Volume 2

Capítulo 77: IMPIEDOSO

Kai acordou numa cama macia, de lençóis de seda. Odiava visões com todo seu ser. Elas, primariamente, nunca tinham um início, e isso era ruim. E as suas visões ultimamente vinham cheias de mistérios, com significados demais para serem descobertos. Kai não gostava de ser detetive. Odiava.

Levantou-se, o corpo coberto por bandagens. Levou a mão ao lado, tateando a cama atrás de Tirise, o Vento Noturno, sua espada. Mas ela não estava ali. Era óbvio.

Ergueu a mão direita aos olhos, tentando impedir a luz de cega-lo. Isso lhe  causou uma dor de cabeça severa. Tentou observar seu próprio corpo, mas a ardência e a queimação deflagravam uma verdade que ele não ousava – não tinha coragem – de descobrir.

Afastando essas ansiedades... Onde raios estava? Sondou com chi, e tudo que teve foi um fraco pulsar, com pouca quantidade de chi rondando por suas veias.

Era natural, uma vez que Kai se esgotou completamente na luta contra Kesel, o Ministro.

Só de lembrar do tenso embate, seu estômago revirou.

Observou a fonte de luz que o cegava: uma lamparina presa ao teto, fornecendo luz artificial. Estalava num amarelo doentio, o que deu ao ambiente um aspecto mais macabro.

Kai olhou ao redor, encarando as paredes de tijolo bruto. Escuro. Talvez elas estivessem impedindo o seu fluxo de energia como nas catacumbas dos vitanti? Era uma hipótese pouco clara.

Não descartava a ideia, mas não tinha a sensação de ter suas habilidades bloqueadas, seria muito difícil não perceber. Mas algo estava estranho, e sem seu chi, ficaria difícil descobrir o quê.

Ele se perguntava porque não havia ninguém ali. Antes, quando chegaram ao deserto e deram de cara com Gh’varok, o guardião, este explicou que ele, Kai, não era bem-vindo. Talvez tivessem feito dele um prisioneiro? Bom, poderia ser.

Kai vagueou seu olhar pelo lugar. Observou as paredes de tijolo bruto, escurecidas pela sombra formada no resto do recinto não iluminado. Era bom não dar de cara com Batista, mas não ter absolutamente ninguém? Essa sensação não ia embora.

Ele demorou para olhar para a esquerda. Havia algo de errado e ele sentia. Quando olhou, isto é, para a esquerda, uma espécie de roda de pedra rolou para o lado, revelando uma passagem para um corredor escuro.

Fosse o que fosse, Kai sentiu uma vontade inebriante de sair. Mas não saiu, porque sabia o que podia lhe esperar, e sem seu chi... imediatamente se lembrou quando obedeceu a vontades que não eram suas. Quase morreu.

Havia algo errado. Kai não estava acostumado a acordar sem ter alguém lhe observando ou com algemas supressoras de energia em seus pulsos.

Não conseguiu conter a vontade de tatear a cama mais uma vez, só pra ter certeza. Ela não estava ali, e ele se sentiu só.

Kai observou o vão escuro além daquele recinto, tão chamativo e negro. Ele não tinha medo de escuro, e sempre gostou disso em si mesmo. Mas sabia que o escuro era lar de monstros incontáveis.

Lembrou-se dos cânticos de quando era criança, e de como seus amigos, Ardara e Gunter, morriam de medo da canção de ninar sempre contada pelo velho Shiv:

Na escuridão, onde sombras dançam,
Monstros espreitam, com olhares com cantam.
Croak, o demônio, com asas de morcego,
Ronda as crianças com sorriso sinistro.

Durma menino, durma, menina,
Monstros à espreita, nunca se esqueça.
Na escuridão te esperam,
Para te levar, agora escute seus passos a soar

Lupina a loba, com dentes afiados,
Ronda os quartos, com passos silenciados.
Gorthrok, o troll, de força brutal,
Espera no canto, com olhar cruel e fatal.

Durma menino, durma, menina,
Monstros à espreita, nunca se esqueça.
Na escuridão te esperam,
Para te levar, agora escute seus passos a soar

Krael, o vampiro, de olhar sedutor,
Te chama menina, com suavidade e dulçor.
Xandria, a bruxa, com feitiços sombrios,
Te espera, menino, pois seu forno já uiva de frio.

O Homem torto, com corpo retorcido,
Vagueia seus sonhos, com risada sinistra.
Kramp, o duende, de chifres pontudos,
Te assusta menino, com olhar maligno e rude.

Gremlins, os demônios, de olhos verdes,
Destroem brinquedos, com risadas covardes.
Eles te esperam, com armadilhas cruéis,
Para te levar com sorrisos malignos sob menestréis...

Durma menino, durma, menina,
Monstros à espreita, nunca se esqueça.
Na escuridão te esperam,
Para te levar, agora escute seus passos a soar...

Kai piscou, inebriado por se lembrar de algo tão antigo e tosco. Mas de repente algo mudou nele. Observou a escuridão como um desafio. E Kai gostava de desafios.

Por um momento foi como se a escuridão o olhasse de volta... Não. Era como se uma presença poderosa estivesse ali, o observando. Sem chi, sem consultas... Kai sentiu, e uma criança nas fraldas também sentiria. Ele levou a mão ao peito. O que era isso?

Não sabia de onde isso vinha, mas vinha... e não gostava disso também. Nem de todo o resto.

Afastou os tecidos sedosos e abafou um grito; suas costelas ardiam, como se estivesse bebendo fogo líquido. E seu peito...

Ele se encostou na parede, tentando não deixar a ansiedade lhe tomar..., mas eram tão frias. As paredes.

Ergueu um olhar questionador. Algo errado...

Diminuiu o espaço após um longo tempo, e passou pelo arco. Estava mais escuro do que ele via lá de dentro.

Se virou e era como se tivesse caminhado por cinco minutos. O quarto estava longe agora, com a porta aberta e... ele sentado na cama.

Era... era como se ele fosse o monstro na escuridão. Agora o ele que saiu da cama observava o ele de alguns minutos atrás, sentado na cama observando algo na escuridão, mortificado, apavorado. Mais apavorado do que ele se lembrava.

Kai olhou para trás, e era um enorme breu. Não havia nada, e uma lufada de ar arrepiou todo seu corpo. Ele olhou para frente e havia um minúsculo ponto no fim, iluminado.

A passos curtos, lutando para não deixar que a lufada de ar persistente o incomodasse, caminhou para o ponto de luz.

Era como estar sendo observado por olhos acusadores, que revirariam sua mente e seu passado na primeira oportunidade. De fato..., mas tinha algo mais, mais mordaz...

Não havia o claro perigo, mas tinha a vontade de amedrontar, e a intenção de fazer mal. Kai sabia disso, não era bobo.

Andou pelo que pareceram horas, mas..., mas o ponto nunca crescia.

Finalmente olhou para trás e viu... não se assustou, mas algo de ruim crescia nele. Agora olhava para o eu dele recém saído do quarto. O eu dele encarando o outro eu dele, ainda na cama.

Kai se virou, e o ponto havia crescido. Agora já não era mais um ponto, mas um vão pequeno pairando lá distante. Era maior, mas distante.

Então algo aconteceu que ele não soube distinguir na hora. Seus braços se arrepiaram, e notou uma presença, como se estivesse atrás dele, o dizendo o que fazer. O dizendo para fazer.

Diante do ponto distante, alguém parado surgiu. Uma silhueta pouco reveladora, que o encarou. Àquela altura, Kai sabia que nada daquilo pudesse ser real.

Mas ele não sabia ao certo se eram efeitos de drogas, se era um sonho ou...

– Ei – ele disse. – Você aí.

A silhueta inclinou a cabeça, e seus cabelos balançaram. Acenou para ele, depois o chamou.

Uma risada de criança ecoou, e isso foi inesperado. Mais arrepios involuntários.

Kai andou, iniciou um trote lento e logo se viu correndo na direção daquela silhueta. Mas ela nunca chegava, até que a risada aumentou e a silhueta começou a pular feito uma criança, torcendo para sua chegada iminente.

Então ela parou de pular e os sorrisos cessaram. Ela correu na direção de Kai, e o pequeno ponto de luz cresceu gradativamente como se acompanhasse o ritmo daquela silhueta.

A risada retornou e Kai parou seus passos, observando o incomum daquilo tudo.

– Não corra, não corra, não corra.

A voz ganhou timbres maiores, e a risada ecoou pelo lugar. Aquilo arrepiou Kai, mas ele não sentiu medo. Ele olhou para trás, todo o lugar havia se iluminado, mas não havia mais seus eu’s.

Ele olhou para frente de novo, e a silhueta nunca ganhava forma, mas crescia e a risada ecoava feito uma criatura ruim. Perdia os traços infantis, e ganhava algo... maldoso.

– Não corra, não corra... NÃO CORRAAAAAAAAAA! – A voz gritou num som gutural e demoníaco, mas Kai se manteve, observando tudo de olhos bem abertos.

Nunca teve medo da escuridão, por que seria diferente agora? Mas a silhueta continuou correndo até que ganhou traços e Kai se amedrontou, pois aquela era a única forma no mundo todo que era capaz de lhe causar medo.

Ele se abaixou, envolvendo os braços sobre sua cabeça. Esperou o impacto, um furacão de maldade o invadir, alguma coisa que lhe provasse de que não estava louco.

Afinal era ele, era Greylous, uma lembrança mordaz de sua loucura, um pesadelo constante em sonhos, em vida. Estava brincando com ele de novo, estava...

Kai aguardou. E aguardou, e aguardou. Mas nada aconteceu.

Escutou o som de pássaros, sapos coaxando, grilos ciciando, crianças rindo.

O cheiro de verde inundou seu nariz, e Kai abriu os olhos lentamente. Observou o verde sob seus pés. O cheiro de grama molhada. Que nostalgia.

Levantou a cabeça lentamente, e desta vez a luz do sol quase o cegou. Sua visão escureceu, e ele levou a mão ao rosto.

As risadas ecoaram e o som de um pequeno lago correndo invadiu seus ouvidos. Ele piscou, afastando o breu momentâneo. Uma rajada de ar chicoteou seus cabelos.

Kai estava parado num jardim cheio de árvores de diversas cores. À esquerda um rio corria, cujo uma ponte alta o atravessava até o outro lado.

Havia caminhos feitos de lajotas brancas, que levavam aonde quer que fosse. À direita, havia o inicio de um labirinto de árvores, onde sua maioria eram magnólias.

Kai ouviu a risada das crianças mais uma vez e decidiu segui-las.

Vinham do lado da ponte. Num instante ele estava ali, onde mais caminhos de lajotas levavam a diferentes lugares.

Kai observou o céu, livre de nuvens, e ouviu as crianças rindo de novo. Baixou seu olhar e foi quando notou algo mais estranho ainda.

Havia um menino em vestes pomposas, de cabelo de tigela negro e escorrido. Seu rosto era pálido, e ele ria mais do que qualquer coisa. Tinha uma espada de madeira numa mão e um escudo quadrado na outra.

Mentores observavam-no sorrir e pular de alegria, enquanto empregadas, de joelhos no gramado, batiam palminhas a cada giro do menino.

Haviam outras quatro crianças além desta: uma menina e três meninos.

A menina era jovenzinha, talvez oito anos. Tinha cabelos longos e vermelhos feito fogo, presos num coque.

Um dos três meninos era alto, vestido num colete de couro marrom, com uma blusa de cetim branco por baixo, botas de couro, braçadeiras de couro sociais e uma capa verde curta. Parecia ter onze. Era igual à menina, mas seus olhos eram negros, e seu rosto não era salpicado de sardas.

Um dos outros dois era tão ruivo quanto os outros, seu cabelo também de tigela. Era bem aparentado, mas seus olhos eram cheios de uma arrogância que Kai conhecia bem. O outro menino, de onze, também a tinha, mas era mais comedido, talvez tentasse se convencer de que não era arrogante. Mas era.

O último era... Ah!

Foi como se Kai olhasse para um espelho de si mesmo. O menino devia ter oito ou sete. Tinha olhinhos puxados e cabelos negros e lisos. Vestia roupas pouco chamativas, e estava bem calado. Seus olhos eram cinzentos, mas de vez em quando adquiriam um tom negro feito piche.

O primeiro menininho deu um giro e caiu sobre o escudo. Uma das empregadas se ergueu, abrupta, para ajuda-lo a se erguer. O menino sorriu, o rosto cheiro de grama e terra.

– Está bem, mestrezinho. Hora de encerrar a brincadeira de combate.

Ele bufou.

– Mas estou só começando, Joanne... por favor, deixe-me continuar.

Joanne sorriu.

– Não. E também tenho certeza de que milady Ardara também se cansou; não é comum que mocinhas...

A pequena Ardara bufou, ofendida.

– Já tenho oito! – Gritou, a vozinha aguda e cheia de autoridade. – E mocinhas podem sim iniciar combate. Mamãe até foi uma maga.

– Decerto que sim-

– E eu já sou uma das melhores lutando com espadas na academia...

– Acredito que sim, jovem senhori-

– E tio Bim diz que posso ser facilmente uma das primeiras Magicians do reino.

Ardara de fato ficara muito ofendida. Oras, sequer deixava a Sra. Joanne falar. Os mentores sorriram diante da vividez da garota Murphy.

– Que tal eu brincar um pouco com Ruff, agora? – gritou o primeiro menino, ainda nos braços de Joanne. Talvez tivesse cinco.

– Já disse que não. – E ela foi irredutível.

– Então quem sabe se eu pudesse brincar um pouco com o bastardo? – indagou uma vozinha fina e alta, muito cheia de si.

Kai olhou para Ruffael. A verdade é que nunca se gostaram, fosse na realidade ou não. Mas de repente a ideia de ter Ruff morto pela sua arrogância pareceu demais para Kai. Será que ele desejava isso tanto quanto formar uma família com Ardara, possuir Neve sempiterna, ter filhos?

Nada disso era seu. Eram coisas de Greylous, ele se convenceu.

– Não o chame assim! – Gritou Ardara. – Está sendo rude, e eu já falei que não gosto disto.

Ah Ardara! Talvez fora ali que seus sentimentos começaram? Sempre tão bondosa.

Kai observou os outros. Se isso era uma lembrança, então era vivida e detalhada demais. Os mentores mantinham uma carranca para Ruff, e Bron, o mais velho dos pequenos Murphy, não parecia nada contente também.

Ruff mantinha aquele sorriso arrogante de quem não liga pra nada, pois seu pai é o futuro lorde de um dos maiores domínios, oras!

– Que é bastardo? – indagou o primeiro menino.

– Ah, Grind... – Joanne ensaiou uma resposta, mas ela morreu em sua garganta.

Mas o olhar de Kai foi até ele mesmo. Pequeno, calado, indiferente.

O pequeno Kai caminhou até uma espada de madeira no chão, e a buscou, apertando firme. Ele olhou para Grind e suspirou.

– Bastardo é alguém pior do que lixo, – disse, numa vozinha tão infantil que talvez fosse um adulto dizendo aquelas duras verdades. – Alguém tão inferior quanto merda de cavalo, indigno o suficiente para ter um nome e chamar de seu.

Ruffael gargalhou, e o resto caiu num silêncio mortal.

– Isso é tão hilário, até ele já sabe de sua condição. Eu ia dizer algo mais baixo, na verdade... um bastardo é um filho de uma puta, feito por um lorde velho e sem herdeiros, louco para ter um filho e chamar de seu.

Mais tarde, muito daquelas palavras se perdeu, em parte porque Ardara era jovem e inocente demais para repetir ou entender, os mentores e as empregadas prezavam por suas vidas e não iriam contra o que um filho de um aspirante a lorde dissesse, e Bron não era dedo-duro e Ruff ainda era seu irmão – muito embora não aprovasse nada daquilo.

Mas para Kai pouco importava, pois ele odiava Ruff, e odiava a mãe dele, Eileen, com aqueles olhos negros e julgadores, como se tentasse decifrar de que linhagem o menino viera.

E aqueles olhos viviam em Ruff. E num instante, num piscar de olhos, sem medir a força ou impedir que a raiva o dominasse, Kai avançou em Ruff.

Lhe deu uma rasteira e quebrou seu nariz com o lado plano da espada. Foi rápido demais para alguém de sua idade.

Quando acabou, os mentores estavam boquiabertos. Muitas empregadas levaram as mãos aos rostos.

Grind bateu palminhas e deu vivas e sorriu. Ardara também. Bron correu até os dois e pegou Kai pelo braço, irritado.

– Que pensa estar fazendo, Stone? Quebrou o nariz dele.

Kai não disse nada. A esta altura, Shiv e seu anfitrião já estavam se aproximando.

Nessa época Siobhan ainda era lorde, e tinha ido até Campos Fartos negociar com um dos vassalos do lorde daquele domínio, Eilor Eriksson.

Algo estava errado, Kai não se lembrava das coisas acontecendo daquela forma. E a sensação de algo lhe observando...

Kai forçou o próprio corpo a uma reserva natural de chi, e a energia reagiu bem. As veias se inundaram de energia.

Seus punhos se encheram de energia e ele ergueu o braço, pegando algo com a mão aberta.

O sonho ondulou e ele acordou. Estava sentado numa mesa e algo se debatia sob seus dedos. Ele apertou, enquanto dedos frios tentavam rasgar suas mãos firmes.

Kai olhou para aquele sendo enforcado, seus olhos indiferentes e caídos.

– Poderia me dizer que merda tá acontecendo aqui?

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