só que pelo menos um de nós dois fez alguma coisa a respeito. Você tem tanta vontade de manter a palavra, de permanecer irredutível, que levaria seu povo ao fundo do poço. Esteve prestes a ver sua raça exterminada e mesmo assim fica aí, se fazendo de bom líder. Você é um péssimo líder.

– E o que sabe sobre isso, seu macaco pelado? – ele se levantou e jogou a tigela no chão, espalhando a comida. – O que sabe sobre liderança? Não pense que é um de nós para vir aqui e dar pitaco. Lembre-se, você matou um dos seus a sangue frio. Até onde sei, é tão assassino quanto eles.

Ele se virou para Mael.

– É assim que vocês tratam as coisas agora? Brutalidade com brutalidade? Esse garoto... um moleque... matou um homem a sangue frio, e você nem o repreendeu... pensei que fôssemos pacíficos, Mael...

– Não tenho autoridade sobre ele, N’gollo... – Mael fitou Kai de soslaio. – Ele já é um adulto, portanto sabe o que faz.

– Não tem autoridade? Você o trouxe até nosso acampamento, e quer que eu deixe meu povo em suas mãos? Ele matou um homem aqui, não se esqueça disso.

– Sim, e foi você quem pediu ajuda. – Kai falou, ainda em tom de zombaria.

– E nós teríamos ajudado mesmo sem esse pedido. – Mael reprimiu.

– Está vendo? – N’gollo zombou de volta. – Pensamos diferentes, alguém assassino. E se ele se rebelar contra você? Essa raça é imunda, Mael...

– Mas ele nos ajudou, não é isso que importa? – Indagou um jovem tessaya.

– É. – Outros concordaram.

– Ajudou – N’gollo se sentou. – Mas a que custo? Agora tem sangue em suas mãos. Vejam, ainda estão tremendo. E esse olhar frio? Quantas vezes isso aqui já ocorreu em sua vida? Esse não é o olhar de alguém que salva os outros, é o olhar de um tirano. Assassino. Nem tem remorso.

– Uma criança... – Mael berrou.

– Mas não foi você quem disse que ele era um adulto? Ouvi com todas as letras Mael. Agora se tornou hipócrita também? É um assassino a sangue frio, sem remorso e compaixão, sim!

Kai ergueu o olhar, chi exalando de suas veias. Estava aprendendo a dominar a aura predominante.

N’gollo sentiu um pouco de falta de ar, mas logo se apaziguou.

–  E eu faria de novo. Mataria quantos fosse preciso pra vingar aqueles que não podem se proteger. – Ele se levantou e ficou a poucos centímetros do tessaya. – Mas, me diga, N’gollo, líder dos tessaya: qual a diferença entre nós? Eu matei e mataria muitos mais, se isso fosse de encontro ao que acredito. Mas você... você está pronto para condenar todo o seu povo só por uma simples presepada. Há diferença, líder?

Kai deu dois passos para trás e se virou para Mael.

– Vamos, essa gente está condenada. Não pode força-los a nada. Sugiro que dê conta daqueles mercenários; conhecendo-os, se escaparem vão dar um jeito de voltar.

Mael assentiu, sombrio.

Quando estavam partindo, alguém falou.

– Esperem.

Kai se virou e uma tessaya velha de cabelos grisalhos e a pele cor de limão se aproximou. Usava um vestido marrom. Seu olho estava roxo.

– Eu irei também.

– Maneta... – N’gollo falou, rouco.

– O rapaz tem razão, N’gollo – disse a velha. – E não me importa a raça dele: é a verdade. Estivemos tão cativos nos nossos costumes, cultura, que esquecemos quem somos. Pra que viver assim, à mercê de uma vida boa, se temos o nosso próprio lar? Não, eu dispenso. – Ela se virou para Kai e o vitanti. – Mael, querido, se a proposta estiver de pé, eu gostaria de ir junto.

– Sim – Mael sorriu, cansado. – Sempre haverá um lugar para vocês. Para todos vocês.

Então, um a um, vários vitanti se levantaram; também iriam.

No fim, menos da metade ficou sentada; N’gollo com um olhar ganancioso no rosto.

– Mael disse que vocês vitanti agem em prol do medo. Eu acredito. – Kai olhou para N’gollo. – E seu único medo é perder sua liderança, o poder de mandar nos outros, e nisso você em nada difere dos homens.

Então Kai saiu andando, Mael ao seu lado e os tessaya logo atrás.



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