Volume 2

Capítulo 81: SOMBRAS VAZIAS DE HADES

Já estava cansado disso tudo, inclusive dessa luta sem sentido. Kai sentiu uma dor irradiar de sua perna direita atrás do joelho. Ele se virou e encarou o guarda assustado.

 

O guarda olhou para Kai, atordoado e ressentido. 

 

Talvez sua intenção fosse fazer Kai pender, mas não funcionou. Apertando bem o cabo de sua porrete, ele ergueu acima do ombro e desceu-o de novo. Kai, no entanto, ergueu a mesma perna e chutou o guarda no peito. 

 

O coitado voou se chocando com as fileiras de guardas que se aproximavam. O cerco se fechou.

 

O som do ar sibilou, e Kai se virou bem a tempo de aparar uma flecha na direção de sua cabeça. Ele encarou o cabo longo e as penas, até mesmo a ponta perfeitamente curva e simetricamente afiada. 

 

Mesmo que não usasse chi, ele ainda tinha melhorado muito seus reflexos. Não estava tão vulnerável quanto quando perdeu o núcleo. 

 

Mas uma flecha? Sério?

 

Um dos guardas se virou para onde a flecha veio e bradou feito louco. Kai ergueu a sobrancelha. Ele estava repreendendo quem quer que tenha tido essa ótima ideia. 

 

Ignorando isso, Kai notou o cerco dar um passo à frente, mesmo que o outro estivesse repreendendo-os. 

 

Kai franziu o nariz e correu. Enquanto avançava sobre a avalanche de guerreiros encapuzados, a mente dele tornava a pensar em tudo isso. 

 

O ressentimento com os Murphy, os meninos fingindo-se de guardas, o sonho que ele teve…

 

Que, aliás, sumiu de sua mente. Ele sonhou com a antiga Atom, com o atonianos e sua cidade imperiosa… mas ele esquecia de seus rostos. Isso não deveria acontecer. 

 

Agora a mente de Kai se afundava em pensamentos e indecisões, ofuscadas e inebriadas pela estranha sensação de não pertencimento. A ignorância era uma dádiva. Sim, era.

 

Porque agora que percebeu todo o conluio, notou que ele mesmo era uma farsa. De novo, quantos de seus pensamentos eram de verdade seus?! Quantas de suas vontades, seus sonhos, suas intenções, interações. 

 

Até mesmo a decisão de ir embora da Orquídea foi influenciada. Sim, porque ele queria ficar. Ele queria estar com Fioled, porque aquela fora a primeira vez que se sentiu pertencido, mesmo que boa parte dos Vitanti não o quisessem por perto. 

 

Mas ele decidiu ir, confiante de que fora uma decisão sua, confiante de que deveria viver sua vida e descobrir seus próprios caminhos. Uma fúria latente irradiou dentro dele. 

 

Cerrando os dentes, Kai apertou seus punhos, não mais segurando a mão. 

 

“Me pergunto quantas vezes dancei ao som do titereiro, me deixando levar pela manipulação! Bastardo estúpido e condescendente!” Kai gritava consigo mesmo internamente, irado. 

 

De repente, era como se Kai estivesse à beira do abismo, com os pés tremendo sobre o vazio da incerteza. 

 

Mas havia uma âncora prontamente fluindo a partir de suas costas. Era a raiva acumulada em seu peito, uma chama ardendo sem parar, consumindo tudo que encontrasse pelo caminho. Ele havia sido feito de bobo, e essas crianças também. Dane-se se devia ou não se importar. 

 

Ele havia matado e quase morrido, jurando ser sua própria vontade. Foi tolo em não ver. 

 

Kai olhou ao redor. Ele podia sentir o medo irradiar daquelas crianças. Crianças como ele. Que sentido havia em tanta tristeza? Tanta morte, tantas missões, tanta luta, tanta guerra, tantas batalhas. 

 

Havia muita empatia, mas só da parte dele. Kai achava que tinha noção do mundo ao seu redor, que poderia suportar suas dores, que poderia atender às expectativas. Dos vermelhos. 

 

E ainda assim…

 

Algo nele havia mudado. Algo dentro de sua mente. Depois de tê-la revirada duas vezes, algo deveria mudar. Era um feitiço…? Um laço intrínseco que o fazia querer agradá-los, mesmo inconsciente?

 

Algo mudou. Pela primeira vez, ele parecia sentir isso. E qual foi o passar de página, o virar de chave? O que fez ele se tocar?

 

Ver o menino atoniano? Ver o rosto retorcido por alguma mácula daquele outro guarda? Ver que a maldade só pode ser combatida com mais maldade? Porque a vida não é um faz de conta, ela é real.

 

Não há nobreza na morte de outra pessoa, na guerra e no empilhar de tesouros. No possuir terras, no possuir riquezas. No possuir pessoas. 

 

Não há nobreza...

 

Mas o mal pode se pagar com o mal. E uma guerra é só um teste de resistência para decidir quem se corrompe primeiro. Quem enlouquece primeiro. Porque não existe isso de se rebaixar. E Kai percebeu isso. Ele entendeu que podia sentir raiva, ira e tudo o que queria sentir. Não havia filho da puta nortenho nenhum que impediria isso. 

 

Ele olhava ao redor e via um mundo que parecia estar girando sem sentido, um carnaval de hipocrisia e mentira. As pessoas sorrindo e rindo nas grandes cidades, enquanto mercenários matavam a bel prazer uma raça que se escondia por medo de ser morta, escravizada e quem sabe o que mais. 

 

Pessoas aquém de um povo vivendo no subúrbio e morrendo de fome, sendo enganado e molestado por um falso lorde, um sujeito vil e asqueroso. Nojento.

 

Irmão ressuscitando irmão, usando magia proibida. 

 

Meninos lutando guerras e se enfurnando em pedras, com medo de enfrentar o desconhecido e sendo o fio último entre o fino fio da navalha e a morte iminente. 

 

"Mas agora eu percebi. Esses sorrisos servem para mascarar a verdade. Eles também são como marionetes, dançando ao som de uma música que não podem ouvir."

 

O cerco se fechou. Os guardas ergueram suas lanças e elas vibraram eletricidade, iluminando os intervalos escuros entre um alarme e outro. 

 

"…Mas quem é o titereiro que move os fios? Quem é o maestro que conduz a orquestra da ilusão? Ninguém sabe, ou melhor, ninguém quer saber. É mais fácil acreditar que somos os mestres do nosso próprio destino."

 

Kai recebeu um forte golpe na perna esquerda e finalmente pendeu sobre um joelho. Ele uivou de raiva, seus pensamentos ainda envoltos na ilusão e na orquestra. Ele se virou para socar com o punho contrário à perna machucada, mas seu braço foi agarrado por algo…

 

"Finalmente enxergo as cordas. Sinto o peso dos fios que me movem. Sei que não sou livre, e reflito sobre isso... Sei que não sou o autor de minha própria história. E isso é um pensamento terrível, um pensamento…"

 

Ele ergueu o rosto e encarou o guarda erguer um porrete e o acertar no rosto. Sangue voou, e uma dor de cabeça o atingiu, fazendo-o perder a linha de pensamento. Kai apertou os olhos e segurou a linha, mantendo a sanidade. 

 

"…que me faz questionar tudo o que sempre acreditei. Se não sou eu quem move os fios, então quem? É o destino? O acaso? Ou é algo mais sinistro do que estou disposto a admitir?"

 

Uma dor irradiou de suas costelas, Kai fechou os olhos, irritado com tudo, principalmente pelas algemas que o impossibilitavam. Seus braços foram controlados, mas ele ainda era forte… muito forte. Kai se ergueu sob os gritos dos guardas e cabeceou para trás, sentindo algo se quebrar ao toque. Cabeceou para frente, desta vez sua testa se abriu e mel escorreu. 

 

Ele pensava ser o dono do seu próprio destino, por isso ficava levemente irritado quando conversava com os vitanti. Eles acreditam no destino. E Mael lhe falou sobre o seu. O destino era algo já definido, mas ele tinha vários caminhos, e só dependia de cada um, daqueles com determinação forte o bastante, para seguir e construir o seu caminho. 

 

Kai fechou os olhos sentindo dor e ressentimento. Ele era prisioneiro de sua própria existência. Uma vida que parecia predeterminada, como se ele seguisse um roteiro escrito por outra pessoa… por deuses… Protetores. Ele estava cumprindo só um papel, outra vez… um papel que não escolheu pra ele mesmo. A sensação de impotência é sufocante. 

 

Ele foi empurrado para baixo de novo, desta vez os dois joelhos no chão. Sangue jorrou e sua voz se ergueu num urro. Seus braços foram esticados enquanto algemas eram reforçadas, mas Kai se remexia. Ele recebeu socos e pontapés, sentindo feridas se abrirem. Tentou se desvencilhar de um toque e sua blusa se abriu, revelando a grande cicatriz doente e verde. Aberta, sangrando… como alguém conseguia estar viva? 

 

Um rasgo se iniciava no quadril esquerdo e ia até a bacia direita, riscando seu abdômen. Cruzando essa cicatriz havia uma imensa e dolorosa fenda vertical, que ia do umbigo até o pescoço. Parecia ter sido aberto por uma foice profunda. Estava doente, mais doente que o corte de baixo. O golpe havia deixado uma marca profunda, como um rio de fogo que havia queimado e endurecido. 

 

A pele estava enrugada, feito couro queimado, e profunda, lisa, a cicatriz parecia pulsar com uma dor contida.

 

Kai desde sempre carregava consigo um peso, um peso que o fazia sentir como se estivesse carregando o mundo em suas próprias costas. Não tinha como falar sobre isso. Não existiam palavras para essa dor. Mas estava lá, escondida em algum lugar dentro dele. E ele percebeu e notou. A encontrou. 

 

Ele urrou mais, irado, ensandecido. Sua mente estava a um passo do colapso. 

 

Kai gritou outra vez, juntando toda a energia contida dentro de si. Não ia se render. Nem fodendo. 

 

As veias de seus braços ousaram pulsar e irradiar luz incontida. A energia queria sair. Já tinha ficado tempo demais dentro dele. Tinha de se renovar. 

 

Kai manteve o grito, finos fachos de luz escapando por suas fendas da cabeça. Ele fechou os punhos enquanto os guardas se encaravam, atordoados.

 

O rosto do guarda apareceu na mente de Kai. Havia fendas onde deveria ter um nariz. Seu rosto estava derretido, finos fachos de cabelo esbranquiçado sobre a cabeça. Seus lábios eram finos, pregados. Não tinha orelhas. Que dor aquele garoto teve de passar?

 

As algemas pulsaram, tentando conter a energia que queria sair. Mas não era o bastante. Não seria…

 

De repente a energia quebrou as algemas, e os gritos de Kai se tornaram maiores. Mais horrorosos, mais vis. Profanados. Magoados. Era como um choro incontido. Mas não havia lágrimas. 

 

Uma onda pulsou, tendo Kai como núcleo. Ela atingiu os guardas, que foram jogados nas paredes distantes e arqueadas. 

 

Kai se elevou no ar enquanto as ondas de chi se chocavam com as paredes, teto e chão formando fendas e buracos de longos diâmetros.

 

Sua mente estava um caos, enraivecida, porém lúcida. Magoada, porém inquebrável. 

 

Kai se lançou voando no túnel em alta velocidade, ergueu uma mão e destruiu com um fóton a parede. 

 

Ele saiu do buraco empoeirado dando uma pirueta e irradiando toda a energia contida em raios roxos e vis. 

 

Sua mente estava um abismo, a escuridão querendo se soltar… 

 

Abaixo dele, havia uma enorme rede de pontes de pedra cruzando alto, mas não o suficiente para alcançar o teto. Abaixo dessas pontes, torres eram erguidas em monólitos de pedra bruta… não, eram colunas. E haviam paredes separando algumas colunas, como se fosse um labirinto. Um formigueiro…? 

 

…querendo dominar e…

 

Todas as colunas eram muito próximas uma das outras, mas havia uma simetria ordenada entre elas, com pequenos espaços que não as faziam ser geminadas. 

 

As paredes eram distantes dessas colunas, e várias pontes no alto cruzaram-se até elas. Kai girou no próprio eixo e deu de cara com uma construção na rocha vermelha que ele adivinhou ser de uma estrutura na pedra. Era a frente de um enorme palácio construído perfeitamente. 

 

Kai olhou para baixo e viu pequenas pessoas na frente do palácio. Numa espécie de pátio, que tinha várias pontes baixas que ligavam à rede intrincada das labirínticas colunas. Haviam pessoas estranhamente vestidas encarando Kai e sua destruição feita mais acima. 

 

Ele pousou o olho num deles e seu nariz franziu. Raiva. 

 

…destruir. 

 

Ele viu seu alvo e voou em uma alta velocidade assustadora. 

 

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