WebNovel – Primeira Parte

Capítulo 6: Quando o Dado Ri de Quem o Joga

Shirou não sabia como tinha chegado ali. Não exatamente.

Era como tentar se lembrar de um sonho depois que ele se esvaiu, reduzido a fragmentos de algo que já não existia mais.

O chão era branco, mas não o branco sereno de um amanhecer. Era o branco de algo sujo, como neve derretida que nunca tocou o sol. O tipo de branco que te faz querer fechar os olhos, mas você não pode. Nada ali oferecia conforto. Apenas a brancura. O tipo de branco que te engole por dentro, um vazio abrasivo — como se o próprio chão estivesse tentando lhe dizer que ele não deveria estar ali.

Shirou era uma criança magra, os ossos parecendo quase mais fracos que a carne que os envolvia. Seu corpo, pequeno e esquelético, parecia não ter forças para suportar o peso do mundo que o rodeava. A pele pálida, quase translúcida, esticava-se por cima das roupas largas, que pareciam grandes demais para ele. Cada movimento era um esforço, como se sua fragilidade fosse um fardo — uma resistência silenciosa ao cansaço que ele não conseguia evitar.

Ele andava. Um passo depois do outro. Mas cada movimento parecia pesado, como se o ar fosse um fardo que ele tivesse que carregar. A cada passo, o chão parecia ceder um pouco mais, frágil demais para suportar seu corpo que mal se alimentava. Ele queria parar, queria gritar para o mundo e sair dali, mas o corpo se movia sozinho, como se fosse movido por algo além de sua vontade.

Era como se o silêncio estivesse com ele. Não o silêncio de uma noite calma, mas algo mais insuportável. Era o tipo de silêncio que era mais um peso, uma pressão contra os ouvidos, contra os nervos. Como se o mundo tivesse parado de fazer sentido. Como se tudo estivesse se arrastando, engolido pela quietude — como uma respiração que você não pode mais ouvir.

Então ele viu.

Um fio.

Negro. Tão simples, tão insignificante... mas ele não pertencia a esse lugar. Não naquela imensidão de branco. Estava ali, solto no chão, como um erro — um detalhe que gritava em sua simplicidade, exigindo ser notado.

Shirou agachou-se, movido por uma força estranha, quase automática. A sensação que subiu pelas suas pernas foi de um frio gelado, algo rastejando pela pele, como se o próprio ambiente quisesse devorá-lo de dentro para fora. Ele tocou o fio com um toque hesitante. Era quente. Quente de uma maneira que não fazia sentido — como se fosse... vivo.

E então ele puxou.

O mundo desabou.

Não de verdade. Mas a sensação foi essa. Como se o chão tivesse se dissolvido, como se o ar ao redor dele se tornasse espesso, viscoso, como uma substância pegajosa que grudava nos pensamentos e nos músculos. Ele tentou manter o equilíbrio, mas de alguma forma ele já não estava mais ali — não no mesmo lugar.

Ele estava em outro lugar.

O orfanato. Algo que não se encaixava no mundo, mas ainda assim estava ali. Parecia ter sido abandonado há muito tempo, mas ainda resistia — com a estrutura ruindo como uma lembrança distante de algo que um dia já foi. As paredes, antes talvez claras, agora estavam cobertas por manchas escuras, como se o próprio tempo tivesse deixado marcas profundas nelas, sinais de um passado que insistia em se agarrar ao presente.

O papel de parede, que antes provavelmente teria sido simples e branco, agora estava desbotado, descascado, com as bordas comendo a tinta em pedaços. As janelas sujas não permitiam que a luz entrasse como deveria; o sol parecia ter se rendido à opacidade do vidro, tornando a luz pálida e sem força. O ar estava estagnado, como se a própria atmosfera tivesse sucumbido à falta de vida, com o cheiro de mofo misturado ao de madeira apodrecida — cada respiração tornando-se mais difícil que a anterior.

O lugar estava vazio, mas não de uma forma qualquer. A ausência de movimento, de qualquer vida, fazia o silêncio mais pesado. Não era apenas quieto — era sufocante. Um vazio que se impunha, engolindo tudo, até mesmo as memórias. Os espaços pareciam desconexos, como se houvesse tentado haver vida ali, mas algo o impedira. O orfanato, embora grande, estava sufocado pela falta de cuidado e pela falta de humanidade. Mesmo antes da guerra, talvez tivesse sido um lugar simples, mas agora era apenas uma carcaça — um corpo de uma época perdida.

A cada passo que ele dava, o som da madeira velha rangia, ecoando de uma forma desconfortante. O silêncio não era um silêncio comum, mas algo denso, pesado — como uma capa que o envolvia e o apertava a cada respiração. Como se o próprio orfanato estivesse esperando que ele se afogasse ali.

Em meio a isso, a lembrança de Aiko e todos os outros veio. Não era como um pensamento claro, mas uma sensação — uma sensação de calor, de algo bom, algo que não estava mais ali. Sua memória era tudo o que ele tinha deles. O sorriso que ele lembrava da irmã agora parecia distante, embaçado pela luz fraca. Ele queria que ela estivesse ali, mas não estava.

Ele procurou, a ansiedade crescendo, mas o orfanato parecia não ter fim. As portas estavam fechadas, mas não trancadas. Ele as abria e, ao olhar, sempre se deparava com o vazio. O ar estava imóvel, como se o lugar estivesse tentando evitar que ele fosse embora. Cada respiração parecia ser mais difícil — um peso se formando em seu peito.

Ele sussurrou o nome de todos eles — e principalmente dela. Aiko. Não sabia por que, mas parecia que, se pudesse falar o nome dela, talvez o mundo voltasse ao normal.

Mas nada aconteceu.

Foi então que ele a sentiu.

Não viu, mas a presença estava ali.

Não um vulto, mas uma sensação densa e fria — algo que não deveria estar no mesmo espaço que ele.

Era como se o lugar respirasse com ele, mas com uma respiração que não era dele. Algo que não podia ser visto, mas que estava ali, distorcendo o espaço ao redor. Não era como ver alguém entrando numa sala. Não. Era mais como sentir uma sombra se arrastando pelo ar — algo que mudava a textura do ambiente, como se o próprio espaço estivesse sendo manipulado por mãos invisíveis. O ar estava mais denso, mais pesado. Como se estivesse sendo comprimido.

O peito de Shirou apertou. Suas mãos começaram a tremer, e ele tentou se forçar a respirar, mas o ar parecia mais grosso. A pressão aumentava — uma sensação de pânico começando a engolfá-lo. Mas o pior estava dentro de sua cabeça. Era como se um zunido tivesse se alojado em seus ouvidos, uma presença estranha que se arrastava por dentro de seu cérebro, se espalhando em cada canto, se tornando parte de cada pensamento.

Ele tentou falar, mas engasgou. A língua parecia pesada, paralisada. Ele tentou correr, mas seus pés não se moviam — como se a gravidade tivesse mudado de alguma forma, o mantendo preso. Tentou... existir. Mas foi aí que ele entendeu.

Ele já estava morrendo.

A morte não era o que ele imaginava. Não era o fim. Era uma presença. Algo que se enredava dentro dele, como uma força invisível — mais real do que qualquer coisa ao seu redor. Uma presença sem forma, sem rosto. Mas cheia de peso.

Então, ela falou.

A voz... era como vidro sendo arranhado. A calmaria em meio ao caos. Mas o que mais assustava não era o som. Era a tranquilidade. A frieza. Como se a pergunta que ela estava prestes a fazer já estivesse dada. Já estivesse acontecendo, sem mais demora.

—̷ ̷S̷e̷ ̷a̷b̷r̷i̷s̷s̷e̷s̷ ̷o̷s̷ ̷o̷l̷h̷o̷s̷,̷ ̷t̷u̷a̷ ̷e̷x̷i̷s̷t̷ê̷n̷c̷i̷a̷ ̷s̷e̷ ̷p̷e̷r̷d̷e̷r̷i̷a̷,̷ ̷m̷a̷s̷ ̷a̷i̷n̷d̷a̷ ̷o̷l̷h̷a̷r̷i̷a̷s̷ ̷p̷a̷r̷a̷ ̷q̷u̷e̷m̷ ̷t̷e̷ ̷o̷b̷s̷e̷r̷v̷a̷?̷

Apesar de não compreender o que foi dito, a pergunta penetrou em Shirou como uma lâmina afiada.

Mas Shirou não respondeu.

Ele se forçou a olhar para frente.

E viu.

Uma sombra, rastejando pelo corredor vazio. Mas não era uma sombra comum. Ela parecia respirar, se mover com uma cadência própria — como algo que se arrastava para dentro dele, sem que ele pudesse impedir. A presença aumentava, e com ela, a certeza de que algo havia se quebrado dentro dele.

Ele sentiu a morte como uma onda quente e espessa envolvendo seu corpo pequeno, seus ossos frágeis. A dor — uma dor insuportável — se espalhou de seu peito para suas extremidades, até ele não conseguir mais distinguir onde começava a dor e onde terminava a sensação de ser consumido.

Shirou não tinha forças para lutar. Ele sabia que, naquele momento, ele já havia sido consumido. Aquilo o tinha encontrado.

Em vez disso, vomitou. O gosto era de ferro. De algo velho, enraizado na garganta, que não pertencera a ele.

Ele caiu de joelhos. O chão tremia. Não fisicamente, mas na sensação. Como se o próprio lugar estivesse se despedaçando, se desintegrando ao redor dele. Ele tentou engolir o choro, mas tudo o que conseguiu foi sentir o gosto metálico da morte — a pressão em seu peito se tornando insuportável. Seus olhos se arregalaram quando sentiu que, por mais que tentasse lutar, algo o estava tomando.

O corpo dele tremeu como se estivesse tentando se soltar de si mesmo. Os dedos contorceram-se em espasmos, e um calor horrível subiu pelas pernas — não calor de febre, mas de carne sendo dilacerada por dentro, como se o sangue estivesse tentando fugir. Veias saltaram de sua pele fina, pequenas linhas azuladas pulsando como se chorassem. Um rangido veio de dentro do peito. Um som úmido — como se algo tivesse quebrado ali, devagar, para que ele sentisse.

A sombra, agora perto demais, parecia atravessar a realidade como um prego atravessa a madeira — devagar, impiedoso. Ele gritou. Ou achou que gritou. Só o silêncio respondeu.

Aquilo estava se aproximando.

E, naquele instante, enquanto o mundo tremia dentro dele, Shirou entendeu:

Aquilo o conhecia.

Estivera esperando por ele.

E o havia colocado ali, desde o início, para que sofresse da maneira mais cruel possível.

Esse era um reencontro.

E seria o primeiro de muitos.

 

 

* * *

 

Momentos como aquele faziam Shirou ter certeza de que não estava preso em um sonho longo e profundo. A sensação de seu sangue pulsando nas veias era tão real quanto a respiração pesada, que parecia pesar como ferro. Ainda sentia o gosto metálico na boca, e o peito queimava, como se estivesse sendo comprimido por uma força invisível.

Estava de novo na biblioteca. Agora, começava a entender por que aquele lugar o atraía com uma força quase magnética. Tudo fazia sentido — de um jeito que ele ainda não conseguia explicar. A sensação era de uma clareza aguda, quase insuportável.

No balcão de atendimento, parado atrás dele sem cerimônia, estava Aquilo, o portador da chave para sair daquele plano. Uma figura solitária, cercada por uma aura de silêncio tão espessa que Shirou podia quase tocá-la. Seu rosto — ou o que deveria ser um rosto — era liso, sem traços, como se a própria ideia de uma expressão tivesse sido retirada, deixando um vazio, um buraco que preenchia o espaço ao redor de forma incomodante. Era uma ausência tão presente que fazia o ar ao redor parecer pesado, carregado com algo que não devia estar ali. Aquilo não era apenas uma figura desconfortável; sua presença tinha o poder de distorcer a realidade, de deixar a própria sensação de tempo e espaço questionável.

Shirou franziu a testa. Havia algo na ausência de rosto que o fazia sentir uma estranha sensação de déjà-vu.

— Você está parecendo o Sem Rosto — ele murmurou, sem pensar, como se as palavras saíssem sozinhas.

Mas, ao contrário do ser do filme, com sua face sem expressão, Aquilo não era apenas ausência. Ele exalava uma escuridão densa, como se o ar ao redor estivesse sendo comprimido, pesado com uma pressão invisível. Suas intenções não eram óbvias, mas estavam lá, pulsando nas bordas do que Shirou podia perceber, como sombras em movimento, incertas, mas carregadas de um peso indiscutível. Era uma ameaça, mas não de uma forma explosiva; era o silêncio de algo que se aproxima sem que você perceba, até ser tarde demais. Shirou se lembrou do filme Sobrenatural, aquele que o deixara inquieto, com a sensação de algo rastejando sob sua pele. Aquilo carregava a mesma sensação de desconforto: algo que você queria esquecer, ignorar, mas que permanecia ali, persistente, incômodo, impossível de afastar.

llud. O nome apareceu com uma clareza inexplicável, como se sempre tivesse sido o único possível. Mas Aquilo se recusava a ser nomeado. Chamá-lo de "Aquilo" não passava de uma tentativa, um rótulo provisório, sem verdadeira intenção de o definir.

A voz de Aquilo soou baixa, fraca, cortando o silêncio como um sibilo distante.

Minha aparência... é influenciada pela imaginação de quem me vê.

— Não precisa repetir isso toda vez — Shirou respondeu sem querer, o tom seco, cansado de ouvir sempre a mesma explicação.

Aquilo apenas riu — ou melhor, um movimento quase imperceptível, algo que poderia ter sido um sorriso. Seus ombros se ergueram brevemente, como se a gargalhada nunca fosse realmente pronunciada.

Já fazem, dez, anos.

— Me poupe de coisas irrelevantes. — Shirou respondeu, mais cansado do que irritado.

Aquilo permaneceu ali, imóvel, como se fosse uma escultura feita para observar, e não ser observado. A sensação de que algo o observava, algo que não deveria estar ali, mas que também não era completamente irrelevante, fazia o ambiente se arrastar, pesado, como se o ar estivesse se tornando mais espesso.

Curto e direto, como sempre.

Com um movimento que parecia quase casual, Aquilo colocou um pequeno dado branco de seis faces sobre o balcão. Seus dedos eram finos, esguios como galhos, quase inofensivos à primeira vista, mas havia algo ali, algo na maneira como eles se moviam, que o fazia parecer... alienígena. Quando se retiraram lentamente, como se se dissolvessem na própria escuridão, Shirou não conseguiu desviar o olhar do dado. O que ele queria de Shirou agora? Qual seria o jogo?

Um simples jogo de adivinhação — a voz de Aquilo soou, mas parecia vir de dentro da cabeça de Shirou, como se soubesse o que ele pensava antes mesmo de ele pensar.

Shirou olhou o dado. Não pensou. Não precisava. Sabia a resposta como sabia que a dor de cabeça estava vindo.

— Dez anos... para planejar isso?

Aquilo não sorriu. Seus lábios se curvaram levemente, mas não havia calor na expressão. Era um sorriso frio, distante, como se fosse feito de algo mais antigo do que o próprio tempo.

Como está a sua sorte?

Shirou estreitou os olhos.

— Me sinto como um rato em uma roda.

Aquilo olhou para ele, sem pressa de responder.

Andando em círculos?

O silêncio depois da pergunta parecia durar uma eternidade, mas Shirou sabia que tinha sido uma provocação, e nada mais.

— ...

Não se preocupe. Você não está. Mas talvez tivesse sido mais inteligente se tivesse sido um pouco mais diligente. Está perdendo o ritmo?

A voz de Aquilo estava ficando mais distante, como se a própria conversa tivesse perdido algum tipo de ancoragem no tempo ou na realidade.

— ...Até quando?

Mas Aquilo não respondeu. Ele não precisava.

Levando em consideração que o dado tem seis faces... qual número será revelado?

Shirou olhou o dado. Não parecia curioso, nem pensativo. Apenas... ciente.

Estendeu a mão, girou levemente o cubo com os dedos e deixou a face com seis pontos voltada para cima. O dado rolou brevemente, como se obedecesse mais à inércia do gesto do que à gravidade. Quando parou, ele pousou o dedo sobre a superfície.

Seis.

Não foi um palpite. Também não foi uma resposta. Parecia só... inevitável.

Aquilo sorriu.

Um sorriso que não se ouvia, apenas se sentia. Como um reflexo num espelho trincado. O sorriso se esticava devagar, e o espaço ao redor se deformava com ele. O ar ficou mais denso, o chão parecia menos firme. Shirou sentiu a náusea vir, mas não recuou.

Fascinante — disse Aquilo, e continuou sorrindo. Um sorriso que não sabia parar.

Aquilo sorriu.

Aquilo sorriu.

Aquilo sorriu.

A q u i l o . . .

O sorriso se expandiu.

Expandiu.

Expandiu.

O largo sorriso de Aquilo se estendia até onde não deveria. Como uma fenda mal costurada no tecido do mundo.

Shirou cruzou os braços, sem pressa. Quando falou, sua voz saiu baixa, quase como se estivesse encerrando uma conversa casual demais para tudo aquilo.

— Agora pode parar com isso?

A presença de Aquilo permaneceu. Mas em silêncio.

Do que... fala? — A voz veio distorcida, entrecortada por uma estática que parecia vir de dentro da própria cabeça de Shirou.

Ele não piscou.

Você realmente não teme nada? — Aquilo perguntou, e as palavras pareceram escorrer pelas paredes do espaço.

Shirou respondeu sem pressa, como quem volta a um assunto esquecido.

— Se eu sentisse medo, você seria a primeira coisa que me preocuparia?

O silêncio que veio depois foi quase um alívio.

Ele sentia, sim. Um calafrio discreto, crescendo devagar atrás da nuca. Mas não deixou transparecer. Não era orgulho. Era estratégia.

Talvez, eu te... consuma — Aquilo disse, com um meio sorriso que insinuava mais do que dizia.

— Tente. Mas duvido que o gosto valha a pena — Shirou respondeu, sem sequer vacilar.

Aquilo continuou sorrindo.

Shirou permaneceu onde estava, firme.

Ele não precisava vencer o jogo.

Só precisava continuar.

Aquilo o desafiava o tempo todo com dilemas que, mais cedo ou mais tarde, acabavam se desfazendo em paradoxos. Com o passar do tempo, pareciam cada vez mais fáceis, quase infantis.

Eram baseados numa lógica que não pertencia a este mundo, uma realidade torta onde certo e errado se misturavam feito névoa.

Aquilo não queria respostas comuns. Queria ver até onde Shirou seria capaz de ir — até onde conseguiria dobrar a própria mente sem deixá-la se partir no meio.

Mesmo quando precisava contar com a sorte, ela nunca o abandonava; pelo contrário, parecia cada vez mais entranhada nele.

Sua presença era quase como a de um velho conhecido. Não havia necessidade de palavras; existia uma espécie de compreensão implícita entre os dois.

Não era medo, muito menos respeito.

Era como ter uma sombra sempre à espreita, uma distorção incômoda na periferia da visão.

Embora desconcertante e perturbadora, não chegava a ser ameaçadora.

Um incômodo persistente, mas nunca doloroso. Pelo menos, não ainda.

O silêncio se reorganizou, até que a voz de Aquilo voltou, mais comedida desta vez.

Me diga... como chegou a tal conclusão, sobre o dado?

A pergunta parecia simples, mas o tom tinha aquele peso de algo cuidadosamente colocado, como quem arma uma armadilha com luvas.

Shirou manteve os olhos no chão por um instante, depois voltou a encarar o vazio.

— O dado tem seis faces. Eu virei a face com seis. Não tem muito mais a dizer.

Aquilo não pareceu satisfeito. Sua presença persistia, como se pressionasse em silêncio por algo mais.

Shirou soltou o ar, um pouco mais impaciente do que deixava parecer.

— Você quer que eu te diga como isso se encaixa nesse jogo, certo? Mas não há jogo. O dado cai, e o número aparece. Eu poderia ter escolhido qualquer lado, mas o resultado já estava lá. O que fiz não muda o desfecho. Só me deu a ilusão de que eu tive escolha

A fala saiu tranquila, quase entediante. Como se explicasse um truque que já nem fazia mais questão de esconder.

— Eu escolhi, sim — continuou ele. — Mas não por convicção. Escolhi porque era o que restava. O dado não mente. Ele já sabia. Eu só segui o que já estava decidido desde o início. E se não estava... então, azar o meu. Tanto faz.

Houve uma pausa. A sensação de sufocamento parecia ter recuado alguns centímetros.

Shirou deu um pequeno passo à frente.

— Você não disse que iria rolar o dado.

Disse isso como quem aponta uma omissão esquecida num jogo de tabuleiro.

Aquilo permaneceu em silêncio.

Mas desta vez, o silêncio parecia mais distante, como se Aquilo tivesse se cansado ou, talvez, simplesmente deixado de se importar.

 

Não era vitória. Mas talvez fosse o mais próximo que se podia chegar de uma.

Aquilo se calou. O silêncio que restou parecia mais um abismo do que uma pausa. Não era como se estivesse em frente a uma presença, mas a algo que distorcia o tempo e a lógica. Algo que ele não conseguia sequer imaginar, mas sentia.

Creio que sua mente está cada vez mais se tornando...

As palavras flutuaram pela mente de Shirou, mas ele as afastou com um esforço. Era como se algo se arrastasse ali, paciente, esperando o momento certo para se revelar. Mas ele não se permitiu dar atenção a isso.

Olhou ao redor. A expressão no rosto que normalmente mantinha oculta da irmã agora estava suavizada, talvez um pouco mais esperançosa, como se o ambiente familiar da biblioteca fosse capaz de oferecer alguma resposta. Ele sabia exatamente onde estavam os livros, cada um deles, mas por algum motivo, parecia que o cenário à sua volta estava... diferente. Como se ele tivesse entrado em um lugar que não deveria estar ali.

Seu destino, ele sabia, estava em movimento, mas ainda não podia ver até onde iria.

Aquilo se inclinou ligeiramente para trás, com um movimento suave, quase relaxado. A mão levantou, mas não como se estivesse prestes a atacar. Era apenas um gesto, vazio e sem pressa.

Já experimentou bolo de morango? — Aquilo perguntou, como se estivessem em uma conversa casual.

A pergunta flutuou no ar por alguns segundos.

O de chá verde também é bom... mas o de morango — disse, inclinando a cabeça — sempre me pareceu... mais humano.

O sorriso se manteve. Uma curva exata. Como se estivesse posicionado ali desde o início.

Shirou não respondeu imediatamente. O peso da pergunta o incomodava. Ele respirou fundo, tentando afastar a sensação de que o ar ao redor estava mais espesso do que o normal. Ele sabia o que estava acontecendo. Sabia o que Aquilo estava tentando fazer. Mas, como sempre, não conseguia escapar totalmente.

— Já... chá verde. Não lembro do gosto. O de morango... não era nada demais...  — disse, finalmente, como se fosse uma resposta comum, mas sem nem mesmo se convencer disso.

O silêncio se estendeu por um momento, e ele fechou os olhos, quase buscando o consolo da escuridão atrás das pálpebras.

Ele abriu os olhos e se encontrou olhando para a mulher atrás do balcão. Uma bibliotecária, talvez, com seu físico arredondado e os óculos presos por uma correntinha, encarando-o com um olhar curioso, quase espantado.

Shirou ficou quieto, a observando sem pressa de responder. Sua mochila não estava à vista, mas ele não se preocupava. Ela parecia real, humana, mas algo na maneira como o encarava, como se não o visse completamente, fazia a atmosfera ao redor parecer diferente. Ele manteve o olhar fixo nela, esperando para ver o que aconteceria a seguir.

— Onde eu estou? — perguntou ela.

Shirou deu de ombros.

— Não sou eu quem deve explicar.

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