A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 27: Amateru

"Sabedoria não é saber todas as respostas, mas compreender quais perguntas são importantes. E em cada escolha, reside a semente de nosso destino."

(A Arte de Escolher, Elyan Mareth)

 

9ª Lua Cheia do ano 1647

Lua do Rubi, dia 16

 

 

Sem dúvida, Yuri havia aprendido muito com suas viagens ao passado. Entre elas, uma se destacava: nenhuma história é contada da mesma forma duas vezes. Agora, os acontecimentos se encaminhavam para o desfecho, mas não de maneira previsível ou reconfortante. Tudo era incerto, como se o próprio tempo estivesse hesitante em dar o próximo passo.

Ele sentia-se, enfim, investido de um novo papel. Não apenas como ministro de Shin, mas como um representante clandestino do futuro do Império. A rebelião não era mais uma força externa, fazia parte dele, assim como ele pertencia a ela. O motivo que o levara até aquele ponto parecia distante e irrelevante. Não havia mais retorno.

Enquanto cavalgavam rumo a Amateru, os tambores de guerra vibravam ao longe, ressoando com as batidas de seu coração. Uma batalha que jamais deveria ter existido na linha original da história estava prestes a acontecer, e isso gelava seu sangue. Não era o medo de estar presente no campo de batalha que o paralisava, mas o temor pelas consequências que aquilo traria ao futuro.

Apertou as rédeas com força, como se quisesse ancorar a si mesmo àquele momento. Murmurou preces silenciosas a todos os deuses que conhecia, suplicando para estar certo. Esse ataque precisava representar uma virada decisiva para Shin e sua causa. Pela primeira vez, todos os aliados da rebelião marchavam lado a lado. Talvez, se fossem bem-sucedidos, pudessem evitar a grande batalha final no porto Hama.

E se isso acontecesse... Akemi estaria a salvo de seu destino.

Yuri não sabia o que o aguardava, mas havia uma única certeza queimando dentro de si: Akemi não morreria em Amateru.

 

O vento uivava entre os picos das Montanhas Samui, carregando consigo flocos de neve cortantes como vidro. O frio não era apenas uma presença, era uma força viva, que se infiltrava nas peles, nas armaduras, nos ossos. Acima, o céu cinzento parecia pesar sobre a marcha da rebelião, enquanto a cidade de Amateru, nas alturas, refletia a luz difusa do sol como se fosse feita de cristal e gelo.

Yuri sentia o coração apertado no peito. A cada passo dos cavalos, o som abafado dos cascos na neve espessa se confundia com o eco distante dos tambores. A paisagem branca era traiçoeira, bela e silenciosa demais. E então, veio o grito:

— É uma armadilha!

Antes que pudessem reagir, as tropas do clã Mizushima surgiram das sombras das colinas e dos flancos da estrada, como fantasmas moldados pela própria natureza. Atacaram com precisão milimétrica, como se soubessem exatamente onde cada grupo inimigo estaria. Uma emboscada perfeita. Devastadora.

Yuri puxou as rédeas bruscamente, os olhos vasculhando o caos à sua volta. As bandeiras da rebelião tremulavam sob o vento cortante, mas o que chamava atenção era a forma com que os guerreiros Mizushima se moviam. Leves como vento, mortais como lâminas. A magia deles não era apenas um recurso, era uma extensão dos próprios corpos. Manipulavam a água da neve ao redor, afogando os oponentes ou perdendo-os para em seguida golpeá-los com seus tridentes. Algumas vezes, manipulavam a água presente no corpo dos inimigos, desidratando-os até perderem os sentidos e caírem como fantoches sem vida no chão. Cada golpe parecia ter sido estudado, ensaiado por anos.

Ao mesmo tempo, os portões de Amateru abriram-se com um rangido que ecoou por todas as montanhas que os cercavam. O exército Himura com armadura branca que reluzia como a neve, fechava toda a parte frontal da cidade. Com isso, Yuri percebeu que estavam encurralados.

Shin, montado à frente, tentava reordenar a tropa, mas a comunicação se perdia entre os gritos, explosões e o clangor das armas. Os tambores do clã Mizushima não apenas ditavam ritmo, eram o prenúncio do fim.

Foi então que Yuri o viu.

Kenji.

De pé sobre uma elevação de gelo, vestindo a insígnia do clã Mizushima, como se sempre tivesse pertencido àquele lugar. Havia algo de quebrado em sua expressão. Não um traço de remorso, apenas convicção. Ele não estava infiltrado, não era prisioneiro, nem vítima de manipulação. Ele escolhera aquele lado.

Yuri sentiu o mundo vacilar.

— Não... — Yuri sussurrou, sentindo o calor abandonar seu corpo de forma mais cruel do que o frio jamais poderia causar.

O tempo parecia se partir ali. Tudo o que ele sabia, tudo o que havia previsto, estava errado. A história estava se escrevendo com tinta nova — escura, imprevisível, manchada de neve e sangue.

— Shin! É o Kenji! — gritou, tentando se fazer ouvir em meio ao rugido da batalha e dos ventos.

Shin virou-se, o olhar em chamas, mas não foi surpresa o que Yuri viu em seu rosto, foi mágoa. Uma mágoa silenciosa, profunda, como se, de algum modo, já soubesse.

— Eu sei — respondeu Shin, com a voz baixa e amarga.

A linha de frente recuava. Era impossível manter a formação. O clã Mizushima os encurralava com precisão implacável. Yuri, pela primeira vez, sentiu que o tempo já não era seu aliado. Pela primeira vez, temeu que nem mesmo todo o poder de saber o que viria fosse suficiente para impedir o que estava por vir.

E, ainda assim, uma única certeza permanecia em seu peito. Akemi não morreria em Amateru. Mesmo que para isso ele tivesse que enfrentar o destino com as próprias mãos.

A neve rodopiava ao redor como uma dança cruel, obscurecendo a visão e amortecendo os sons da guerra. O frio cortava a pele como navalhas, mas nem isso era capaz de apagar o calor das perdas que vinham uma após a outra. Os soldados de Mizushima caíam com violência sobre o flanco onde estavam Hideo e Shin. Gritos se confundiam com o estrondo de magia, aço e dor.

— Shin! — Yuri gritou, mas sua voz se perdeu na confusão.

Shin lutava para resistir, o suor congelando em sua testa, cercado por inimigos. Ele gritou por Kiku, mas ela chegou tarde demais. Quando enfim rompeu a linha inimiga, encontrou o corpo de Hideo tombado na neve, olhos abertos, sem vida.

— Não... pai... — sussurrou, mas não havia tempo para luto.

Kiku caiu de joelhos ao lado do corpo, os dedos trêmulos. Os olhos se encheram de lágrimas, mas foi o pensamento que lhe veio em seguida que a paralisou.

— Mas... a única forma de saberem sobre esse ataque seria se... — murmurou, quase sem voz.

— Isso mesmo — respondeu Kenji, surgindo detrás de um muro congelado, sua silhueta como uma sombra entre a neve.

O tom dele era frio, sem nenhuma emoção.

— Não... Você... — Kiku se levantou, o choro dando lugar a uma raiva incandescente. — Por que faria isso?

— Eu não poderia conquistar meu prêmio com vocês dois no caminho, irmã. — Ele girou a lança com precisão cruel. — Eu serei o próximo senhor de Ayatsuri. E... ainda falta você.

— Não! — Kiku gritou, empunhando sua própria lança contra ele, que desviou com facilidade.

— Sempre foi meu objetivo chegar até aqui. Mas me surpreende que você não tenha desconfiado por nenhum segundo. Claramente, Ayatsuri precisa de alguém mais inteligente no comando. Alguém que não se deixa enganar.

— Seu... miserável... — Kiku recuou um passo, os olhos cheios de dor procurando por ajuda.

— Eles não vão te obedecer — zombou Kenji. — Aqui, ninguém virá te socorrer.

Ele avançou. E mesmo com o coração em ruínas, Kiku ergueu os braços e conjurou uma muralha de pedra, erguendo um corredor estreito e seguro, por onde Shin e parte das tropas conseguiram escapar. O último olhar de Kiku antes de desaparecer na névoa da neve foi para o irmão. E a lágrima que escorria do rosto dele não era de arrependimento, mas de prazer.

Mais tarde, em um abrigo improvisado entre as encostas geladas de Amateru, o silêncio era mais pesado do que a neve acumulada nos telhados.

— Às vezes, a recompensa não vale os custos — murmurou Kiku, debruçada sobre as cinzas de um fogo apagado.

Shin não respondeu. Seu olhar fixava a parede, mas sua mente estava em outro lugar. Yuri se aproximou, colocando uma mão no ombro dele, suavemente.

— Não foi sua culpa.

— Tem razão. Foi culpa sua. — Shin se levantou de súbito. — Eu tentei confiar em você, Yuri. Fiz isso porque a deusa me pediu. Ignorei meus instintos, calei minhas dúvidas. E agora olha onde estamos!

— O que está dizendo? — Yuri encarou-o, ofendido. — Não sou digno de confiança? Depois de tudo que fiz por vocês?

— E nos levou direto para uma armadilha! — gritou Shin. — Quantas vidas se perderam hoje porque escolhi acreditar em você?

A dor nos olhos dele era insuportável.

— Eu nunca confiei totalmente em você. Como poderia? Você fala em justiça, mas mata com a mesma facilidade com que respira. Você se acha nobre? Não passa de um homem quebrado tentando se esconder atrás de um passado que já morreu!

Com um gesto brusco, Shin empurrou Yuri contra a parede de pedra e pressionou o antebraço contra seu pescoço. Os olhos do príncipe ardiam com a fúria do fogo ancestral.

— Deixe-o, Shin! Não vale a pena! — Kiku gritou.

Num rugido, Shin lançou uma rajada de chamas nas pedras ao lado da cabeça de Yuri. O calor foi tão intenso que queimou o ar ao redor.

Yuri não se defendeu. Apenas ficou ali, imóvel, sentindo o peso da derrota, da culpa.

"Isso não deveria ter acontecido", pensou. "A história... está diferente."

Caminhou sozinho para fora do abrigo, os flocos de neve cobrindo seus ombros como um manto de penitência. Akemi o observou de longe, e o olhar dela doía mais do que as palavras de Shin. Um olhar de preocupação... e decepção.

Mas foi nesse momento que Yuri finalmente entendeu. Ele não poderia mudar o passado. Não poderia salvar todos. Mas ainda podia lutar por aquilo que restava.

Ele se virou para Shin, que continuava encarando o vazio.

— Você precisa fazer algo. Agora. Por eles. — Sua voz soava diferente. Firme. Sem hesitação. — Se não fizer, eu farei.

Yuri se endireitou. O médico havia morrido no dia em que Misaki se foi. O homem que restava agora era outro.

Ele avançou com um único golpe e socou Shin no estômago, onde sabia que o deixaria sem ar. Não por raiva, mas para obrigá-lo a se mover.

— Sua autoridade não vem do nome que carrega. Vem dos homens que escolhem segui-lo. E eles ainda estão vivos, Shin. Eles precisam de você.

Shin, ajoelhado, arfando, ergueu o olhar. Algo havia mudado dentro dele também.

Yuri se virou e começou a organizar os homens restantes.

Não era mais uma questão de sobreviver. Era sobre fazer valer o que havia sido perdido.

A neve continuava a cair, silenciosa, indiferente. Cobrindo os corpos, o sangue, os sonhos despedaçados. Mas no meio daquele cenário de ruína, algo havia mudado.

Yuri estava de pé.

As mãos cobertas de feridas, o corpo exausto, os olhos inflamados por um novo propósito. Não era mais o médico que fugia do passado, tentando costurar feridas que nunca cicatrizavam. Agora, era o homem que enfrentaria o destino de frente.

— A partir de agora — ele disse, a voz firme como aço contra a ventania — não tomaremos mais decisões baseadas em esperança cega. Chega de seguir o caminho que os outros traçaram. Trairemos a profecia se for preciso. Mudaremos o final.

Shin, ainda ajoelhado, o observava em silêncio. Não havia mais raiva em seu olhar.

— O que pretende fazer? — perguntou, com dificuldade.

Yuri voltou-se para os sobreviventes. Rostos abatidos, olhos perdidos... mas corações ainda batendo. Ainda havia fôlego. Ainda vivos.

— Vamos escalar as muralhas de Amateru pelo norte. Pelo caminho que ninguém ousaria tomar.

Akemi franziu o cenho.

— As Montanhas Samui? Isso é loucura!

— É. — Yuri sorriu. Um sorriso diferente, carregado de desafio. — Mas é a nossa única chance. E se formos morrer, que seja tentando o impossível.

O vento soprou com força naquele instante, erguendo a neve ao redor como uma tempestade de pó de vidro. Akemi se aproximou, os cabelos esvoaçando, e por um momento, encarou Yuri como se estivesse vendo-o pela primeira vez.

— Então lidere-nos — ela disse. — Mostre-nos o caminho.

E ali, sob a luz pálida que escapava entre as nuvens densas, um novo futuro começou a ser escrito.

O homem que antes carregava os mortos nos ombros agora guiaria os vivos.

Yuri respirou fundo, sentindo o gelo queimar nos pulmões.

Cada passo adiante era uma negação do passado.

Cada passo era um recomeço.

Ele apertou os punhos e, sem olhar para trás, começou a subir — rumo ao norte, rumo ao impossível.

A guerra ainda não havia acabado.

Ela estava apenas começando.

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