Volume 1

Capítulo 5 : Medo da Sorte

 

Mesmo com sua atenção guiada por Paragor, o homem-cão ainda tem dificuldade de encontrar o que seu anfitrião queria lhe mostrar.

– Hã!? Qual? – perguntou o homem-cão.

– A única que não está deitada na cama com febre! – respondeu Paragor.

Dada a referência, finalmente ele percebeu aquela mulher no fundo do grande salão cheio de camas e de enfermos. Ela auxiliava outra mulher com vários hematomas e cortes profundos por todo corpo, que gemia e chorava de dor em um pranto insuportável para todos os que podiam a ouvir. 

No entanto, mesmo frente a tamanha agonia, uma aura de paciência e disciplina emanava de cada atitude daquela mulher indicada pelo anão. 

Ela cuidava com esmero e concentração de todas as etapas que um curativo poderia ter. E sua aparência era de extremo agrado aos olhos. Com sua boca pequena em contraste de seus lábios cheios, seus cabelos castanhos que se destacavam de tudo que o, praticamente recém nascido, homem-cão havia visto até aqui, e seu semblante delicado que não condizia com todo aquele caos que jazia ali. 

Em resumo, sua beleza hipnotizava e entorpecia, mas o que também se percebia era o perfeccionismo em seus afazeres. Que, com extrema atenção, ela os fazia de maneira dedicada e detalhada. Sempre com seus olhos bem fechados. 

Esse detalhe intrigante deixava o homem-cão curioso, fazendo com que ele prestasse cada vez mais atenção naquela mulher.

"Mas porque não os abre?" pergunta o homem-cão em seus pensamentos.

Ao final dos cuidados a mulher guarda seus instrumentos com calma e cuidado. Se levantando pronta para sua próxima função dentro dessa pequena comunidade. Isso deixa o homem-cão mais atento, já que ele esperava ver os olhos da mulher que tanto observava. Porém, após se levantar, ela buscou com uma de suas mãos a parede mais próxima, se apoiando e a usando como guia até a próxima pessoa que seria tratada por ela.

Vendo que o homem-cão percebeu o que ele queria, Paragor fala com um pesar em sua voz.

– Isso mesmo… Ela é cega… Teve seus olhos arrancados no dia do seu aniversário!

E paragor completa.

– Além de seus pais terem sido mortos, seu lar destruído e só conseguir sair viva graças às várias pessoas que se sacrificaram por ela… Hé! Hé!... Éééé… Acho que não preciso dizer que foi um dia meio chato, sabe?! Mas… como você já viu… as coisas estão melhorando. He!He!He!... No entanto... mesmo assim… ali... naquele canto… na mente dela… só existia ela, a ferida e o curativo… Você entende? Mesmo perdendo tudo! Ela ainda consegue criar objetivos e focar neles… E até você consegue ver a importância de alguém assim nesse mundo! O destino dela não está nem perto daqui!... E é aí que você entra rapaz!

O homem-cão logo deixou de olhar para a mulher e pôs seus olhos em direção ao nada. Focando assim, com um sutil semblante de preocupação, na proposta que ele sabia que estava por vir.

– O que eu quero de você é o seguinte! – afirma Paragor. –  Seja os olhos dela até chegar no reino de Strurgrann! Em troca eu darei condições para que vocês atravessem as regiões necessárias para chegar até lá!  

O homem-cão já tremia e gaguejava mesmo sem falar uma palavra. Mas depois de ouvir uma proposta tão direta e aparentemente tão difícil, todo esse medo triplicou!

"Como vou fazer isso!?" grita o homem-cão em seus pensamentos. "Não conheço nada! As pessoas querem me matar lá fora! Eu não conheço essa gente! Isso não dá para mim!"

Paragor, ainda atento às expressões de seu novo inquilino, que eram bem aparentes e sempre mais sinceras que as palavras do mesmo, continua sua proposta, a fim de tirar as dúvidas que transbordavam da face do homem-cão.

– Você tem olhos! E é só isso que eu quero! E ela tem a experiência para guiar você até a droga do mundo dos mortos e voltar com as cuecas do próprio Tarantos! Você não vai tomar decisões! Você não vai lutar com ninguém! Você não vai morrer antes de chegar lá! Entendeu agora!? Porque se você não percebeu… na história desse mundo ferrado a ferro quente por toda perversão que você possa imaginar ou não possa… nunca mais uma proposta assim será feita a alguém de novo!!!

O homem-cão sentia o peso das palavras de Paragor. Porém seu coração bombeava medo por todo seu corpo, e seu ego lateja humilhação e impotência, que o fez repensar do porque deveria se meter nisso. Além de acreditar que isso era algum tipo de “grande problema” que estavam querendo que ele se envolvesse. 

Cada vez mais questionador sobre as intenções de seus benfeitores, o homem-cão quis recusar a proposta. Mas sua boca pesava com a carga do medo e da intimidação que sobrepuja sua vontade de responder, o impedindo de falar exatamente o que pensava.

Contudo, o homem-cão tenta, mesmo assim, dar sua resposta.

– Eu… eu não tenho como… eu não sei nada desse lugar que você falou! E tá todo mundo atrás de mim aqui! Como eu vou fazer isso!?

Paragor vê que nenhuma decisão será tomada pelo homem-cão enquanto ele estiver assustado. 

Então o anão dá uma risada amigável e fala.

– Ha!Ha!Ha! Calma rapaz! Você pode piscar sabia?! E tenta respirar também. Se não quem vai passar mal sou eu!

Tranquilizado pela repentina descontração de Paragor, o homem-cão volta a sentir o peso dos ferimentos e com seu corpo enfraquecido ele procura um lugar para descansar

– Hum… Aposto que esqueceu que está com febre! – afirma Paragor – Vem! Você pode se deitar nessa cama aqui. Eu vou ver se alguém te ajuda a não morrer essa noite. Ela vai te dar comida também. Mas vamos lá rapaz! Pensa bem! Você tem uma chance de ouro aqui! Num vai ter outro anão perneta te dando dinheiro por aí não He!He!He!

O homem-cão acenou a cabeça tentando concordar de maneira amistosa, mas Paragor percebe que ainda existe muito receio e desconfiança em seu rosto.

Paragor então se afasta do leito do homem-cão, que se revirava de um lado para o outro procurando uma posição que diminuísse a dor e a febre que ele sentia.

– Eu ouvi tudo!

Fala uma voz quando Paragor chega ao outro cômodo de sua mansão em pedaços.

– He!He! Aaaah… que ouvidos terríveis você tem criança! – respondeu paragor.

– Você sabia que eu estava ouvindo!

Paragor só dá um pequeno sorriso e levanta suas sobrancelhas.

E saindo das sombras trêmulas das velas, que não tinham capacidade de alcançar aquele extremo do cômodo, a mulher cega se mostra dona da voz que questionava Paragor com tom pesado de desaprovação. 

E então, dessa vez cara a cara, ela continua com suas perguntas, demonstrando não entender as atitudes que levaram paragor a falar com aquele estranho com tanta certeza de que poderia confiar tal favor a ele.

– Por quê ele?! – fala a mulher cega com voz bem feminina, porém firme

Ha!Ha!Ha! – ri Paragor – Você não sempre disse que queria um cachorro!?

– Você não tem o direito de me responder com uma piada! – fala a mulher com raiva. – Eu acabei de ver você brincando com minha vida! Meu destino! Se você quer me jogar nas mãos de um animal qualquer então eu vou me virar sozinha!!

Paragor novamente muda suas feições para o ar intimidador de quando estava conversando com o homem-cão. Porém a aura pesada de antes que só incomodava, agora empurrava e assustava de verdade.

–...He!He!...Ééééh... você deve estar nervosa… cansada de ficar esperando a morte chegar nesse pulgueiro… Então eu vou perdoar você por esquecer quem eu sou criança… mas é melhor isso parar por aqui! Porque você não foi criada como um maldito vazo de porcelana! Você é uma espada! Uma espada que eu mesmo afiei… O terror tem que estar nos olhos de quem te acompanha com malícia no coração! Se eu! A única pessoa que você acha que está ao seu lado resolvesse te jogar aos leões... você iria chorar!? Se mijar!? E morrer menina!? Claro que não! Você degolaria… um… por um… Cada Leão pensando em ser eu ali....só para aproveitar mais de uma vez o momento quando você me encontraria de novo! O medo daquele vira-latas em andar com você por aí eu entendo! Mas se você quer me questionar criança… que não seja porque tem medo de morrer!

A mulher, antes com um olhar de decepção e desaprovação, agora se mostrava mais calma, séria e em alguns aspectos até mesmo cansada por um peso que se sentia só de estar perto dela. E assim ela responde a Paragor.

– Hum! Eu não treino mais, velho! Então esses discursos não têm mais efeito em mim. E eu me sentiria mais viva numa armadilha lá fora do que em uma louça aqui dentro. Mas você sabe que não gosto de perder tempo com coisas sem sentido. Então me explica uma coisa, seu velho… Como aquele lycan tão fraco vai poder me ajudar!?

Paragor abre um sorriso bem grande e sarcástico e ri pausadamente até começar a responder a mulher.

– Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Eu não faço a menor ideia menina!

A mulher dá um pequeno sorriso e responde.

– Hum...olha velho... você sabe que esses seus instintos só dão certo na mesa de poker !! Mas na vida real...Se a gente apostar... Nós vamos perder…

– É não é!?... Mas você lembra menina? – responde paragor com ar de nostalgia – Quando chegamos aqui... Nós estávamos tão ferrados! Seus olhos ainda sangravam… e eu ainda tinha pedaços pendurados da perna que me arrancaram. Nós chegamos a noite e achamos essa nossa mansão elegante… Tinha tanta areia misturada nas fezes e urina do chão que a gente teve que aprender a dormir igual as corujas! Mas no outro dia quando acordamos… tudo parecia um pesadelo muito maior do que no dia anterior. Afinal… e agora!? O que pode brotar dessa bosta e mijo que nós estávamos? Mas ali decidindo como iríamos morrer eu lembrei do que meu capitão me disse na primeira vez que me chamou pelo nome. Ele disse “Paragor seu anão bastardo! Ouça bem o que vou latir no seu ouvido! Toda vez… que você morrer… lembre-se que… esse mundo não é sobre você… nem mesmo sobre mim....mas é… sobre todos nós..."

No começo eu pensei que ele falava que minha história nem a dele tinha importância para o mundo. Mas aquele filha da mãe adorava falar frases com vários sentidos pra se mostrar. E com certeza ele guardou a melhor para o final! Foi aí que eu entendi… que o peso do mundo não está só nas minhas costas… nem só nas dele… entendeu menina? Então eu levantei a minha parte do peso e te convenci a ir em um rio tirar aquele fedor todo que nos acompanhava. He!He! Depois que começamos a feder um pouco menos você lembra o que aconteceu?

A mulher, que estava bem atenta e gostando da história, responde ao paragor de maneira sarcástica.

–.... Você roubou minha moeda de ouro pra jogar cartas.

Ha!Ha!Ha! – gargalha Paragor – Isso é jeito de falar com os mais velhos menina!? Eu fiz um empréstimo com você! Bem… eu realmente fui buscar minha sorte com sua moeda. E não é difícil farejar o fedor de jogos de azar e cerveja velha neste fim de mundo. Então assim eu entrei no lugar e depois de dois minutos eu estava com um sorriso de orelha a orelha! Ha! Ha! Eram os piores blefadores que eu já vi na vida! Ver as cartas seria menos vantagem do que ver as caras nervosas de cada um dos cordeiros prontos pro abate. Você lembra quando voltei menina?!

A mulher responde com mais sarcasmo.

– Você roubou o dinheiro de todos os guardas no jogo e ficamos tendo batidas aqui durante um mês.

Ha!Ha!Ha!Ha! – gargalha novamente Paragor – Porque eu ainda te pergunto menina malcriada! Eu segui minha experiência, menina! E ganhei honestamente na maioria das vezes. Hum menina! Eu sabia o que estava fazendo! Porque eu sou o mais velho e logo mais experiente!

– Com certeza você é velho – responde a mulher.

– Mas não desperdicei todos esses anos! Tanto tempo me fez ver vários aspectos desse mundo! Muitos dizem que sou protegido pelos deuses deste mundo… mas esses deuses  só protegem seus próprios interesses… mesmo assim ...por três vezes na minha vida eu senti algo me indicando o caminho certo a se fazer. Duas eu, na minha falta de experiência, acabei ignorando. Afinal, eu achava que minhas habilidades me davam o controle da minha vida… do meu destino! Hum... minha coroa de tolo brilhava mais do que nunca naquela época… e assim pagamos… eu e você… com nossas sentenças...

Paragor se entristeceu e baixou a cabeça de forma melancólica.

– Você não tem culpa de nada velho!!

Fala a mulher tentando consolá-lo.

– Isso eu não sei menina. – fala paragor levantando a cabeça – Mas não vou cometer o mesmo erro! Algo tenta me guiar e só sinto paz quando resolvo seguir isso.  Então não vou mais achar que tenho total controle sobre minha vida. Eu sempre tentei pegar todo o peso do mundo que me era dado e parece que isso me fez mais tranquilo do que antigamente. Tranquilo o suficiente para se deixar ser guiado por algo que não consigo deixar de sentir que é certo...

Paragor para de falar e olha diretamente para a mulher, esperando que ela entendesse sua decisão tão inusitada depois de toda essa história.

Então a mulher responde Paragor com uma feição mais amigável.

– Nunca iria imaginar que você era religioso… mas eu não sei se você está conversando com as divindades ou com os cavalos quando bebe! Mas eu confio em você, velho! Amanhã vamos ver o que esse cachorro tem a nos oferecer na prática.

– Obrigado por confiar em mim menina… então vá preparar suas coisas e vá dormir....Uma viagem dura do começo ao fim te espera menina.

– Se não for desse jeito eu nem vou – respondeu a mulher com um sorriso no rosto.

– Eu vou no bar tirar mais uma ajuda de custo daqueles guardas bastardos… Ha!Ha!Ha! Mas antes vou ver alguém pra tratar do seu novo amigo.

Paragor então pede para um dos moradores daquele lugar decadente ajudar o homem-cão em sua recuperação, e logo vai para fora da casa. Já a mulher cega foi para seu quarto se preparar e descansar, já que no dia seguinte começaria a sua busca pelo seu destino ao lado de uma criatura completamente desconhecida. 

A mulher cega não temia a morte nem tinha receio de ser deixada pelo caminho, mas se incomodava por existir a possibilidade de seu destino ser atrasado por mais algum tempo. Mesmo assim ela sentia que não havia motivo para duvidar de Paragor, já que, em momentos de dificuldade, o velho anão sempre se sobressaia com ações inteligentes e também inusitadas, e dessa vez não seria diferente.



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