A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 11: Sob o Véu

“Responsabilidade não é uma escolha que fazemos, mas um fardo que aceitamos. Carregá-la não nos torna mais fortes, mas nos faz lembrar do preço de cada decisão que tomamos.”

(O Caminho da Espada Silenciosa, Kaelan Durin)

 

4ª Lua Cheia do ano 1647

Lua do Retrocesso, dia 21

 

 

A forma como o príncipe foi convocado pelos líderes, deixou Yuri desconfortável. Embora os últimos dias tivessem sido relativamente tranquilos, ele não conseguia ignorar o que estava acontecendo do lado de fora. A lembrança da névoa venenosa continuava a assombrá-lo, e ele sabia o que estava por vir. Sabia, mas não tinha o poder de alterar o que parecia inevitável.

Dois dias se passaram sem notícias de Shin. O clã se preparava para o ritual marcado para o primeiro dia da Lua da Sombra, e Yuri passava a maior parte do tempo isolado em seu quarto subterrâneo. Apesar do conforto, a falta de janelas o sufocava. Aquela ausência de luz natural fazia o espaço parecer mais uma prisão, e ele frequentemente escapava pelos túneis, buscando qualquer sensação de liberdade.

Nos últimos dias, um número crescente de pessoas chegava à vila. Todos os clãs vassalos do Yamagawa compareceriam ao ritual, o que transformava a fortaleza em um caos constante. Yuri, avesso à agitação, preferia se esconder em locais mais tranquilos, longe da multidão. No subterrâneo o tempo parecia escoar sem que ele se desse conta e com a chegada do dia do ritual, um sentimento de alívio tomou conta de Yuri. Finalmente, ele teria a chance de escapar do confinamento subterrâneo e respirar o ar fresco da superfície.

O tambor taikô ressoava profundamente através do templo rebaixado, suas batidas reverberando pelas paredes úmidas no coração da Floresta Sombria, criando uma atmosfera de solenidade e mistério. Era uma cerimônia antiga, celebrada há séculos para honrar a deusa Izanora e a Sombra Arcana que havia abençoado o clã. Lanternas azuis e velas brancas delineavam o caminho sinuoso, lançando um espetáculo hipnotizante de luzes dançantes que refletiam nas folhas das árvores que cercavam o templo. O clã Yamagawa, acompanhado por seus vassalos, formava uma grande massa de corpos ao redor da cerimônia. Yuri se sentia um gigante ali. Os líderes estavam posicionados no centro, seguidos por sacerdotes que carregavam uma bandeira com a lua crescente — o símbolo da família. Vestidos em trajes cerimoniais impecáveis, assumiram seus lugares em meio à multidão.

Renji Yamagawa, o patriarca do clã, posicionava-se majestoso diante do altar central, vestido com um manto negro cerimonial que representava o poder e a lealdade do clã à deusa. Sua presença dominava o ambiente, fundindo-se com as sombras ao redor, justificando o título de Sombra Principal. Ao lado dele, Ayame Yamagawa parecia flutuar sobre o solo, seus passos leves e graciosos.

O ôfuda queimava suavemente no altar, espalhando a fragrância do incenso que subia em espirais no ar. Shin surgiu pelos portões do templo, trajando uma túnica cerimonial preta e vermelha, adequada à sua posição. Seu cabelo estava preso sob o chapéu eboshi, e sua expressão, mais séria do que de costume, fazia Yuri perceber o quão diferente ele parecia. Diante dele, estava um verdadeiro nobre. Ao lado de Shin, uma jovem de beleza delicada, vestida com uma túnica que lembrava o céu estrelado, caminhava com serenidade. “Quem será ela?”, pensou Yuri.

Renji ergueu seu tachi, uma espada tradicional que pertencia ao clã Yamagawa há gerações, iniciando a prece. Sua voz era profunda, carregada de uma gravidade solene que refletia o peso das décadas de luta por sobrevivência. Era uma demonstração de respeito pelas vidas perdidas, tanto na última batalha quanto no incidente com a névoa.

— Senhora Izanora, deusa da lua e das sombras, guie nossas espadas e proteja nossas almas. Que sua benção seja nossa força na escuridão que está por vir.

Os chefes dos clãs vassalos, alinhados em semicírculo ao redor do altar, se curvaram em reverência, murmurando preces enquanto depositavam seus magatamas aos pés de Renji. As palavras ditas eram mais do que um simples ritual, eram um pacto de sangue, um juramento que não poderia ser quebrado. Ao observar aqueles gestos, Yuri se deu conta de que a tradição não era apenas uma prática espiritual, mas um alicerce para a rebelião.

Quando a oração terminou, Renji fez uma pausa, observando os presentes. O fogo do altar refletia em seus olhos. Em um gesto discreto, ele se voltou para Shin, que então assumiu seu lugar à frente do altar.

— Hoje celebramos a Senhora Izanora — começou Shin, sua voz ecoando pelo salão. — Mas não podemos esquecer porque estamos aqui. A sombra que nos protege também é um lembrete das trevas que ameaçam consumir nossa terra.

Shin pausou, seus olhos fixos nos líderes vassalos à sua frente. Yuri seguiu seu olhar, sentindo o peso invisível que pairava sobre todos ali. Aqueles homens sabiam a verdade. Shin não era apenas o líder da rebelião. Ele era o príncipe exilado, o último herdeiro de um império caído, e a esperança de todos repousava sobre seus ombros.

— Estamos à beira de uma nova era — continuou Shin, sua mão firme repousando sobre o punho da espada, como se buscasse ali a força que não podia mostrar abertamente. — Mas, para que essa era nasça, precisamos unir nossas forças como nunca antes. O império está em ruínas, fragmentado... e, se não agirmos agora, seremos nós os próximos a sucumbir ao caos.

Shin ergueu a cabeça, seu olhar era firme como aço. — Amanhã, partiremos para o norte. Nossa missão: formar uma aliança com o clã Ishikawa.

O som grave dos tambores ressoou mais uma vez, fundindo-se aos gritos de apoio da multidão. Mas, por trás do fervor da celebração, Yuri enxergava a verdade. O ritual era apenas uma fachada. Sob as camadas de cânticos e oferendas, uma nova fase da rebelião estava sendo desenhada, e as decisões tomadas naquela noite mudariam o curso da guerra.

Yuri assentiu em silêncio, sentindo o peso de tudo aquilo. Ele compreendia as implicações: o caminho que se abria diante deles não oferecia retorno.

Perdido em seus pensamentos, Yuri mal percebeu a presença de Akemi se aproximando. Levantou os olhos apenas quando ela já estava a poucos metros de distância. Sem sua habitual armadura, trajando as vestes simples do clã, ela parecia diferente. Seus cabelos prateados brilhavam sob a luz da lua, e por um instante, Yuri achou que estava diante da própria deusa Izanora.

Era a primeira vez que se encontravam desde a chegada na vila Kagetsu.

— Aproveitando a vista? — Ela perguntou olhando ao redor.

— Ah... sim! — respondeu, tentando não gaguejar.

Ela deu um sorriso sutil, mas permaneceu sem olhar para ele. Por um momento Yuri pensou que ela não diria mais nada, mas estava enganado.

— Estava pensando... — Akemi começou ainda olhando à frente. — Nunca tive a chance de te agradecer.

Yuri arqueou a sobrancelha, sem saber onde ela queria chegar.

— Na verdade, eu não sabia se aquilo foi real ou se... — Ela hesitou, finalmente virando-se para encará-lo. Seus olhos refletiam algo mais do que simples gratidão. — Se não fosse você... Bem, acho que nunca teria a chance de saber.

— Então você se lembra?

— Sim, eu me lembro. — Ela estava sorrindo genuinamente agora.

“Calma aí? Será que acabei de dizer isso em voz alta?”

— No início tive dúvidas, cheguei a pensar que tinha sido um sonho, mas aí você disse que era médico e tudo fez sentido. — Ela concluiu.

Yuri não conseguiu evitar sua expressão de surpresa. Ele torcia para que ela se lembrasse dele, mas nunca pensou que isso realmente fosse acontecer. Então fez a pergunta que estava segurando a tanto tempo.

— E... está tudo bem? O ferimento?

— Foram dias difíceis, mas sim, estou bem. Já se passaram três meses, afinal.

Três meses... A diferença temporal inquietava Yuri novamente. As viagens ao passado permaneciam um enigma que ele ainda lutava para compreender. Quanto tempo se passaria na próxima vez? E se ele voltasse para uma época em que ninguém estivesse mais vivo?

Ele estremeceu ao pensar nisso.

— Você está bem? — Agora era Akemi que o observava com preocupação.

Yuri piscou, voltando à realidade. — Sim... Estou feliz que esteja tudo bem.

O clima entre eles ficou estranho de repente. Como se os dois esperassem por algo que nunca foi dito. Até que, finalmente Akemi respirou fundo, quebrando o silêncio.

— Na verdade, vim te avisar para arrumar suas coisas. Partiremos amanhã. — Disse ela, com uma voz suave, antes de se afastar com a mesma discrição com que havia chegado.

Yuri a observou se distanciar, sentindo o frio da noite envolver seus pensamentos. Algo no tom de Akemi, naquela breve troca de olhares, fez seu coração bater mais forte — uma mistura de incerteza e... esperança? Ele suspirou. Sentia-se dividido entre a curiosidade sobre o que não foi dito e o desconforto de não saber lidar com seus próprios sentimentos.

Ao retornar ao quarto subterrâneo, o silêncio parecia mais pesado do que nunca.

Yuri suspirou encarando o ambiente vazio. “O que ela quis dizer com arrumar minhas coisas”?

 

Na manhã seguinte, Shin bateu à porta de Yuri com um presente inesperado.

— Me senti tentado em testar seus conhecimentos com os cirurgiões daqui, mas não temos tempo para isso... Então pensei em testar o seu lado lutador, tome — disse ele, entregando uma espada embainhada nas mãos de Yuri.  

Yuri a segurou com surpresa, sentindo o frio do metal reverberar em suas mãos, o metal escuro que parecia absorver toda a luz da sala. Seus dedos traçaram os padrões sinuosos na empunhadura, como sombras... ou fumaça, e o peso da lâmina era familiar, quase confortável demais. Cada fibra de seu ser reconhecia a perfeição daquela arma, e isso o assustava.

— Eu... Não posso aceitar.

— Não se nega um presente de seu príncipe — disse Shin, um sorriso travesso suavizando a seriedade de suas palavras. — Além disso, no caminho, você pode precisar se defender. Há coisas piores do que ladrões por aí. — As últimas palavras saíram pesadas de seus lábios.

Yuri a manejou, percebendo que seus movimentos fluíam com uma precisão automática. No entanto, por mais que a espada parecesse moldada para suas mãos, algo dentro dele se contraiu. Aquela espada não era apenas um presente. Era um lembrete do destino que ele tentou escapar durante toda sua vida. — É... perfeita — murmurou, tentando disfarçar a faísca de empolgação que seu coração teimoso sentia.

 

 

Notas:

1. Ôfuda: Um amuleto ou talismã japonês feito de papel, madeira ou metal, geralmente associado a santuários xintoístas ou templos budistas. Eles são inscritos com nomes de deuses ou espíritos protetores e usados para atrair boa sorte, proteção e afastar espíritos malignos. O ôfuda é queimado em rituais para liberar a energia espiritual acumulada e devolver o amuleto ao mundo espiritual de forma respeitosa, encerrando seu ciclo de proteção ou bênção.

2. Chapéu Eboshi: Um chapéu tradicional japonês usado por nobres e guerreiros durante o período Heian (794-1185). Feito de tecido negro enrijecido, o eboshi tinha um formato alongado ou curvado, simbolizando status social.

4. Tachi: Um tipo de espada japonesa mais curva e mais longa que a katana, usada principalmente durante o período Heian e Kamakura (1185–1333). Ela era tradicionalmente empunhada com a lâmina voltada para baixo, ao contrário da katana, que é usada com a lâmina para cima.

4. Magatamas: Antigos ornamentos japoneses em forma de vírgula, feitos de pedras preciosas como jade. Com origem no período Jomon (14.000–300 a.C.), eles eram usados como amuletos e também tinham significados espirituais e religiosos, muitas vezes associados à realeza e ao poder divino.

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