Volume 1
Capítulo 22: Em Chamas
“Magia é o fio que tece o mundo, mas puxar esse fio sem cuidado pode desfiar a própria realidade. Cada ato é uma escolha entre equilíbrio e caos.”
(O Coração da Terra e do Céu, Islen Mareth)
8ª Lua Cheia do ano 1647
Lua da Luz, dia 14
Akemi sempre tinha coisas urgentes para se preocupar, algo que exigia sua atenção imediata. Mas ali, naquele momento, enquanto olhava as estrelas espalhadas no céu, ela sentia-se como uma pequena fagulha flutuando no vazio, tentando brilhar para não desaparecer por completo.
Ela pensava muito em Yuri ultimamente e começou a se perguntar como sua vida seria se tudo tivesse acontecido diferente. Como seria se ela não estivesse num caminho sem volta.
Nos últimos dias, haviam se aproximado mais do que poderia ter previsto. A interação casual entre eles agora era marcada por uma estranha familiaridade, uma conexão que a deixava confusa, mas de alguma forma confortável. Talvez estar em guerra devesse ser a única preocupação, mas era exatamente por isso que as pequenas coisas se tornavam mais importantes.
— Eu estava preparada para morrer — Ela murmurou para o vento morno da noite. — Antes de tudo isso. A guerra sempre foi a única coisa na minha mente. Mas agora... sinto medo de perder o que tenho. Nunca pensei que temeria perder alguém novamente. Não depois de tudo... — Ela deu um pequeno sorriso. Era fácil fingir que estava bem. Fácil como respirar. Mas aquelas palavras saíam pesadas, como se não quisessem se desgrudar de sua garganta. Por que seu coração estava doendo tanto? Ela deveria tê-lo arrancado fora a muito tempo, mas não, agora ele estava ali para lembrá-la de todos os fracassos de sua vida.
Yuri a encarou por um momento, parecendo surpreso. Depois desviou o olhar para os outros a frente, apertando as sobrancelhas, como se procurasse como responder aquilo, mas nenhuma palavra saiu.
— Não precisa dizer nada — completou Akemi baixinho. — Eu só precisava dizer isso pra alguém. Me desculpe...
Yuri se moveu ligeiramente, os dedos tocando de leve a manga de Akemi. Aquele toque breve era tudo que ele podia oferecer, mas, para Akemi, era o suficiente. Ela olhou para o céu uma última vez, sentindo o peso da noite sobre seus ombros antes de retomar o caminho ao lado de Yuri. Talvez nunca houvesse respostas para suas dúvidas, mas, naquele momento, as estrelas pareciam brilhar um pouco mais forte.
***
Nos dias seguintes, Yuri pôde sentir as coisas, aos poucos, voltando ao normal. Viajar na companhia de Kenji Ishikawa e seus homens se mostrava menos incômodo a medida em que se aproximavam de Ryokume. Akemi também parecia mais leve, sempre conversando animadamente com Hikari, quando esta não estava ocupada provocando Ryota. Era bom vê-la assim. Talvez tenha sido essa observação em específico que abrandou o peso que Yuri sentia. Mesmo assim, durante dias, ele voltou a ser o simples observador que costumava ser.
Shin permanecia inalterado, sua presença era uma grande chama que os guiava e envolvia com seu calor. E não tinha nada a ver com sua magia do fogo, ele era assim por natureza, envolvente, sua postura era despreocupada na maior parte do tempo, mas impunha respeito a todos. Para ele, a liderança parecia ser algo fácil.
Naquela manhã, o aroma fresco da brisa marinha se espalhava suavemente conforme o grupo contornava as margens do golfo. Raios de sol refletiam na água, espalhando pequenos feixes de luz entre as árvores que ladeavam o caminho trazendo uma estranha sensação de confiança. Pela primeira vez em semanas, Yuri começou a se acostumar novamente àquela rotina.
— Vamos parar aqui — anunciou Shin, afastando-se de Ryota e olhando em volta.
O grupo se reuniu em conversas baixas, enquanto as cabras pastavam tranquilamente por perto e eles se acomodavam para o desjejum. Se dependesse de Shin, seguiriam mais alguns quilômetros, mas ele parecia disposto a mostrar que valorizava os costumes de seus amigos Ishikawa, e estes não perdiam a oportunidade de uma pausa para uma boa refeição.
Yuri sentava-se numa formação rochosa quando Hikari passou por ele bufando.
— Aquele imbecil! — murmurou entredentes, pisando duro enquanto desaparecia entre as árvores.
Não era preciso ser nenhum vidente para saber sobre quem ela estava falando. De onde Yuri estava, era possível ver o sorriso contido que Ryota exibia enquanto tentava parecer focado com alguma coisa qualquer na vegetação baixa ali perto. Sem perceber, Yuri soltou uma risada baixa e ao desviar o olhar, notou que Shin o encarava com a sobrancelha arqueada. Ok, ele também continuava sendo um observador irritante.
Aproveitando que Akemi se aproximava, Yuri redirecionou sua atenção para a comida, agradecendo mentalmente por não ouvir nenhum comentário. Ele sabia que Shin havia notado que estava começando a se envolver novamente com o grupo. O que no fundo, era uma coisa boa. Mas ainda não estava propenso a certos tipos de avaliações.
— Tão observador... não se cansa disso? — Kenji sentou-se ao seu lado com um sorriso torto nos lábios.
“Ah... eu preferiria mil vezes os comentários de Shin a isso” pensou Yuri contendo um revirar de olhos.
— Só não sou muito de conversar.
— Sei... — respondeu Kenji rindo, enquanto mastigava seu broto de bambu cozido.
Yuri fechou os olhos brevemente tentando entender como Shin conseguia suportar passar tanto tempo na companhia de alguém tão... não conseguia nem pensar numa palavra para defini-lo. Foi só o que bastou para que o príncipe se materializasse ao lado dele, como se tivesse sido invocado.
— Na verdade ele fala até demais, quando quer — comentou Shin casualmente. — Mas ajuda caso você tenha um cabelo na cor prata...
Kenji caiu numa gargalhada e Yuri sentiu seu rosto esquentar de raiva e vergonha. Cerrou os punhos. O que aconteceria se acabasse socando o herdeiro imperial? Não poderia ser nada bom, então forçou um sorriso.
— Já que está com tempo para jogar conversa fora, talvez possa me explicar melhor o que quer com essa tal arma lendária? Estava pensando... como uma arma poderia ajudá-lo a recuperar o trono... — devolveu com a mesma casualidade que Shin havia usado ao provocá-lo.
— Uh, o ministro não sabe relaxar — cantarolou Kenji.
— Ah, Yuri, sempre tão sério... — concordou Shin sorrindo, antes de se virar para Yuri. — Você acha mesmo que eu passaria por tudo isso só por uma espada qualquer?
Relaxar? O que ele estava pensando? Certamente, não era hora de relaxar. Agora seria uma boa hora para desaparecer dali.
— Isso entendi bem quando fiz a pesquisa que me pediu, a questão é que seria necessário dominar completamente a magia do fogo para empunhá-la. — Yuri rebateu com mais ironia do que pretendia.
— Ih... acho que estão me chamando... — Kenji levantou-se rapidamente ao ver a expressão séria de Shin, deixando os dois sozinhos.
“Droga! Falei demais.”
— Sabe... não me lembro de ter te dado autorização para falar abertamente sobre estas questões... — Sua voz era calma, mas ao erguer o rosto, seus olhos tinham um brilho diferente, quase como se estivessem prestes a arder em chamas. — Meu domínio de magia diz respeito a mim. Somente a mim. Entendeu?
Ele pronunciou essa última parte bem devagar e com a firmeza de alguém que ensina uma criança o que é certo e errado. Sua postura fez até mesmo Yuri estremecer.
— Entendido. Senhor. — respondeu Yuri a contragosto.
— E só um conselho — Shin falou baixo. — Não seja tão seletivo com as pessoas quando estamos tentando garantir o sucesso de uma aliança importante. Se não gosta dele, mantenha isso somente na sua cabeça. Mantive você ao meu lado, por que pensei que fosse sensato, estava errado?
— Não, você está certo — respondeu Yuri baixinho. — E não é que eu não goste dele, só não confio nele.
Shin sorriu.
— Eu sei exatamente o que pensa sobre ele, e sei que ele também não é o tipo de pessoa que aparenta ser. Então não exponha minhas fraquezas quando não podemos confiar em todos que estão por perto.
— Fraquezas? Eu não...
Shin arqueou uma sobrancelha inquisitiva. “Argh! Foi exatamente isso que fiz! Talvez fosse melhor se o tivesse socado.” Yuri pensou, pressionando a testa com os dedos.
— Desculpe por isso. — Deixou as palavras saírem meio reprimidas pela culpa e Shin riu alto dessa vez.
— É bom ver que está de volta, só pense melhor e não complique as coisas para mim — Ele passou o braço por cima do ombro de Yuri. — De outra forma, terei que cortar sua língua fora. — Completou, ainda sorrindo, mas o comentário pareceu sério demais para uma brincadeira.
Yuri riu de nervoso enquanto Shin se levantava para se juntar aos outros.
***
Os dias se arrastaram enquanto completavam o percurso às margens do golfo e alcançaram as primeiras montanhas que cercavam Ryokume. Levaria pelo menos mais três dias até chegarem até o Desfiladeiro das Chamas e enfim entrar na grandiosa capital imperial.
O clima quente e abafado tornava a caminhada mais lenta e criava uma camada pegajosa de suor no rosto de todos. Yuri podia sentir o suor escorrendo e molhando a parte interna de suas roupas. Isso o deixava irritado. Daria qualquer coisa por um bom banho de chuveiro.
Mas nada o preparou para o desfiladeiro. Ali o calor era dez vezes pior, as rochas das montanhas pareciam literalmente estar em chamas, cercando-os com centenas de metros acima, o ar quase não alcançava o fundo. Precisaram deixar as cabras na entrada do desfiladeiro, pois além de serem muito grandes para o espaço apertado, possivelmente não aguentariam a travessia. Yuri começava a duvidar se eles mesmos conseguiriam terminar com vida.
O calor parecia se condensar dentro do desfiladeiro, o ar denso, carregado de um cheiro mineral e seco tornava cada respiração um esforço. O grupo se deslocava em silencio, somente seus passos ecoando entre as paredes estreitas.
Yuri limpou o suor da testa com a manga já úmida da túnica, mas era inútil. Seu cabelo grudava na nuca, e seus músculos estavam rígidos pelo esforço de se equilibrar no terreno irregular. O chão de pedra era um mosaico de fendas e saliências, aquecido ao ponto de quase queimar as solas dos sapatos.
— Quanto tempo até atravessarmos? — ele murmurou, a voz rouca de sede.
Shin olhou por cima do ombro. Seu rosto estava coberto de poeira e suor, mas seu olhar permanecia afiado.
— Se mantivermos o ritmo, devemos alcançar a saída antes do anoitecer. Mas isso se não desmaiarmos no caminho.
— E se alguém desmaiar?
— Deixamos para trás.
— ...Você tá brincando, né?
Shin apenas sorriu e seguiu em frente.
Uma lufada de vento quente varreu o grupo, trazendo consigo um redemoinho de poeira avermelhada. Yuri tossiu, cobrindo o rosto com o braço, sentindo o gosto metálico da areia na boca.
— Esse caminho é mesmo uma boa ideia? — Yuri resmungou.
— Nem de longe — Ryota bufou. — Mas a outra opção era nos afogar no mar.
Ele claramente desaprovava a escolha de Shin em seguir pelo desfiladeiro, mas não disse nada além disso.
Então, um som rompeu o silêncio entre as rochas. Um estalo seco, algo que vinha de cima.
Haruka parou imediatamente, erguendo a mão em um gesto silencioso para que os outros fizessem o mesmo. Seu olhar se fixou nas alturas, onde uma enorme sombra deslizava entre os penhascos banhados pelo sol.
— Algo está nos seguindo — murmurou, a voz baixa e alerta.
Um arrepio gélido percorreu a espinha de Yuri, um contraste brutal com o calor sufocante do desfiladeiro. Seu instinto gritava para olhar para trás, mas ele sabia que o perigo estava acima.
Foi então que uma pedra, do tamanho de um punho fechado, despencou do penhasco. Ela rolou e quicou pelas encostas antes de parar a poucos centímetros dos pés de Yuri.
Um rugido ecoou sobre suas cabeças. No instante seguinte, uma rajada de chamas cortou o ar e desceu em sua direção. O penhasco era alto demais para que o fogo os atingisse diretamente, mas o calor abrasador os envolveu como um aviso impiedoso.
A criatura se movia veloz acima deles. Entre seus rasantes e os jorros de fogo, Yuri conseguiu vislumbrá-la com clareza por um breve momento. O dragão. Mas, no mesmo instante em que reconheceu a besta, um segundo reconhecimento atingiu sua mente como um raio.
— Maldição... Este não é Kaenjin... — Shin rosnou, como se tivesse lido seus pensamentos.
A fera flamejante cruzava o desfiladeiro de um lado a outro, vomitando labaredas que faziam as rochas reluzirem como brasas. Não tinham escolha. Se ficassem ali, morreriam queimados.
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