Volume 1

Capítulo 4: Bem Vindo a Aio

 

Próximo aos portões da cidade conhecida como Velha Ture, o homem-cão observou impressionado as grandiosas construções que se destacavam diante de seus olhos.  

Entre torres militares de formas pontiagudas e mansões imponentes rodeadas de jardins floridos, também haviam muitas ruínas, das mais variadas estruturas, que se localizam nas periferias esquecidas da cidade.

Todas eram distintas entre si, e ainda assim se encaixavam com a harmonia de uma verdadeira metrópole em expansão. 

Uma estrutura intimidadora para qualquer forasteiro desavisado. E com um homem-cão de coração acelerado não seria diferente.

Olhares curiosos, murmúrios velados e sustos contidos já cercavam sua chegada.

Cada vez mais sua exposição ao público o deixava ansioso . 

"Mas que droga!" Pensa o Homem-cão. "Nem lembrei que eu era essa coisa e já fui entrando"

Era evidente que não era bem vindo ali, e logo tentou se esconder entre as ruas e becos da cidade. No entanto, até mesmo nas ruas mais estreitas existiam moradores impressionados com a sua presença incomum. 

Cada vez mais rápido, o homem-cão tentava sair da vista de todos os que apontavam, mas em uma curva na saída do beco três homens de armadura leve, que estavam parados em uma praça próxima, o avistaram se evadindo entre as casas. 

Esses homens aparentavam ser a lei na região, e observando aquele ser se esgueirando pelas ruas e vielas, se viram obrigados a acompanhar sua movimentação. 

Dois se propuseram a segui-lo enquanto o terceiro mantinha seu posto na praça, e adentrando em ruas e becos desconhecidos, o homem-cão chegou em uma região muito decadente da cidade. 

Inúmeras adversidades saltariam aos olhos de qualquer estranho que chegasse a este local. Porém, o homem-cão só percebia que as pessoas dessa área não se preocupavam com sua presença. 

E isso trazia, em primeiro momento, um pequeno alívio a ele, que agora mais calmo, podia observar melhor os seus arredores. 

"Ué!? Será que aqui que é o lugar de gente como eu?" Pensa o Homem-cão.

E só então o homem-cão percebeu que estava envolto em ruínas e tristeza, onde a visão de um ser como ele não causaria tanta comoção quanto o terror da fome e da doença que assombravam este local. 

Distraído e curioso com o clima pesado, ele parou sua fuga e se sentou em uma escadaria próxima. 

E ao invés de ser observado com receio, era ele que os contemplava intrigado. 

Sujeira, pobreza e enfermidades estavam por toda parte que se olhava, e cada casa tinha seu próprio conjunto de estragos que a definia.

Dos moradores, só se podia sentir o pesar de seus olhos, que apáticos, se perdiam em pensamentos sem esperança que todo este ambiente evocava. 

Nada era bom ou agradável.

E já pronto para se levantar e ir embora dali, algo chama sua atenção.

"Mas que que isso? Tem gente rindo nesse lugar?" se pergunta o homem-cão em seus pensamentos.

Risos de felicidade insurgiram como um ladrão aos ouvidos do que acabara de chegar, roubando qualquer noção de ação e consequência concebida por aqui, já que, como um lugar de tamanha infelicidade poderia gerar sorrisos tão sinceros.

Enquanto procurava a fonte dos risos, ele viu ao longe duas crianças brincando em meio aos escombros de uma casa. O que o deixou ainda mais curioso, afinal, o que poderia fazer crianças, geralmente tão sensíveis, ignorarem as coisas horríveis que estavam em todo seu redor.

E não demorou muito para receber a resposta. 

Os prováveis pais estavam junto às crianças e também brincavam dentre os restos e as ruínas da região. 

Com um aspecto mais magro e debilitado, eles não se mostram abalados em frente aos seus filhos, e logo se propõe a brincar de esconde- esconde 

Isso anima ainda mais as crianças que correm para iniciar a brincadeira, e conforme se afastam  seus pais, aos poucos, cederam ao cansaço e a fraqueza da fome. 

Era uma cena sutil, ignorada por todos. Todos menos o homem-cão, que em sua situação delicada, não conseguia parar de olhar aquela família. Pai e mãe suportando a aflição da miséria para dar a única coisa que teriam a oferecer naquele momento. 

Tamanho devaneio durou apenas alguns segundos de reflexão, pois logo ele seria interrompido com uma pergunta inesperada.

– O que você quer aqui, lycan!?!?

Retirado bruscamente de seus pensamentos, o homem-cão olhou para os lados assustado, até que encontrou à sua frente dois guardas que o estavam seguindo sem que ele percebesse.

–... Hã!?... Eu!? – responde o homem-cão ainda confuso.

– Não!! O outro Vira-latas atrás de você!! – fala o soldado com sarcasmo.

Se virando para trás, o homem-cão buscava o "Vira-latas" de quem os guardas falaram, mas impaciente, o guarda fala novamente com mais ênfase.

– TÁ DE PALHAÇADA LYCAN!? É contigo mesmo! O que que você tá fazendo circulando por aqui? Me fala!

Sem reação, o homem-cão só conseguia olhar para os guardas enquanto buscava alguma resposta que o salvasse dessa situação. Até que o outro guarda, já incomodado, falou para seu companheiro.

– Esse lugar fede demais! Faz até meus olhos arderem. Leva logo ele e vamos voltar para terminar o turno.

O medo do homem-cão se tornou ainda maior, o forçando a responder com pavor nos olhos, ao mesmo tempo em que recuava sem se levantar.

– POR QUE!? EU NUM TO FAZENDO NADA! EU ACABEI DE CHEGAR AQUI! VOCÊS NÃO PODEM ME LEVAR NÃO!

Sua frase termina no exato momento em que, ao se arrastar dentre os degraus da escada, bate sua nuca na porta da residência que estava a suas costas, o que o faz se levantar e se escorar na mesma. 

Assim, encurralado e sem saber o que fazer, o homem-cão era duramente questionado pelos guardas da cidade.  

– Um lycan desgarrado tão longe do ninho só pode ter feito merda! E porque tá tremendo!? Que inocente é esse que treme e corre quando vê um guarda!?

Então o guarda apontou para o pano onde estava enrolada a espada que ele havia roubado, e intrigado ele perguntou.

– E o que que isso que você tá tentando esconder aí heim!?... Será que eu posso ver!? Hé! Hé! Hé!

Paralisado de medo e rente a porta, o homem-cão ficou sem resposta, porém de repente, ele cai para dentro da casa aos pés, ou ao pé, de um indivíduo misterioso que abrira a porta em suas costas.

Era um homem baixo no entanto forte, de barba longa e ruiva usando um par muletas devido a falta de uma de suas pernas. Esse homem olhou diretamente para o homem-cão com raiva e reprovação por um período mais longo que o normal, causando estranhamento e curiosidade mesmo nos guardas. 

Até que o silêncio é cortado por um golpe de muleta direto no rosto do homem-cão, dado por esse anão que acabará de abrir a porta. E como se não fosse suficiente, o anão ainda segue com uma bronca dada ao homem-cão.

– Vira-latas maldito!! Nem restos de pão você consegue buscar sem trazer os guardas até a minha porta!!!

– Esse lycan é coisa sua Paragor? – Perguntam os guardas.

O homem baixo, que agora conhecemos como Paragor, responde com um sorriso sarcástico.

– Isso é coisa de apostas mal pagas, isso sim! Mas que droga! Como um bicho narigudo assim não consegue farejar nada além de lixo me digam!?

Logo os guardas se acalmam e continuam a perguntar.

– Então o cachorro é seu?!...Você tem noção que é proibido ter escravos nessa cidade né!?...E até onde eu entendi, isso aí também é considerado um escravo!

Paragor dá uma risada mais empolgada e fala.

– Há! Há! Há! E é por isso que Lady Charlotte chama os dela de empregados, Capitão Heitor chama os dele de soldados, e eu chamo os meus de amigos. Há! Há! Há!... Agora "amigo" Vira-latas, entra e leva logo esse pão pra dentro! Meus outros "amigos" estão com fome!

O homem-cão, sem saber o que era pior, entrar ou continuar ali com os guardas, ficou imóvel na frente daquele homem baixo e desconhecido. Contudo, Paragor viu a indecisão do homem-cão e gritou com bastante ênfase.

– AGORA!!!!

Já sem opção, ele fez o que lhe foi ordenado e entrou na casa de Paragor. 

Assim, subjugado pela voz alta de um homem baixo e sem uma das pernas, o homem-cão se questionou sobre o quão vulnerável ele era, e um sentimento de impotência e humilhação começava a tomar seu coração quase por completo, impedindo qualquer empatia por aquele anão que o tratou tão mau. No entanto, o homem-cão já estava dentro e Paragor ainda estava fora na porta concluindo a conversa com os guardas. 

– Hum!... Eu ainda estou vendo o que vale mais...O faro ou o couro! Mas podemos falar mais disso na taberna. Ainda esta noite vou lá testar a minha sorte! Hé! Hé! Vocês vão também!? Estou precisando de dinheiro e vocês podem me ajudar, não é?!

Os guardas dão um sorriso sarcástico e respondem à provocação.

– Meu saldo já te sustentou demais! Sabe que quando descobrirem como você rouba eu vou ser o primeiro a amolar minha espada no seu pescoço anão!

Paragor responde junto com uma gargalhada.

Há! Há! Há! Então já posso ter a certeza que degolado eu não morrerei! Há! Há! Há! Bom…agora vocês vão ter que me deixar em paz porque tenho mais o que fazer. Tenham um dia lucrativo, senhores, porque à noite vocês perderam até suas mães! Há! Há! Há!

Os guardas respondem também com risadas.

– Hé! Hé! Hé! Sua mãe te jogou na privada e agora você quer ganhar uma no jogo!? Eu nem ia jogar hoje, mas vou só pra calar essa sua boca de bosta!

E assim os guardas voltam para seus postos e Paragor entra em sua casa já pronto para descobrir tudo que fosse possível de seu novo e inusitado hóspede

Era uma mansão antiga de dois andares e estava em melhor estado que a maioria das construções desta parte da cidade. Porém, ainda estava em ruínas. 

O homem-cão, se sentindo desconfortável, não prestou muita atenção no que havia dentro da mansão. Mas quando Paragor entra e fecha a porta, o vislumbre do interior desta residência chega a sua atenção. E para seu espanto, ele vê que a casa aparentava funcionar como um grande dormitório, e uma precária enfermaria. 

Muitas pessoas circulavam nos diversos espaços que haviam no interior deste lugar, e várias outras estavam deitadas nas inúmeras camas espalhadas pelos cômodos da mesma, sendo que a maioria dessas pessoas aparentavam estar doentes ou no mínimo desnutridas. O que ajudava a manter o clima triste de toda essa região. Porém ao contrário de tudo, Paragor aparentava estar de bom humor e era muito decidido no que iria falar ou fazer, além de ser bem observador, percebendo até a quebra de expectativa do homem-cão ao ver o interior de sua casa.

– E então!? Gostou do meu castelo!? – pergunta Paragor. – É um lugar sujo, velho, úmido e fedido. Mas pelo menos dá pra dormir sem tomar uma facada! Então já é melhor que muitos lugares lá fora!

O homem-cão, ainda desconfiado, retruca.

– Porque me ajudou? O que você quer?

– Hé! Hé!... Acho que dá pra ver que tem muita gente ferrada aqui! E quando te achei você estava se ferrando também! Então vai com calma! Eu só estou te oferecendo um lugar pra dormir e também vou te pedir um favor… Mas fica tranquilo! Você pode recusar se quiser.

Sem acreditar em tão conveniente bondade, além de também querer se impor mediante a sensação de humilhação que o afligia, ele questiona Paragor de maneira ligeiramente rude.

– Mas então é só bater na porta e já se tem onde dormir e comer aqui!? Eu não acredito nessa bondade toda!!

Paragor logo enrijece seu semblante e toda aquela impressão amigável e decidida dá lugar a uma aura de intimidação seguida de um olhar que paralisa o homem-cão. E olhando bem nos olhos, Paragor o responde.

– Quem falou em comida!? E o critério para entrar aqui é não ser um babaca bastardo! Você é um babaca bastardo lycan?!

O homem-cão após ouvir as palavras de Paragor só conseguia abaixar sua cabeça e responder com a voz baixa.

– ... Nã… Não!... E… E meu nome não é lycan!

Paragor volta ao seu semblante anterior e responde ao homem-cão.

– Imaginei que não fosse!...E é claro que seu nome não é lycan!...Agora venha! Vamos conversar longe da porta.

Então Paragor o levou para um canto do Salão onde estavam vários moradores de rua doentes deitados em camas improvisadas. Esses doentes estavam sendo tratados por outros também desabrigados, que apesar de parecerem tão doentes quanto os outros, ainda detinham mais sorte que os demais por conseguirem andar.

Chegando onde queria Paragor pede que o Homem-cão se sentasse em uma das camas enquanto ele se escora na parede para conversarem com mais calma. O homem-cão ainda estava arredio e não queria estar a mercê daquele anão, que o intimidava sempre que eles discordam de algo, pelo menos era assim que o homem-cão estava entendendo essa situação, e enquanto esperava uma oportunidade de se impor, o ele se senta contrariado na cama indicada.

– E então!?... Qual é a sua história? – pergunta Paragor.

– Como assim!? – responde o homem-cão.

– De qual tribo você veio? Você tem nome? O que você quer?... É só juntar as respostas dessas perguntas e colocar uma enrolação no meio… Entendeu!?

O homem-cão não queria contar a pouca verdade que ele sabia sobre si mesmo, e por consequência ele logo conta uma história baseada nos vestígios de conhecimento que adquiriu até aqui.

– Hããã… Bem… Eu era um soldado… Eee… Eu e outros estávamos indo pra nossa tribo perto daqui...Mas...Mas fomos atacados e só eu sobrevivi...E...Foi isso...

Paragor, após ouvir com atenção a história, franze sua testa, levanta uma de suas sobrancelhas e olha diretamente nos olhos do homem-cão com pura descrença. Mas logo muda sua feição para um meio sorriso e fala.

– Há! Há! Há! Mas que merda de história lycan!!! Então esse palito de dentes que é você… É a merda de um soldado lycan!?... E você e seus amigos imaginários tem uma tribo inteira dentro desse reino!?... Você tá realmente achando que eu, no auge do fim da minha vida ferrada, vou acreditar nessa bosta!?!?

E ele ainda completa.

– Covarde, orgulhoso e mentiroso! Essa é a sua história até onde entendi! Mas não se sinta mal com isso lycan!! Na sua idade… Além dessas três qualidades… Eu ainda era um babaca bastardo!! Há! Há! Há!

Paragor então percebe que, provavelmente, toda essa conversa era pura perda de tempo. E assim ele resolve começar logo com sua grande proposta inicial.

– Bom… Não precisa se preocupar!... Aqui é o lugar para histórias igual a sua… Afinal… Parece difícil de acreditar, mas não somos uma guilda das virtudes e nem o exército da coragem sabia!?... Essas qualidades não se criam aqui!... A tristeza e o medo são mais respiráveis que o ar fétido desse lugar!!... Mas não foi pra elogiar nossa região que eu te chamei aqui...

Não era difícil perceber que o homem-cão não se sentia a vontade sobre toda aquela situação. Ele não conseguia olhar diretamente para Paragor, e nem deixar de observar ao seu redor com apreensão, esperando ser surpreendido por qualquer coisa de ruim que pudesse saltar no canto de seus olhos. Paragor sempre atento a cada detalhe que possa lhe dar vantagem, percebe o interesse do homem-cão nos arredores e aponta para onde ele realmente queria que o homem-cão olhasse.

– Ali!!...Olha ali rapaz!!... – diz Paragor com olhar de preocupação.

E ainda preocupado o homem-cão aos poucos se vira para olhar o local indicado.

– Está vendo aquela mulher?

 



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