A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 5: Caminhos Entrelaçados

"Nunca esqueça de onde você veio, pois é lá que encontrará a força para seguir em frente." (Sombras do Passado, Erika Hoshino)

 

13ª Lua Cheia do ano 1646

Lua do Lume, dia 14

 

 

Akemi estava sentada sob as árvores que margeavam o lago Momiji En. O sol poente tingia a superfície agitada das águas com reflexos rubros, como se o céu estivesse sangrando lentamente no espelho do mundo. Um vento leve sussurrava entre os galhos, trazendo consigo o aroma reconfortante da sopa que Sota, o guerreiro Yamagawa, preparava sobre o fogo. Cogumelos recém-colhidos dançavam no caldo escuro, e o cheiro tentador se espalhava em espirais quentes pela clareira.

Mas Akemi permanecia alheia, os olhos perdidos, afundada em pensamentos densos. Havia quase uma semana desde que iniciaram a jornada juntos, sempre sob a proteção das sombras, como Sota preferia. Ela o observava de relance enquanto ele mexia a sopa com calma, os movimentos tão gentis quanto incongruentes com a lembrança vívida do primeiro encontro entre eles. Quando ele a encurralara com os olhos ferozes e a espada em punho.

Agora, à distância, seu cavalo negro parecia uma extensão das sombras da floresta. Sempre pronto, sempre alerta.

Um incômodo constante a acompanhava desde que saíram do templo. Instintivamente, Akemi tocou o abdômen, os dedos percorrendo o curativo escondido sob as roupas. Alguém tinha estado com ela naquela manhã, cuidando de seu ferimento. Não era uma alucinação. Ela podia sentir, como uma marca invisível na pele, a presença de uma mão cuidadosa.

Sota aproximou-se em silêncio, sacudindo algumas folhas diante dela com um sorriso enviesado.

— Mastiga isso — disse ele.

— Eu... não preciso. Estou bem — respondeu Akemi, hesitante. Havia algo nele que inspirava confiança. Mas também havia outra coisa, algo que a mantinha em alerta, como uma voz abafada dentro de si.

Sota cruzou os braços, paciente.

— Notei que você não tem dormido bem. Isso ajuda com a dor também.

Ela aceitou as folhas com relutância, murmurando um agradecimento constrangido.

— Não me agradeça ainda. O gosto é terrível. — Ele soltou um barulho agudo que Akemi entendeu como uma risada. Era difícil acreditar que aquele homem tranquilo fosse o mesmo que, dias antes, quase tirara sua vida.

Akemi mordeu as folhas e disfarçou a careta ao sentir o gosto amargo. Quando ele voltou e lhe estendeu uma tigela de sopa fumegante, seu estômago respondeu com um ronco alto. Sota sentou-se ao lado dela, tirando a máscara com um gesto casual. Os cabelos dele caíam soltos, em ondas, emoldurando um rosto que mesclava força e uma gentileza insuspeita. Os olhos, de um negro profundo, contrastavam com a pele clara e o início de uma barba por fazer.

Quando seus olhares se encontraram e ele sorriu, ela percebeu que havia ficado olhando por tempo demais. Akemi desviou os olhos com rapidez, levando a sopa à boca para esconder o rubor repentino. Cada gesto dele a desarmava de um jeito perigoso. Sentia o estômago revirar, e não sabia se era pela fome... ou pela súbita vergonha.

— Seu cabelo tem uma cor bem diferente, hein?

— Sim — respondeu ela, puxando uma mecha prateada para trás da orelha. Detestava aquela cor, o símbolo de tudo que deveria ser, mas não era.

— É bonito, de uma forma única — comentou Sota, parecendo genuinamente curioso. — Deve ter uma história por trás disso.

Akemi deu de ombros, fingindo indiferença com a atenção repentina.

— Não é nada especial, apenas uma característica incomum.

Akemi deu de ombros, fugindo do assunto. Um silêncio incômodo pairou entre os dois, e ela mergulhou na sopa como se ali encontrasse refúgio. Percebendo o desconforto, Sota mudou de assunto com naturalidade:

— O que te leva a seguir o príncipe herdeiro?

Akemi demorou a responder. Observou as montanhas ao longe, seus picos brilhando sob a réstia de luz do dia, parecia a única coisa estável naquele momento. Ela fixou o olhar ali enquanto deixava as palavras se soltarem, aos poucos, de seus lábios.

— Eu acredito que o trono deve ser mais do que poder — respondeu, enfim, — Deve ser uma responsabilidade para proteger o povo. O clã Mizushima tem oprimido o país por muito tempo. O príncipe herdeiro... ele é a esperança de uma mudança. Ele pode trazer justiça.

Antes que Sota pudesse responder, um assobio cortou o ar. Uma flecha, com penas azuis, cravou-se no tronco atrás dela.

— Maldição! — Sota puxou Akemi num gesto rápido, arrastando-a para a escuridão entre as árvores. — Não esperava por eles aqui.

Ela tentou resistir, mas ele a envolveu com a capa escura, colando seus corpos contra o tronco de uma árvore.

— O que está fazendo? — sussurrou ela, ofegante.

— Fique quieta — ele murmurou, o hálito quente roçando sua pele. Akemi estremeceu

Passos soaram ao longe. Soldados do clã Mizushima passavam entre as árvores. Akemi reconheceu um deles e, instintivamente, conteve a respiração. Sota a segurava firme, como se pudesse protegê-la com o próprio corpo.

— Só mais um pouco... — sussurrou.

Era estranho estar tão perto de alguém depois de viver tantos anos sozinha, mas, surpreendentemente, não se sentia desconfortável. O calor do corpo dele emanava uma energia segura e acolhedora. A cabeça dela repousava em seu ombro, que exalava um leve aroma de cinzas.

— Viu os últimos? — Sota sussurrou, os lábios quase tocando sua orelha. — Não eram soldados comuns. Eram conjuradores. Enfrentá-los agora seria um problema. Você atrai o caos por onde passa, hein, General?

— Talvez seja por isso que você não consegue parar de me seguir — retrucou ela, afastando-o com um empurrão. Sota riu, alto, e a seguiu de volta até os pertences.

Akemi pegou sua capa, ergueu o capuz e começou a organizar os itens no alforje. Já era hora de voltar para a estrada.

— Por que me ajudou? — perguntou em voz baixa, sentindo a presença de Sota ao seu lado. — Naquele dia.

— Isso também é um mistério para mim.

Akemi lançou lhe um olhar, mas tudo o que viu foi a máscara de lobo que novamente ocultava seu rosto. Akemi precisava se lembrar de que não podia confiar nele tão facilmente. Bastaria uma palavra para que ele a considerasse inimiga e acabasse com sua vida.

— Ayatsuri fica a oeste — disse ela, sem rodeios. — Disseram que viram alguém que pode ser o herdeiro por lá.

Sota empalideceu por um instante, imperceptível aos olhos comuns. Mas Akemi não era qualquer um.

— E o que você quer fazer? — ele perguntou com a voz baixa.

— Ir até lá. Procurar. Pode ser uma pista real. Estamos muito perto dele, e meses atrás, houve um incidente na floresta sombria, onde um pelotão do império foi queimado completamente, suspeito que ele esteja por trás disso. Se há uma chance, por menor que seja, de o encontrarmos… preciso tentar.

O silêncio entre eles se estendeu como um véu. O cavalo de Sota bufou, impaciente. Ele deu um passo mais perto, a expressão carregada de algo que Akemi não soube nomear.

— Se ele fosse se esconder, não seria em Ayatsuri — disse por fim.

Akemi ergueu o queixo.

— Você fala como se o conhecesse.

— Conheço o tipo. E sei onde ele buscaria respostas de verdade. — Seus olhos se fixaram nos dela. — Ryokume.

— A antiga capital?

— Foi lá que tudo começou. Se ele estiver procurando por identidade... por verdade... é lá que vai estar.

Ela o observou, tentando decifrar o porquê da certeza. Não era apenas lógica. Era pessoal. Como se algo dentro dele queimasse ao falar daquele nome.

— Parece muito seguro disso.

— Porque estou — disse, com firmeza demais. Depois suavizou: — Não encontrará nada em Ayatsuri, General. Mas em Ryokume... Mesmo que ele não esteja lá, as ruínas ainda guardam informações valiosas... Nomes que ninguém mais ousa dizer.

Akemi sentiu um arrepio e desviou o olhar, indecisa. Parte dela queria discutir, queria entender por que ele parecia sempre um passo à frente, como se soubesse de tudo, e ao mesmo tempo, carregasse o peso disso.

Mas parte dela... confiava naquelas palavras.

— Então vamos para Ryokume — disse, por fim.

Sota assentiu. Mas seus olhos se perderam no horizonte, e Akemi não viu o modo como sua mão se fechou em punho junto ao corpo. Como se cada palavra dita tivesse arrancado dele mais do que pretendia revelar.

 

***

 

Era realmente uma visão estranha, os dois montados em um imenso cavalo negro, Akemi com seu capuz surrado e Sota com a máscara de lobo reluzindo à luz das estrelas. Pareciam duas assombrações perdidas na escuridão da noite.

Cavalgaram em silêncio por várias horas. Akemi tentava se concentrar no caminho, buscando algo que pudesse servir de gancho para uma conversa, mas as palavras não vinham. Depois de tanto tempo sozinha, aprendera a fazer as pazes com o silêncio. No entanto, estar ao lado de alguém e não saber o que dizer era uma sensação muito mais angustiante.

Seguiam ao longo das montanhas, rumo ao sul. A lua despontava por trás das montanhas, lançando sua luz suave sobre o caminho. A noite estava particularmente calma, quase estranha em sua tranquilidade.

— General — sussurrou Sota em seu ouvido, repentinamente parando o cavalo. Sua voz carregava um tom de alerta.

— O que foi? — Akemi olhou ao redor, alarmada, mas não conseguiu ver nada de incomum. Estavam longe de qualquer cidade ou vilarejo, e não parecia haver perigo imediato. Então, por que ele parara?

Sota desceu do cavalo sem responder e começou a caminhar em direção às montanhas com passos apressados.

— Sota? O que está acontecendo? — Akemi perguntou, começando a segui-lo, mas ele ergueu a mão, sinalizando para que ela ficasse onde estava.

Ela o viu cair de joelhos ao pé da montanha, com as mãos firmemente plantadas no chão. Algo estava terrivelmente errado. Será que ele havia sido atingido por alguma coisa? Antes que Akemi pudesse fazer qualquer coisa, um clarão intenso envolveu o local, cegando-a por alguns segundos.

Quando sua visão voltou, o que viu a deixou sem fôlego. Sota estava coberto por chamas. Seu cabelo, antes escuro, agora ardia em tons de vermelho, e seus olhos brilhavam como o fogo que o consumia.

Aos poucos, as chamas começaram a se dissipar, revelando seu corpo nu, ainda ajoelhado, as mãos apoiadas no chão. Ele estava tremendo. Mas quando Akemi se aproximou para ver se estava bem, percebeu que ele estava rindo.

Sota ergueu o olhar para ela, seus olhos ainda resplandecendo em vermelho.

— Parece que encontrou seu príncipe, General.

 

***

 

A situação era tão absurda que Shin não conseguia conter o riso. Porém, quando Akemi tirou sua própria capa e o cobriu sem sequer levantar os olhos do chão, ele perdeu completamente o controle, explodindo em gargalhadas.

— Você é mesmo o príncipe Shin? — Ele não entendia como ela conseguia estar tão calma nessa situação. Para sua surpresa, quando ela levantou a cabeça, percebeu que suas bochechas estavam vermelhas, seus olhos eram a própria representação da fúria. Akemi avançou, agarrando a frente da capa com os punhos cerrados e o puxando com força em sua direção. O riso morreu instantaneamente em sua garganta.

— Você me enganou esse tempo todo! — Ela o soltou abruptamente e começou a andar de um lado para o outro. — Disse que seu nome era Sota!

Parou de repente diante dele, e Shin, por instinto, recuou um pouco. Mas Akemi não deu espaço, continuando a despejar suas acusações.

— E o que foi aquilo? Não tinha um jeito mais simples de contar?

Ele tentou se conter, mas o nervosismo transformou-se novamente em uma risada, e Akemi o fulminou com os olhos.

— Na verdade, esse tem sido meu nome nos últimos meses — ele respondeu, coçando a parte de trás da cabeça. — Como andarilho...

A incredulidade estampada no rosto dela o fez rir novamente, dessa vez mais por nervosismo do que por diversão.

— E quanto a isso... — Shin olhou para a capa que ela usara para cobri-lo. — Não planejei queimar minha única roupa no meio da estrada, ainda mais longe de qualquer lugar onde eu possa comprar outra.

Não, nada disso tinha sido planejado. Ele pretendia manter sua identidade em segredo até chegarem às terras do clã Ito. Mas a magia do fogo... ele não a controlava. Pelo menos, desta vez, conseguiu evitar um desastre maior, diferente da última vez que o fogo havia tomado conta de seu corpo. Ele sabia que o riso que escapava de seus lábios era mais fruto do medo. Medo de não conseguir controlar essa magia. Medo do que poderia acontecer se as chamas voltassem a fugir de seu controle.

— Eu não esperava que isso fosse acontecer agora — completou, abaixando a cabeça, sentindo o corpo pesado de repente.

Akemi foi em sua direção, talvez para se desculpar. Mas Shin, sem querer dar espaço para qualquer fragilidade, ergueu a cabeça com um sorriso provocador.

— Mas você gostou da demonstração, vai dizer que não? — disse, num tom desafiador.

Ela avançou, e Shin, se preparou para o impacto, certo de que um golpe estava a caminho. Para sua surpresa, Akemi simplesmente virou as costas e caminhou sozinha pela estrada.

 

***

 

Já caminhavam há horas. Akemi se recusava a falar com ele, e Shin, por sua vez, preferia o silêncio às perguntas que sabia que viriam se ela começasse a conversar. Caminhavam em direção à aldeia Tsuki, onde ele pretendia comprar novas roupas. Enquanto avançavam, ele sentia as duas magias – sombra e fogo – pulsando dentro de si, entrelaçando-se de uma forma que ele ainda não compreendia. Como poderia uma única pessoa possuir duas magias tão diferentes?

— Sempre imaginei que seu cabelo fosse vermelho, como nas histórias sobre o clã Ito — Akemi quebrou o silêncio de repente. — Dizem que os membros do famoso clã do fogo tinham cabelos vermelhos como as chamas que dominavam. Mas você tem o cabelo escuro. E parece mais pálido e... mais baixo do que eu esperava.

— Minha mãe era do clã Yamagawa antes de se casar com o meu pai, o antigo imperador — Shin respondeu, sentindo um aperto no peito ao mencionar os pais que nunca teve a oportunidade de conhecer. Às vezes se perguntava como seria se tudo tivesse acontecido de outra forma.

— Isso explica sua aparência. Mas o que me intriga é a possibilidade de alguém possuir dois tipos de magia — continuou Akemi. — Nunca houve alguém assim, nem mesmo nas uniões entre clãs, porque os filhos sempre herdam a magia do pai. Então, no seu caso, você deveria herdar somente a magia do fogo.

Shin hesitou, sentindo um calafrio. Ele realmente odiava falar sobre isso, mas ela havia perguntado tão naturalmente que quando ele percebeu, já estava falando.

— Eu nasci no dia em que o clã Mizushima tomou o trono. Enquanto todo o clã Ito era massacrado...  minha mãe fugiu para o jardim do palácio e fez um acordo com a deusa da lua, a provedora da magia do clã Yamagawa, em troca da vida dela, a deusa salvou a minha. Eu fui levado para o clã Yamagawa, onde cresci. Então, ao mesmo tempo que eu herdei a magia do meu pai, também herdei a magia da sombra, pois minha vida é diretamente ligada à deusa Izanora.

— Sinto muito — disse Akemi, e Shin pôde ouvir a culpa em sua voz. Mesmo que ela tivesse nascido anos após o massacre, sentia-se culpada por lutar ao lado daquele que assassinara sua família.

Por vinte e seis anos, Shin acreditou que era apenas um membro do clã Yamagawa. Criado como filho dos líderes, ele almejara se tornar o melhor kagejin e fazer alguma diferença nessa guerra interminável. A magia das sombras despertou quando ele tinha apenas sete anos, e a partir daí fluía por ele como uma parte de sua essência.

Mas desde o incidente com a magia do fogo, meses antes, tudo havia mudado. Sua confiança e sua magia o abandonaram. Aos poucos, a magia da sombra retornou, embora enfraquecida, mas não sentia nem um resquício da magia do fogo. Até encontrar Akemi.

De alguma forma, a presença dela parecia afetar algo dentro dele. Se para o bem ou para o mal, ele ainda não sabia.

Shin sabia quem Akemi era antes mesmo de confrontá-la nas ruínas do templo. Sabia que ela não era inocente, conhecia o sangue que manchava suas espadas. Mas também a vira lutar contra seus próprios subordinados e cair com um ferimento que deveria ter sido fatal. Ele a seguira até o templo com a intenção de observar de longe, mas para sua surpresa, ela estava de pé.

E procurando por ele.

Talvez fosse egoísmo, mas Shin queria ver até onde essa nova lealdade a levaria. E, mais do que isso, queria entender por que ela provocava tantas emoções dentro dele.

 

Notas:

Kagejin: Uma divisão militar exclusiva do clã Yamagawa, encarregada de patrulhar os arredores das terras do clã, coletar impostos dos clãs vassalos e reunir informações sobre movimentações inimigas. É também o primeiro nível de formação para os membros do clã. Seus integrantes, provenientes tanto do clã principal quanto dos clãs vassalos, são altamente habilidosos e essenciais para essas funções, mas não participam ativamente de batalhas nem se envolvem em conflitos de guerra.

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