A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 10: Dualidade

"Assim como a luz lança uma sombra, nossas ações e escolhas lançam sombras que moldam nosso destino de maneiras profundas e muitas vezes imprevisíveis."

(Entre as Sombras e a Luz, Ren Yamagawa)

 

4ª Lua Cheia do ano 1647

Lua do Retrocesso, dia 9

 

 

Shin saiu da tenda e foi imediatamente envolvido pelo vento frio da noite. Os eventos do último ano quase o levaram à loucura, mas naquela noite a pressão parecia ainda maior. Por isso, decidiu afastar-se do acampamento, buscando o alívio de uma respiração mais calma. Sob o brilho prateado da lua, caminhou pela encosta da montanha.

Parou quando seu corpo começou a tremer.

A rebelião já se estendia por anos, mas este havia sido o primeiro combate realmente expressivo, um marco importante sob sua liderança. Sentou-se sobre as rochas, inspirando profundamente.

À sua frente, o vale se estendia, manchado de vermelho. O cheiro pungente de ferrugem era carregado pelo vento.

Não importava quantos homens ele tivesse visto morrer, ele precisava continuar liderando todos os outros, garantindo que o máximo possível sobrevivesse mais um dia. Apesar da vitória, não podia deixar de pensar em todas as vidas perdidas.

Esta era a parte mais difícil. Aceitar que as pessoas estavam dando suas vidas por ele. Em troca, ele deveria recompensá-las cumprindo a profecia e retornando ao seu lugar de direito no trono. Deveria ser um bom governante, capaz de compensar todos os anos de sofrimento que eles haviam suportado.

— Eu não sou essa pessoa. Não sou o que eles pensam — sussurrou para si mesmo, as palavras flutuando no ar gelado. — Não passo de um assassino.

Dentro dele, a batalha era constante: a necessidade de proteger seu povo versus a culpa pelas vidas que tomou. Cada decisão, cada ordem dada, era uma lâmina afiada cortando seu próprio ser.

As luzes do acampamento brilhavam a alguns metros de distância, mas o conforto que elas deveriam oferecer estava longe de seu alcance.

— O que fariam se soubessem do meu passado? — Sua voz se perdeu no vento.

A lua parecia brilhar mais forte, como se o estivesse julgando. Shin fechou os olhos, conectando-se com a deusa.

— Senhora Izanora, estou perdido. O que devo fazer?

— Mantenha Yuri por perto e siga seu destino como líder. A clareza virá no momento certo. — A voz suave da deusa soou em sua mente, transmitindo a tranquilidade que ele tanto precisava.

Com a confiança restaurada, Shin se levantou e retornou ao acampamento, decidido a cumprir seu papel, mesmo que tudo não passasse de atuação.

 

***

 

Yuri já estava no passado há quase duas semanas.

Em sua época ele havia vivenciado cinco dias angustiantes. Ele não sabia como lidar com a experiência e, embora tivesse certo medo de retornar, também temia nunca mais viver algo tão extraordinário.

Passou suas horas livres lendo e estudando sobre a história de Kasumi nos escritos de Krisha Mari que Otsu lhe enviara. Então, numa noite enquanto estava deitado na cama, no limiar entre o mundo dos sonhos e a realidade, se viu transportado novamente para aquela mesma tenda. Para a noite em que estivera no passado pela última vez. Quebrando de uma vez por todas, sua teoria sobre a ligação com um objeto do passado.

Para os outros, no entanto, parecia que ele nunca havia desaparecido. Apenas acharam estranho que seus ferimentos estivessem quase curados e que suas roupas estivessem diferentes. Como ele nunca deixou a tenda, não havia muito o que questionar.

Com o acampamento desmontado, eles partiram de Vale Profundo rumo à Kagestsu, onde se reuniriam com os líderes do clã Yamagawa. No entardecer do terceiro dia, Yuri seguia a marcha sob escolta de Akemi, montado em um cavalo emprestado. O ritmo lento era ditado pelos feridos, que eram carregados em liteiras enquanto o vento do outono os envolvia.

De repente, Shin que liderava à frente com sua guarda pessoal, parou bruscamente. Algo se aproximava no horizonte. Uma névoa de cor esverdeada que cobria todo o caminho à diante. Yuri notou ao mesmo tempo, passando apressado por entre as pessoas para conseguir ver melhor.

— Droga! — exclamou saltando do cavalo. O que via era realmente preocupante. Uma névoa venenosa, uma arma impiedosa usada pelo império, que matava indiscriminadamente. Estava se aproximando rápido demais para que pudessem escapar. Tão rápido quanto as batidas de seu próprio coração. — Todos, no chão! Cubram o nariz! Se puderem, nem respirem! Depressa!

Shin segurou o ombro de Yuri com força.

— O que está fazendo? Ficou louco?

— Aquela névoa é mortal — respondeu Yuri, sem paciência. — Se não fizermos o que estou dizendo, todos vão morrer. Não tenho tempo para explicar, apenas confie em mim agora.

Shin hesitou por um segundo, enquanto sua guarda se aproximava para conter Yuri.

— Façam o que ele disse. Passem a mensagem para aqueles que estão na retaguarda — ordenou Shin, lançando um olhar desconfiado a Yuri antes de rasgar uma faixa de sua roupa e cobrir o nariz, deitando-se em seguida.

Yuri só teve tempo de dar uma última olhada no exército atrás dele, a névoa já estava os alcançando. Tapou seu próprio nariz, e se jogou no chão, rezando para que fosse o suficiente.

 

A névoa venenosa avançava implacável, e não apenas os homens sucumbiam ao seu toque cruel.

Os cavalos, em pânico, relincharam alto, alguns se agitando desesperados em suas rédeas, outros caindo de lado como se golpeados por mãos invisíveis. O som dos cascos batendo no chão, misturado aos gritos sufocados dos feridos, criava uma sinfonia de horror. Alguns animais, ainda vivos, empinavam tentando escapar, mas logo tombavam, seus corpos pesados estremecendo enquanto a vida os abandonava.

Cada segundo parecia uma eternidade para Yuri. O ar pesado e sufocante envolvia todos ao redor, tornando cada respiração um desafio.

 

Quando finalmente a névoa começou a se dissipar, foi como se o mundo retomasse sua existência lentamente.

Yuri mal conseguia sentir seu corpo, a exaustão e o medo ainda pulsando em suas veias. Uma dormência o consumia, e ele temia que, de alguma forma, o veneno tivesse ultrapassado o tecido. Quando tentou mover o braço e descobriu que ainda o controlava, quase chorou de alívio. Virou a cabeça, inspecionando os arredores. Alguns movimentos o tranquilizaram. Estavam vivos. Pelo menos a maioria estava.

Levantou-se com cuidado, ainda pressionando o tecido contra o nariz. Os sobreviventes se erguiam lentamente, tossindo, desnorteados.

Yuri olhou ao redor enquanto um cheiro acre invadia suas narinas. Era terrível.

Corpos estavam jogados no chão como bonecos de pano descartados, contorcidos em agonia. Homens e cavalos, lado a lado na morte silenciosa. O cenário era grotesco. O vapor úmido ainda pairava rente ao solo, como se zombasse dos que haviam resistido.

Ele sentiu uma náusea crescente e, por um momento, cambaleou, buscando apoio em seus próprios joelhos. “Não é assim que deveria ser”, ele pensou, tentando se lembrar das histórias antigas que havia lido sobre essa época. Mas as palavras pareciam vazias agora, distantes demais do horror que via diante de si.

Ler, era diferente de vivenciar. Aquilo era pior que um pesadelo.

Seus olhos se fixaram em um jovem que estava caído próximo a ele, e se perguntou se teria sido capaz de salvá-lo, se estivesse no presente, com seus instrumentos médicos. Mas ali, no passado, ele era tão impotente quanto qualquer outro.

De repente, uma mão pesada pousou em seu ombro, assustando-o. Era Shin. Ele não disse nada, mas não precisava. Seus olhos carregavam tristeza, mas também uma silenciosa gratidão. Poderia ter sido muito pior.

 

***

 

Dias depois, chegaram à Kagetsu, a vila subterrânea do clã Yamagawa. Se Yuri não estivesse tão abalado pelos horrores recentes, teria ficado maravilhado com a beleza daquele lugar. A vila parecia uma obra de arte, com suas estruturas arredondadas, feitas de um material que absorvia a luz e se fundia perfeitamente com a escuridão do ambiente. Lanternas azuis iluminavam o caminho, conferindo ao local um ar místico.

Os túneis profundos entrelaçavam-se como veias, conectando setores da vila. Salões grandiosos surgiam em pontos estratégicos, adornados com relevos que narravam momentos de devoção religiosa. Um deles mostrava Izanora, a deusa da lua, concedendo a magia da sombra ao primeiro líder do clã Yamagawa.

Apesar da profundidade, Kagetsu ostentava um sistema de ventilação tão eficiente que o ar era surpreendentemente puro. Seus habitantes, de pele pálida e cabelos escuros, moviam-se com uma graça e precisão quase sobrenaturais. Cada gesto parecia uma homenagem às suas tradições ancestrais, num lugar que respirava história e magia, escondido nas entranhas da terra.

Agora, uma semana após o incidente com a névoa venenosa, Yuri estava sentado no chão de um dos salões de treinamento, observando atentamente cada movimento de Shin. Desde sua chegada à Kagetsu, suas roupas pessoais foram substituídas por trajes simples de tecidos leves, em tons discretos de cinza e preto — vestimentas comuns entre os membros do clã. Não era tratado como um prisioneiro, no sentido mais estrito da palavra, mas se sentia como um. Sendo arrastado para lá e para cá, sempre com alguém por perto o observando. Por isso ficou bastante surpreso quando foi “convidado” para acompanhar o treino do príncipe.

— Como assim, você não domina a magia do fogo? — A voz de Yuri saiu mais alta do que pretendia. Em sua mente, o último sobrevivente do clã do fogo não dominar essa habilidade era quase inconcebível, uma contradição em si mesma.

O salão estava envolto na penumbra, com seu teto alto iluminado por lamparinas que emitiam uma luz azul suave. Uma brisa leve percorria o ambiente, trazendo consigo o frescor da nascente que corria ao longo da lateral esquerda.

Shin abaixou a cabeça, evitando o olhar de Yuri, enquanto erguia lentamente o braço direito envolto em bandagens. Seus olhos fixaram-se na própria mão, demonstrando frustração e impotência, um lado dele que Yuri nunca tinha visto.

— Descobri isso há pouco. Ainda estou aprendendo a controlar — admitiu Shin.
— Passei quase minha vida inteira acreditando ser apenas um membro do clã Yamagawa. A magia da sombra despertou cedo, e eu a aperfeiçoei por anos. Mas a magia do fogo despertou só alguns meses atrás. E aprender sozinho não é fácil — continuou, indicando um livro no canto. — Esse é meu único guia. O clã Ito tinha uma cultura totalmente diferente. As bases da magia do fogo são bem diferentes do que estou acostumado.

Só agora Yuri percebia o quanto tinha sido rude ao expressar sua surpresa. Não devia ter sido nada fácil para Shin descobrir que era alguém totalmente diferente do que acreditava ser.

— Desculpe. — disse, tentando afastar a tensão que pairava no ar, enquanto a luz azul das lamparinas tremeluzia ao redor. Seus olhos cruzaram com os de Shin por um instante, refletindo um conflito entre arrependimento e determinação. — Eu... não quis te desrespeitar.

Shin não respondeu de imediato. Apenas caminhou até a nascente e se abaixou para lavar o rosto, ainda coberto de suor do treino matinal. Encarou seu reflexo na água, como se estivesse tentando se lembrar de algo.

— Quando descobri que era o herdeiro do clã Ito, fugi. Achei que não seria capaz de suportar essa responsabilidade. Abandonei a liderança dos Lobos Divinos e fui embora — ele fez uma pausa, sentindo o peso em cada palavra. Sua respiração ficou mais lenta, carregada. — Passei meses vagando, me misturando com as pessoas comuns, vivendo a brutalidade da guerra ao lado delas. Queria fazer algo, aliviar a culpa que sentia, mas eu mesmo estava perdido, sem confiança... sem magia. Só aos poucos percebi que, por mais pesado que fosse, o legado do meu nome não poderia ser ignorado. Aceitar que, como governante, minha vida não me pertence mais. Cada escolha, cada sacrifício, ficará marcado para sempre, e essa responsabilidade... não pode ser dividida. — Sua voz carregava um peso que superava seus próprios medos. Naquele momento, ele não era apenas Shin, mas o líder que estava destinado a ser.

Yuri sabia, por causa de seus estudos recentes, que durante muitos anos a rebelião foi liderada por Renji Yamagawa, mas alguns meses atrás Shin finalmente assumira a liderança.

— Acho que consigo entender. — Yuri falou, desviando seus olhos para o livro que Shin acabara de mostrar, tentando esconder a preocupação que crescia em seu peito. — Posso dar uma olhada?

Shin acenou com a cabeça em concordância, e Yuri caminhou até o livro, segurando-o com as duas mãos. Era um livro pesado, suas folhas feitas de um material semelhante a pergaminho. Ele foi passando as páginas devagar e se surpreendeu com o que encontrou ali. As instruções das técnicas eram bem detalhadas, e apesar de ter sido escrito para alguém que já estava familiarizado com a magia do fogo, ele conseguia entender cada movimento que estava desenhado ali. Ele conseguia entender por que os conhecia. Havia os praticado tantas vezes no passado, mas infelizmente abandonou a academia muito antes de dominar completamente a técnica.

— Acho que posso ajudar... mesmo sem entender muito de magia — ofereceu Yuri, hesitando levemente.

Shin aproximou-se enquanto Yuri observava as imagens gravadas nas páginas do livro.

— Esses gestos exigem força e precisão. Talvez funcione se tentar canalizar a chama dessa forma — orientou Yuri, entregando o livro enquanto executava uma série de movimentos em sincronia com sua respiração.

Shin observou atentamente e, com um aceno, repetiu a ação. A princípio, a chama pareceu relutante, depois, aos poucos, começou a responder ao comando sutil de Shin. De repente, as chamas explodiram em suas mãos, como uma onda de calor descontrolada que se espalhou pelo salão em um círculo ameaçador. Yuri reagiu instintivamente, jogando-se ao chão enquanto o calor passava sobre sua cabeça, sentindo o cheiro de fuligem no ar.

— Bem, já é um começo. — Ele comentou com um sorriso nervoso. — Ajudaria bastante se eu entendesse de magia.

Shin começou a andar de um lado para o outro, claramente perdido em pensamentos.

— A magia... — começou ele, fazendo uma pausa breve, como se estivesse buscando as palavras certas. — É... como um rio invisível. Flui pelo mundo todo, conectando tudo, sabe? Mas nem todo mundo consegue acessá-la, e mesmo quem consegue, precisa... — Ele gesticulou vagamente. — Precisa de dedicação. Prática.

Yuri inclinou a cabeça, curioso.

— Então... não basta só nascer com talento? — provocou, arqueando uma sobrancelha.

Shin riu baixinho.

— Não, definitivamente não. — Com um rápido movimento dos dedos, ele criou uma pequena chama. — Veja, a magia do fogo, por exemplo. Você precisa entender o elemento, requer uma compreensão profunda e uma afinidade especial com a Chama Divina. Não é só acender uma tocha mental. — A chama dançou em seus dedos antes de desaparecer. — E a sombra... — As sombras ao redor começaram a se mover, subindo pelo braço dele. — Isso é mais sutil. Envolve emoção, exige um profundo conhecimento e fluidez da Sombra Arcana.

Yuri balançou a cabeça, tentando processar.

— E todos os outros elementos são assim? Tipo, cada um com sua... personalidade?

Shin deu de ombros, dispersando as sombras com um gesto.

— Basicamente. Cada um tem suas peculiaridades. Água, ar, terra... todos exigem afinidade e prática. Mas o mais importante é o controle. — Ele deu uma risada curta, amarga. — Se você exagera, acaba esgotado. É como se forçasse o corpo além do limite em um exercício intenso, sem preparo. Nada disso é infinito.

Yuri se acomodou no chão, observando Shin com mais seriedade.

— Então, além de tudo, você tem que estar em forma. Treinar como se fosse lutar sem magia. Faz sentido.

Shin sentou-se ao lado dele, acenando com a cabeça.

— Exato. Magia é uma ferramenta, mas a base... é o corpo. Se você não consegue levantar uma espada, a magia não vai fazer isso por você.

Yuri riu, cruzando os braços.

— É... no final das contas, não tem atalhos, né?

Shin deu um sorriso cansado.

— Não, não tem.

— Shin! — A voz feminina cortou o ar de maneira afiada, acompanhada pelo som de passos apressados que ecoaram pelo salão silencioso.

Yuri reconheceu o tom imediatamente — era a mesma voz da batalha, o último som que ouviu antes de desmaiar naquela noite.

A mulher entrou no salão, os olhos fixos em Shin, carregando uma urgência que deixava claro que algo estava errado, com os cabelos negros escorrendo em volta dos ombros e a máscara cobrindo o rosto. Yuri não a via desde aquela noite e quase se esquecera da sensação inquietante que ela causava.

Shin se levantou e foi até ela.

— Haruka, o que houve? — Ele falou com gentileza.

— Desculpe interromper, Shin, mas o Senhor Renji e a Senhora Ayame aguardam por você no escritório.

— Yuri, preciso me encontrar com os líderes do clã. Podemos continuar mais tarde? — disse Shin, lançando um olhar de lado para Yuri, que permanecia sentado no chão.

“Como se eu pudesse impedi-lo de fazer algo.” Yuri apenas acenou positivamente com a cabeça.

Depois que saíram, voltou ao seu lugar e se acomodou com o livro de Shin, enquanto o esperava.

Mas ele não retornou naquele dia.

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