Volume 1
Capítulo 6: Entre Dois Mundos
"As lendas de um povo são as raízes de sua identidade, conectando o passado ao presente e lançando luz sobre o caminho que devemos seguir."
(Lendas de Kasumi, Mei Takahashi)
2ª Lua Cheia do ano 1833
Lua do Declínio, dia 8
É engraçado como um único acontecimento pode virar a vida de alguém de cabeça para baixo. Vários dias haviam se passado desde o incidente, mas Yuri ainda procurava algo, qualquer coisa, que provasse que aquilo tinha sido real. Estaria enlouquecendo? A ideia de perder a sanidade não parecia mais tão absurda. Mas como ignorar a lembrança da sensação quente e viscosa do sangue escorrendo por seus dedos? Aquilo não podia ter sido uma invenção da mente. Era real demais. Vívido demais. Ele sabia que sua mente não era capaz de fabricar tal realismo.
Deitado no sofá do apartamento, observando o teto descascado, essa era a única linha de pensamento que o consumia. Quando saía de casa, seus olhos sempre vagavam pelas ruas, como se ele esperasse encontrá-la entre as pessoas. Aquela mulher... era como se, de repente, encontrá-la tivesse se tornado sua nova meta de vida.
Um som suave de arranhar na janela o despertou de seus devaneios. Levantou a cabeça e, através do vidro, viu um gato preto tentando entrar. Yuri abriu a janela apenas o suficiente para o gato se esgueirar para dentro e o animal entrou com a familiaridade de quem já conhecia o caminho.
— Você me encontrou, não é? — Yuri sussurrou enquanto se abaixava para acariciar o gato, que inclinava a cabeça em resposta. Ele nunca fora muito fã de gatos, mas desde a primeira vez que o encontrara em frente ao prédio, esse parecia diferente. Havia algo em seus olhos que sugeria compreensão, como se o animal entendesse o que se passava em sua mente.
Mas, de repente, tudo mudou. O olhar do gato se estreitou, feroz, e antes que Yuri pudesse sequer pensar, o felino o atacou, arranhando seu braço e fugindo pela janela como um raio. Atordoado, Yuri tropeçou e bateu contra a estante. Livros e objetos desabaram com um estrondo.
Ficou irritado por um instante, então percebeu algo brilhando em meio ao caos. A máscara de lobo capturava e refratava a luz solar de uma maneira sobrenatural, criando a sensação de que ela mesma era uma fonte de luz, em vez de simplesmente refleti-la. Como nunca havia reparado nisso antes?
Yuri se abaixou para pegá-la. No instante em que a tocou, um impulso incontrolável o dominou. Precisava colocá-la. Como se sua própria vida dependesse disso. E assim o fez.
Primeiro veio o choque. Um arrepio elétrico que percorreu cada célula de seu corpo. Calor e frio se fundiram numa sensação incômoda e poderosa. Sua pele ardia. O mundo silenciou por um instante absoluto. Um zumbido preencheu seus ouvidos. Sentiu-se cair dentro de si mesmo, como se seu corpo fosse apenas uma casca. Então tudo terminou, deixando apenas aquela sensação de ausência.
Yuri retirou a máscara e a encarou perplexo. Mas, agora ela parecia incrivelmente normal.
***
Na manhã seguinte, foi o sol queimando sua pele que o despertou.
"Esqueci de fechar as cortinas?", pensou, ainda sonolento. Sentou-se na cama esfregando os olhos, procurando o celular. Não o encontrou em nenhum lugar por perto, mas nem precisava olhar a hora para saber que estava atrasado.
Vestiu o uniforme com a mesma leveza de quem carrega um fardo. Embora tivesse deixado para trás a vida de médico, aquele sentimento de pertencer a algo maior ainda o assombrava. Antes, fazia diferença. Agora... sentia que se sumisse, ninguém notaria. Seria como fumaça se dissipando no ar. No entanto, por alguma razão, ainda estava ali. E queria acreditar que havia um propósito, que um dia encontraria uma razão para continuar tentando se encaixar neste mundo.
Yuri chegou ao Kokoro Café, quase sem fôlego e se desculpou com Keid, que lançou um olhar irritado, e com toda a razão.
Assim que começou a trabalhar, mergulhou nas tarefas do café. Era uma distração bem-vinda.
O dia estava bastante agitado. Emi mal tinha acabado de chegar e já parecia estar suando, correndo de um lado para o outro enquanto equilibrava os pedidos nas mãos. Ainda faltava pelo menos uma hora para o fim do turno de Yuri e ele nem havia tirado seu intervalo ainda. Então, Keid o chamou da cozinha, fazendo um sinal com a mão. Ele tinha um sorriso sutil nos lábios, o que era um alívio em comparação com a irritação anterior. Quando Yuri se aproximou, Keid empurrou um prato com um pedaço de bolo recém-saído do forno em sua direção.
— Aqui. Acho que você precisa disso.
— Obrigado — Yuri agradeceu com sinceridade, acenando com a cabeça para disfarçar a surpresa.
Keid era o confeiteiro, e ainda que passassem muito tempo juntos nos últimos meses, Yuri dificilmente conversava com ele, ao contrário de Emi, que sempre tinha um sorriso gentil nos lábios, Keid era mais reservado, e quando estava trabalhando parecia estar num mundo em que somente ele existia. Yuri saboreou lentamente o bolo, sentindo o nó na garganta se desfazendo pouco a pouco. A doçura do bolo agia como um contraponto agridoce para os seus pensamentos amargos.
Mais tarde, ao fim do turno, ao perceber que o lixo precisava ser levado para fora, decidiu aproveitar para tomar um pouco de ar. A noite o recebeu com uma brisa suave quando empurrou a porta dos fundos.
Por um momento o mundo pareceu calmo.
Com o saco de lixo nas mãos, caminhou pela calçada. Foi então que tropeçou em algo invisível. Antes que seu rosto alcançasse o chão inclinou o corpo recuperando o equilíbrio. Ainda conseguiu deixar escapar um suspiro de alívio antes de levantar o olhar. Quando o fez, sentiu como se todo o ar tivesse sido sugado de seus pulmões.
O mundo ao seu redor havia mudado.
Não estava mais no beco atrás do café. Agora, estava em uma ruela estreita, agitada e coberta de lama, cercada por construções que pareciam ter saído de um livro de história. O ar tinha cheiro de terra molhada e fumaça. Pessoas vestidas com roupas antiquadas corriam, gritando, enquanto uma criança chorava ao seu lado.
— O que... está acontecendo?
Então, a viu. Os cabelos prateados esvoaçando ao vento. Era ela.
Movido pelo impulso, seguiu-a, esbarrando em quem estivesse no caminho, sem se importar com os xingamentos que recebia. Mas quando se aproximou, ela se virou, empunhando duas espadas. Instintivamente, Yuri girou o corpo lançando o saco de lixo em sua direção. Só se lembrou do que estava segurando quando viu a sujeira se espalhar ao redor do rosto dela.
Ela o encarava. Seus olhos dourados se destacando nas sombras do fim do dia.
Pensou em perguntar se ela estava bem, mas as palavras escaparam quando viu a expressão em seu rosto. “Droga, estraguei tudo.” Mas, antes que Yuri pudesse dizer qualquer coisa, ela o agarrou pelo braço e o empurrou para um beco. Com a mesma rapidez, ela desapareceu no meio das pessoas que se aglomeravam, como se estivessem fugindo de algo.
Foi aí que Yuri o viu pela primeira vez. Do outro lado da ruela, um homem de cabelos longos vestindo um manto preto estava parado. Sua aparência, por si só seria o suficiente para chamar a atenção de qualquer pessoa, mas o que prendeu o olhar de Yuri foi a máscara que ele estava usando. Ele a conhecia bem, pois ainda ontem estava em seu apartamento. Um arrepio percorreu seu corpo, e sentiu o coração acelerar. Algo estava prestes a acontecer.
A primeira coisa que notou, foi que havia algo estranho nas sombras. Elas começaram a se mover, era sutil no início, mas depois o fluxo se tornou algo similar a água escorrendo. As sombras eram atraídas pelo homem que fazia movimentos leves e intensos ao mesmo tempo. Ele executava cada manobra como se fosse tão natural quanto respirar. Uma horda de soldados, empunhando tridentes, dobrou a esquina no mesmo momento em que as sombras se expandiram, tomando conta de todo o ambiente. Yuri não conseguiu ver mais nada.
Quando a luz retornou, era tão intensa que mal conseguia abrir os olhos. Foi aos poucos se acostumando e percebeu que estava de volta à porta dos fundos do café.
Suas mãos estavam vazias, mas sua mente transbordava de perguntas. Uma frase não parava de se repetir em sua cabeça.
“Eu fui ao passado.”
Estava certo disso tanto quanto sabia que não seria a última vez.
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