Volume 1

Capítulo 22: A ESPADA DO AMANHECER

O pai de Fioled encarava seu filho com uma raiva escancarada no rosto. Kai lembrou de Mael quando Ilywd tentou lhe sobrepujar.

Mas esse era um tipo de raiva diferente, como de desapontamento.

Plumrose encarava tudo de boca aberta; talvez a vontade de vomitar fosse apenas uma impressão.

Hyvina estava concentrada.

– Espero que estas palavras nunca mais sejam ditas em minha presença... ou melhor, em qualquer lugar que não seja seus próprios pensamentos, Ómra.

O rapaz estalou a língua e se virou.

– Por que eu teria de respeitar este... esta criatura? Ele não é um de nós.

– E mesmo assim parece ter mais respeito por outros do que você. Tudo que lhe ensinei foi em vão?

Ómra se desconcertou.

– Não, pai. Mas...

– Você será, em breve, o chefe de nossa família, Ómra, tenho certeza disso. E também tenho certeza de que será o senhor de Pylpunt. Mas dúvidas despontam nestas certezas, tal como flechas que penetram uma defesa impenetrável. É assim que minha confiança em você está neste momento: tornando-se quebradiça como vidro em combustão.

Ómra nada disse; apenas baixou a cabeça.

– É esse o exemplo que lhe dei? É assim que quer ser lembrado? Um senhor rebelde, irritadiço? Olhe o exemplo que dá: não ouve a sua noiva, não liga para a criança intimidada... e tudo que aprendeu com Neru’dian? Com Mael...

– Este não passa de um traidor...

– Já chega – a voz de Cineáltas rimbombou pelo lugar. De repente, ele pareceu maior do que já era. – Não tolerarei mais isto, Ómra. É notável que você não aprendeu nada em lidar com as emoções. Até mesmo a pequena Plum é mais esbelta do que você. Quero que saia da minha frente, Ómra. Saia da minha frente e me aguarde em nosso lar.

Ele retirou o avental e passou por Kai, esbarrando em seu ombro.

Quando saiu e o sino na porta tocou, Cineáltas se virou para Hyvina.

– Quero sua presença também, sobrinha. Sua tarefa não é apenas dar amor ou apoiar seu futuro marido, terá de puxá-lo pelas rédeas. E seu trabalho será grande.

– Tudo bem, sogro; eu já esperava que tivesse de ser a âncora para Ómra. – Disse, entristecida. – Mas, apesar de seu gênio tempestuoso, eu o amo.

Ela se dirigiu para a porta e, antes de sair, curvou a cabeça para Cineáltas, logo depois se desculpou com Kai. Quando esta atravessou o arco, o senhor de Pylpunt bufou, aflito.

– Peço desculpas por ter presenciado isso, Kai. – Ele caminhou até Plumrose e se ajoelhou em sua frente. Pousou sua enorme mão no ombro da menina e tirou uma barrinha de algo de seu bolso. – Aqui, querida, coma isto. Sua pressão sanguínea se estabilizará.

Ele voltou até o balcão e Kai o encarou. À princípio, quando o viu no salão do Sínodo, achou que o homem era severo. Mas, mais do que severidade, havia compaixão. Complacência. Não era algo comum em alguém de sua estatura. Mas, à exemplo de tantas outras vezes, Kai lembrou de uma outra figura bem parecida com Cineáltas: Lucio Fal.

O homem era grande em estatura, feroz em batalha e enorme em coração. Era, de longe, a pessoa favorita de Kai além de Gunter e Ardara.

O vitanti sorriu por baixo da espessa camada de barba e se apoiou no balcão largo.

– Então, rapaz, ouvi parte de sua conversa. Antes de irmos aos finalmente, gostaria de agradecer pelo presente que me enviou. Admito que fiquei mais do que admirado ao ver o ferrofosso voltando para nossas mãos.

– Voltando? – Kai andou até o balcão.

– Fomos nós, do clã Echanti que descobrimos o ferrofosso. Um rico mineral vívido no caule de antigas árvores da floresta de Bulogg. Leve como uma pena, forte como diamante. Nem a maior das magias foi capaz de dobrar sua vontade. Mas os Echanti descobriram uma forma de fazê-lo.

Não era de se admirar; metade das armas ali pertencia à um antigo ferreiro Echanti. Era correto afirmar que esta família havia se especializado nas artes da metalurgia.

– Então – continuou. – Há muito tempo essas árvores foram extintas, numa tentativa desesperada de nossos antigos inimigos de evitar que armas fossem feitas desse mineral. À exemplo da árvore, nossas armas criadas a partir do ferrofosso se perderam, restando somente algumas delas. É muito interessante que a adaga que encontrou estivesse a pouca distância de nós. Bulogg realmente foi iluminado ao permitir sua entrada em nossa casa.

Kai sorriu, o homem realmente era um bom sujeito.

– Como deve ter notado, a adaga não funciona com ninguém que não seja vitanti, acredito que essa técnica tenha sido aprendida com os anãos, seres realmente enciumados no que concerne de sua criação. Agora vamos, entre aqui.

Cineáltas se afastou e atravessou o arco. Kai e Plumrose, que já tinha comido a barrinha que o outro lhe deu, rodearam o balcão e seguiram o velho vitanti.

Ao passar pelo arco, uma escada íngreme levava para um vão abaixo. Quando chegaram na base, deram de cara com um enorme galpão, cheio de fornalhas, com balcões de ferro cheios de plantas e desenhos em papiros.

Longas armaduras pendiam de ganchos do teto. Runas e orbes flutuavam dentro de prateleiras transparentes.

Cineáltas caminhou até um balcão, o calor ali era insuportável.

– O senhor criou tudo isso? – Kai indagou.

– Com a ajuda de Ómra – ele soltou uma risada. – O garoto leva jeito para isso.

Ele entregou duas máscaras de ferro para Kai e Plumrose; depois colocou uma no próprio rosto. Caminhou até uma enorme fornalha e a abriu; parecia que estavam dentro de um vulcão, o ar era espesso e sua simples onda de calor dava a sensação de bolhas se formando na pele.

Kai rapidamente colocou Plumrose atrás de si e formou um escudo de chi em torno deles.

Cineáltas meteu a mão nua dentro da fornalha; retirou um objeto grande e cilíndrico e depositou no chão logo após fechar a portinha da boca do forno.

O ar estabilizou, mas não deixou de estar quente.

Logo em seguida, Cineáltas pegou uma pinça e, de dentro do objeto cilíndrico, retirou uma liga de metal ou aço e colocou numa bancada de pedra.

Aparou um martelo do tamanho de suas mãos e começou a golpear o pedaço queimado.

A cada martelada, o objeto ganhava uma forma. Ficava mais fina, então mais grossa. Depois ele golpeou até ficar longa e retangular. Com a mesma pinça depositou-a num pote cheio de um líquido transparente. Assim que o vapor subiu, ele tampou.

Retirou sua máscara e ordenou que o seguissem.

Caminharam mais um pouco e dali a pouco entraram numa sala. Era cheia de mais prateleiras nas paredes, mas mais fria. O clima estabilizou.

– Aqui ficam as melhores armas e armaduras; comecei a forjá-las quando Abwn informou que Pele-pétrea estaria vivo. E, assim que Fioled me deu a adaga de ferrofosso, separei uma arma para você, Kai.

Kai ficou surpreso. Não esperava aquilo. Se estivesse certo, fazia pouco tempo que Abwn tinha descoberto acerca de Pele-pétrea. Como o vitanti havia conseguido forjar tantas armas em tão pouco tempo?  

Eles andaram por entre vitrines contendo várias armas incríveis.

– Sabe, eu estava pensando em algumas coisas que me seriam úteis pra treinar.

– Cite exemplos.

– Pesos.

Cineáltas se virou, um sorriso de canto.

– Não me diga que você levanta peso.

– Não – disse Kai, sem graça. – Estava pensando em algo que me ajudasse a aumentar minha velocidade, que me permita evoluir, que não me deixe dependente só de manti.

O Echanti parou de repente, encarando o nada. Parecia calcular alguma variante. Se se esforçasse, Kai poderia jurar que fumaça saia de sua cabeça.

– Veja bem. Tenho algumas coisas que podem te ajudar.

Cineáltas saiu andando por um corredor e Kai pediu que Plumrose esperasse ali.

O Echanti caminhou por entre algumas prateleiras até chegar no fundo do lugar, que era um tanto escuro.

Tirou de dentro de uma estante pequena dois panos enrolados.

Do primeiro pano que abriu, havia duas braçadeiras negras.

– São projetos desenvolvidos por mim. Você insere sua energia nela, e ela vai saber exatamente o quanto seu corpo precisa pra evoluir. E o mais interessante é que não precisa de energia constante pra funcionar, só é necessário que sua manti entre em compatibilidade, como uma assinatura de mana. 
Kai ergueu o rosto, surpreso.

– É um feitiço de fluidez. É muito avançado, senhor. Tem certeza que venderá a mim?

– Sim, já faz uns dez anos que criei, nunca me deu serventia. E pode esquecer isso de vender. Você nos devolveu um patrimônio de família, tudo que quiser, será seu, sem custo algum.

O rapaz sorriu. Estava realmente grato. Ele apontou para o outro pano.

– E o que tem aí?

– Ah! – Cineáltas se apressou, saindo de seu torpor. Ele abriu o outro pano e havia duas caneleiras de mesma cor.

– Funcionam da mesma forma. Vamos, vista-se. 

– O senhor disse que é a base de manti... Como tem certeza de que funcionará comigo? Quero dizer, o chi ainda é um mistério até mesmo pra mim...

– Não tenho certeza, mas se sua habilidade se resume a utilizar energia vital, energia do mundo, então pode ser que funcione. Eu não as criei com distinção ou restrição... – Ele sorriu. – Só vai testando.

Kai colocou-as, cauteloso. Em seguida fechou os olhos e deixou seu chi fluir pelos braços e pernas.

Assim que sua manti entrou em contato com as caneleiras e braçadeiras, seu corpo pesou. Era como se ele tivesse, em cada braço e perna, o peso de uma pessoa adulta.

Não fosse pelo chi fluindo pelo seu corpo, lhe dando suporte, ele já teria caído há muito tempo.

– Sabemos que funciona. Agora, se você desativar sua manti, o protótipo se adaptará ao seu corpo. Precisa entender que estas ferramentas funcionam de acordo com o seu querer: quando usar manti, haverá um peso, quando não, haverá outro. Vamos, desative. 

Ao "sugar" seu chi das ferramentas, o peso diminuiu. Mas ainda assim era pesado. Ele calculou que, em cada braço e perna, devia ter 20 quilos. No mínimo.

Ele evoluiria ao ponto onde não fosse necessário ser um peso quando usasse chi e outro quando não usasse.

Ignorando o leve incomodo, eles caminharam de volta para o saguão de antes e encontraram Plumrose encarando alguns elmos e armaduras.

– Agora vou te levar até aquela espada. – Disse Cineáltas.

Pararam num canto ao lado de uma porta.

Cineáltas estava de frente para uma vitrine e a abriu com o maior cuidado; tirou dela uma linda espada de cabo duplo e protetor de mão longo. Sua lâmina era de fio duplo e longa na base, mas afinava à medida que ia até a ponta. Devia ter, no mínimo, 90 cm de comprimento.

Assim que Kai bateu o olho, a lâmina de bronze lhe encantou.

Vendo a expressão dele, Cineáltas sorriu.

– Foi você que a forjou? – Questionou Kai.

– Eu? HAHAHA. Não, garoto, mas bem que gostaria. A história dessa espada é um mito, onde muitos acreditam remontar os tempos de glória dos protetores.

Kai lhe encarou.

– Mito? Sua existência diz o contrário.

– Decerto; ela comprova o mito, portanto.

– E o que diz esse mito?

– Que essa espada foi forjada no Monte Ifaísteio e esfriada no Rio aad-Ceilt, nas profundezas do mundo. Foi feita especialmente para o Protetor Tugev durante as batalhas contra a Aliança Celestial Rebelde. É dito que ele a usou para derrotar o general mor da rebelião e, logo após isso, jogou-a na terra.

Sua expressão mudou para dor. Ele a repôs na prateleira.

– Para o mal ou para o bem, é correto afirmar que ninguém consegue portá-la.

– Mas você...

– Eu sei. Mas não percebeu? Só consegui por poucos segundos... somente em segura-la me causou fortes dores de cabeça.

– E você acha que eu posso tê-la?

– O que? Essa? – Ele soltou uma enorme gargalhada, entendendo a confusão. – Oh, não. Desculpe, acho que acabei causando isso, afinal. Não, sua espada não será essa, foi apenas uma pequena demonstração. Peço perdão por isso.

Ele saiu em direção de outra prateleira, mas Kai permaneceu olhando-a. O bronze brilhante estava lhe chamando, sendo um imã.

Num segundo ele a fitava, no outro, a segurava. Cineáltas se virou e encarou a cena. Não teve tempo de impedir, no entanto.

Entrementes, a espada pulsava, o bronze de sua lâmina era como um ondear.

No consciente de Kai, era como se ele lutasse contra a aura opressora da espada, como se tocasse o próprio sol. Era pesada de muitas formas. Uma batalha subconsciente se iniciou.

A espada tentava sobrepujar Kai, mas ele não abaixava a cabeça, soltando seu chi inconscientemente. Isso durou pelo que pareceram horas até que, finalmente, a espada venceu.

Kai abriu os olhos, Cineáltas o encarava de braços cruzados. Ele olhou para o lado e Plumrose estava assustada, mas calada. Que tinha acontecido?

Ele ainda segurava a espada.

– Quanto tempo...

– Alguns segundos... talvez um minuto. Mas, mais importante, o que aconteceu?

– A espada, ela... tentou me sobrepujar, se erguer sobre mim. Disputamos força mental, ela é muito... poderosa. Como se eu estivesse segurando o mundo em minhas costas, como se... como se estivesse caminhando pelo Sol e segurando o mundo.

– E o que aconteceu?

– Sua aura me venceu. Acho que não posso suportá-la, afinal.

Kai ia devolve-la para sua vitrine, mas Cineáltas falou:

– Muito pelo contrário. Espadas tem sentimentos, Kai. Depende muito de quem a forja, mas, se não tiver cuidado, pode acabar criando uma espada assassina. Esta aí foi, certamente, criada por alguém muito poderoso, e portada por alguém mais poderoso ainda.

– Que quer dizer?

– Não percebe? Você consegue segurá-la sem fazer careta. Quer dizer que, mesmo tendo perdido em seu subconsciente, ela o aceitou como seu portador, Kai. Mas você terá de conquista-la com sua própria força, pois ela não se ergue sozinha, nem há de cortar sem um usuário. Portanto, a força dela é a sua.

– É? – Kai abriu um enorme sorriso e encarou a lâmina de bronze, mais calma, comedida. – E qual é seu nome?

– Esta é a Espada do Amanhecer, Amencer.


***


Dois soldados vitanti sobrevoavam os arredores da floresta de Bulogg em uma fênix.

Deviam esquadrinhar e depois reportar; essa era a missão inicial.

Os rumores eram de que Pele-pétrea não havia morrido e, agora, formava um exército de criaturas que viviam na floresta.

Durante um período de dois dias, nada saiu do lugar.

Essa vigília seria necessária para que quando a Unidade Raisin fosse tentar reconquistar os postos avançados, tivessem clareza de onde estariam pisando.

A última experiência de Mael comprovou que o lugar já não era tão seguro. Mesmo assim, era imperativo que deixassem as muitas torres de comando instaladas nas árvores, uma vez que formavam um espesso escudo em torno de um longo território da Grande Entrada.

O soldado mais novo pareceu notar algo.

– Tem algo se mexendo nas árvores abaixo.

– É óbvio que tem – respondeu o outro, em deboche. – Existem milhares de espécies de animais selvagens e silvestres aqui, idiota. Acha que vão parar sua vida só por causa de uma batalha que dura há milênios?

– Não seja retardado...

O outro não respondeu, apenas fingiu demência. Continuaram sobrevoando, mas o soldado mais novo ainda sentia certo desconforto.

– É sério, cara. Sinto como se alguma coisa estivesse nos vigiando.

– Olha cara, se vai...

Neste momento, uma bola de fogo cruzou o céu e atingiu a asa direita da fênix. O pássaro soltou um grito amuado e começou a cair.

– Droga, é um ataque... – Gritou o soldado mais velho.

Em poucos segundos, eles caíram entre as árvores, um forte urro saindo do bico da fênix.

Os dois soldados se levantaram, esquadrinhando o lugar.

– CORRA, WINE – disse o soldado mais velho. – É um ataque, vou segurá-los e...

Uma segunda bola de fogo cruzou o céu, esta era maior.

A fênix que caiu à uma certa distância dos vitanti, foi atingida em cheio. Uma feroz ventania veio em seguida.

Wine olhou para seu companheiro e brandiu sua espada, éter começando a sair.

– Não, idiota, se nós usarmos...

– Deixe de ser burro, Arak, é um ataque direto. Não vê que não faz mais sentido evitar o uso de éter? Eles também não ligam para o sigilo. Vamos, acredito que...

Neste momento, uma dúzia de criaturas começaram a aparecer nas árvores. Caranguejos se amontoaram.

No solo, apareceram uma dúzia de criaturas cinzas de quatro olhos em cabeças com forma de lâmina de machado, braços parecidos com cabos de machados e pernas atarracadas como pilões. Mediam cerca de doze pés de altura.

– São Bulgus... – Arak balbuciou.

Wine virou-se para ele.

– Bulgus?

– Ogros canibais que conhecem fórmulas mágicas verbais, capazes de destruir construções...

– Então...

– Sim. Escute, Wine, o único jeito é voltar. Temos que avisar o mais rápido possível que estas criaturas entraram no páreo, arranjar uma...

– Não vão fugir de nós – um Bulgu falou. – Se você fugir, será questão de tempo para que eu vá até você e devore toda sua família.

– N-não... não é possível.

– Escute, Wine, não há mais tempo. Eu vou ficar e você vai, acharemos um jeito para...

Antes que pudesse terminar, o Bulgu avançou e arrancou a cabeça de Arak numa só mordida. Wine arregalou os olhos, estupefato.

Enquanto lambia os lábios cinzentos, sangue escorria e seus olhos se voltaram para Wine.

O vitanti deu vários passos para trás, praguejando sua falta de sorte. Ele só conseguiu sair correndo, sem olhar para trás.

Depois do que pareceram horas correndo, ele finalmente conseguiu despistar as criaturas e chegar no acampamento vitanti. Teriam problemas, enfim. 



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