Volume 1 – Arco 1
Capítulo 15: O Colecionador de Verdades - Parte 1
O tempo havia passado como planejado. As aulas aconteciam normalmente, os corredores seguiam cheios de vozes e passos apressados, e os professores mantinham o ritmo. Icegren continuava vencendo todas as batalhas nos treinamentos, com golpes precisos e uma frieza que intimidava até os mais confiantes. Ninguém conseguia enfrentá-la de igual para igual.
Ahelys, por sua vez, chorava todos os dias no banheiro. A rejeição de Quinn havia quebrado algo dentro dela. Ele não a odiava — ela sabia disso — mas o estresse que ele enfrentava o fazia se afastar de tudo, inclusive dela. E por mais que tentasse entender, a dor da distância era insuportável. Quinn, por sua vez, precisava constantemente de Tiruli e Makkolb ao seu lado. Só eles conseguiam acalmá-lo quando os surtos vinham. Era como se ele estivesse sempre à beira de um colapso. E, no fundo, todos sabiam que aquilo era apenas o começo do que ainda viria.
Enquanto isso, Gumer ficava cada vez mais estranho em sua própria casa. Os pesadelos o atormentavam noite após noite. Ele acordava suando, tremendo, com o rosto pálido e os olhos arregalados, como se tivesse visto um monstro real em seu quarto. Já não falava muito e evitava contato com qualquer um.
E Misha tentava viver sua rotina como se estivesse desligada do mundo, tentando se conectar consigo mesma. Mas que só havia um estresse crescente em seu comportamento. Ela alisava os cabelos com mais frequência, usava a chapinha quase todos os dias, e pintava as unhas com cores intensas, como se tentasse controlar algo que fugia ao seu alcance. Os estudos ficaram em segundo plano; ela quase não prestava atenção nas aulas, imersa em seus pensamentos. A briga com Quinn havia deixado uma ansiedade constante que ela tentava esconder, mas que transparecia em seus gestos e no olhar inquieto. Por dentro, Misha lutava com sua própria tempestade, enquanto no internato tudo parecia seguir seu curso natural.
1 de abril de 2019 - Segunda-Feira
No campo de treinamento, nos fundos da escola, Tiruli praticava sozinho, longe do olhar dos outros. O local, amplo, parecia existir apenas para ele naquele momento. As enormes arquibancadas ao redor do campo estavam vazias, ecoando um silêncio que era interrompido apenas pelo som das pedras que ele manipulava.
Com movimentos ágeis e precisos das mãos, ele fazia as rochas ao seu redor flutuarem, girarem no ar e dispararem contra alvos invisíveis de sua imaginação. Sem precisar de gestos exagerados ou mãos iluminadas, as pedras ao seu redor flutuavam no ar, obedecendo à sua vontade com precisão. Cada movimento parecia uma dança cuidadosamente ensaiada, um misto de força bruta e magia. Seu controle era quase perfeito: as pedras maiores seguiam suas ordens como se fossem extensões de seus braços, enquanto as menores giravam rapidamente em torno dele, formando um escudo.
Ele socava uma grande rocha que flutuava à sua frente, despedaçando-a em fragmentos com o impacto. Os estilhaços se espalhavam pelo campo, mas, com um simples gesto, Tiruli os fazia se agrupar novamente, formando uma nova pedra. Seus olhos estavam completamente brancos, tomados pela energia do poder em uso, enquanto ele continuava o treinamento com foco absoluto. O suor escorria pelo rosto, mas nenhum sinal de cansaço transparecia em sua expressão.
Ele saltava no ar, girava o corpo e, antes de pousar, lançava uma chuva de pedras contra o "alvos", cada uma atingindo o ponto exato que ele visualizava. A combinação de sua agilidade física e controle mágico criava um espetáculo que ninguém presenciava.
A brisa passava por ele, refrescando seu rosto enquanto ele tomava um breve momento para respirar. O silêncio era reconfortante, quase como se o ginásia inteiro estivesse ali apenas para incentivá-lo. Ele olhou ao redor, observando as marcas que seu treinamento havia deixado no chão e nas rochas, e sorriu, satisfeito com o progresso. Contudo, no fundo de seus pensamentos, ele sabia que ainda tinha muito a melhorar.
Com as mãos apertando o ar como se segurassem algo invisível, ele começou de novo, disposto a se superar. Para Tiruli, cada treino era mais do que um simples exercício; era uma forma de se preparar para os desafios que o ano letivo trazia.
Minutos depois. Após o treino exaustivo, Tiruli caminhou até o lavatório, com o corpo ainda quente do esforço e os músculos tensos. Ele apreciava o momento tranquilo de banhar à tarde, quando o lugar ficava praticamente vazio e ele podia relaxar sem interrupções. A água morna deslizava sobre sua pele, levando consigo o suor e a poeira acumulados do campo de treinamento.
No silêncio do lavatório, o único som que ecoava era o da água caindo e respingando no chão. Tiruli gostava daquele ambiente de calmaria, longe dos olhares e dos comentários dos outros. Ele preferia esses momentos de solidão, especialmente por não precisar lidar com Quinn e Makkolb, que frequentemente o pressionavam demais. Apesar de ser "valorizado" no grupo dos Caçadores, ele carregava o peso de estar associado a uma equipe malvista por boa parte da escola. Ser parte dos Caçadores significava ter que provar constantemente o próprio valor, e, para Tiruli, isso era exaustivo.
Terminando o banho, ele desligou o chuveiro e se secou rapidamente. Tiruli caminhou até o espelho, passando a toalha pelos cabelos úmidos e ajeitando o uniforme que vestia em seguida. Ele parecia mais leve, como se o banho tivesse lavado não apenas a sujeira do treino, mas também parte das tensões do dia.
Quando deixou o lavatório, ele seguiu direto para o quarto. O ambiente estava exatamente como ele havia deixado: organizado, simples e funcional. Tiruli colocou o saco de treino no canto do cômodo e ajeitou os cadernos na mochila. O quarto naquele horário era o único espaço onde ele se sentia verdadeiramente confortável, longe dos olhares críticos dos colegas ou das expectativas de Quinn.
Antes de sair para as próximas aulas, ele parou junto à janela entre as beliches. O sol começava a se inclinar no horizonte, tingindo o enorme campo de treinamento com tons dourados e projetando sombras longas. Tiruli respirou fundo, ajustou a alça da mochila sobre os ombros e saiu do quarto com passos firmes. Apesar das dificuldades que enfrentava, ele estava determinado a continuar. O campo de treinamento podia fortalecê-lo fisicamente, mas era nos corredores da escola e nas relações com os colegas que o verdadeiro desafio se apresentava.
Nas aulas, Tiruli era um exemplo de dedicação e inteligência. Mesmo sentado no fundo da sala, ao lado de Quinn e Makkolb — que mal prestavam atenção — ele mantinha o foco. A postura era firme, os olhos fixos no professor, como se conseguisse isolar o barulho ao redor. Mergulhava nas lições com uma concentração que destoava completamente do ambiente caótico ao seu lado. Cada palavra dita, cada conceito novo, era absorvido com entusiasmo. Estudar lhe dava propósito. Não apenas pelas boas notas ou pelos elogios dos professores, mas porque ali, naquele espaço onde o conhecimento era o foco, ele podia sonhar. Sonhar com um futuro onde seria um grande herói, reverenciado por suas habilidades, ou talvez um escritor famoso, cujas histórias inspirariam gerações.
A realidade fora das aulas, porém, era menos brilhante. Tiruli carregava um fardo invisível que poucos perceberiam ao observar sua concentração e dedicação. Para ele, as horas de estudo eram também um refúgio. Um momento em que poderia esquecer, ainda que por pouco tempo, os dilemas internos que o assombravam.
Após as aulas, ele sempre ligava para seus pais. O som da voz deles era como um abraço caloroso à distância. Tiruli tinha uma família que muitos invejariam. Seus pais eram amorosos e o apoiavam em tudo, desde seus sonhos mais grandiosos até sua identidade como um jovem pansexual. Eles nunca o julgaram, nunca hesitaram em mostrar que estavam ao seu lado, e Tiruli era profundamente grato por isso.
Ao telefone do celular, a voz de sua mãe era sempre doce e cheia de carinho. Ela perguntava como ele estava, se precisava de algo, e sempre terminava a conversa com um "estamos orgulhosos de você". O pai, mais reservado, ainda assim fazia questão de dizer que o amava e que acreditava nele. Esses momentos eram o combustível emocional de Tiruli. Porém, enquanto desligava a ligação, a realidade da escola voltava a assombrá-lo.
Na escola, tudo era diferente. Quinn e Makkolb, eram conhecidos por seu preconceito e intolerância. Tiruli sabia que, se revelasse sua orientação, se mostrasse qualquer vulnerabilidade, seria alvo de zombarias e desprezo. Por isso, ele escondia quem realmente era. Criou uma máscara que usava todos os dias, uma postura masculina e heterossexual que o protegia, mas que o consumia por dentro. A cada risada que forçava, a cada comentário que engolia, Tiruli sentia o peso do mundo sobre seus ombros.
Mas havia uma dor ainda mais profunda que o atormentava: a perda de Selis. Um ano havia se passado, mas para Tiruli, parecia que foi ontem. Selis não era apenas um ex namorado; ele foi o amor de sua vida. Alguém com quem Tiruli havia sonhado um futuro. Ele se lembrava das noites em que os dois ficavam acordados, planejando histórias juntos. Imaginavam viagens, aventuras, um lar onde poderiam ser felizes e livres.
Tudo isso foi destruído quando os pais de Selis descobriram sobre o relacionamento. Conservadores e preconceituosos, eles proibiram Selis de continuar com Tiruli. E Selis, embora relutante, cedeu à pressão. Tiruli nunca se esqueceu da última ligação que tiveram no ano passado. A voz de Selis, cheia de lágrimas contidas, ainda ecoava em sua mente.
13 de janeiro de 2018 - Sábado
— Me desculpa, Tiruli... Eu não tenho escolha. Eles disseram que vão me tirar de casa se eu falar com você de novo.
— E quanto a mim? — Tiruli havia perguntado, a voz trêmula, quase inaudível. — Eu sou sua família também, Selis. Você prometeu.
Houve um silêncio pesado, apenas o som abafado da respiração de Selis preenchendo o vazio. Quando ele finalmente respondeu, sua voz soou firme, mas quebradiça nas bordas.
— Eu sei... Mas eles vão ficar chateados. Eu... eu não quero perder eles. Não posso abandonar tudo. É minha família.
Tiruli fechou os olhos, segurando as lágrimas que já ameaçavam escapar. Ele queria gritar, queria dizer que Selis estava errado, mas sabia que não podia forçá-lo a nada.
— Mas... Selis, eles não te aceitam como você é. Eles estão te machucando, mesmo que não percebam — a voz de Tiruli falhou, um nó se formando em sua garganta.
— Eu sei — Selis respondeu. — Mas, no futuro... talvez as coisas mudem. Talvez a gente possa ser amigos de novo, quem sabe? Só que agora... não dá, Tiruli.
— Amigos? — Tiruli repetiu, a palavra parecendo um golpe. Ele respirou fundo, tentando soar forte. — E nós? Tudo que a gente planejou juntos... isso não significa mais nada?
— Significa, Tiruli — Selis disse rapidamente. — Mas minha família significa muito mais.
Tiruli mordeu o lábio, tentando conter o soluço que escapava.
O som do telefone desligando ecoou na mente de Tiruli. Ele tentou ligar de volta, mas a mensagem de número bloqueado apareceu na tela. Ele ficou ali, segurando o aparelho como se pudesse trazer Selis de volta apenas com a força de sua vontade.
Naquele momento, Tiruli percebeu que não havia nada que pudesse fazer. Selis havia escolhido sua família, e ele... ele havia ficado para trás, sozinho com as palavras que nunca teve a chance de dizer: "Eu te amo, Selis."
Desde então, Tiruli vivia com aquele vazio. Ele não conseguia apagar a dor. Ele tentava ser forte, tentava seguir em frente, mas a cada vez que via um casal andando de mãos dadas ou ria com seus amigos, sentia como se uma parte dele estivesse ausente.
De vez em quando, Tiruli ainda tentava falar com Selis, apesar de saber, no fundo, que era em vão. Ele digitava o número de Selis no celular com as mãos trêmulas, hesitantes, como se ao tocar as teclas ele pudesse, de algum jeito, reverter o tempo. Mas sempre que pressionava o botão de chamada, uma mensagem de erro aparecia: "Número indisponível." O número nunca havia sido desbloqueado. Selis havia se afastado completamente, como se Tiruli fosse um capítulo de sua vida que ele precisou fechar para sempre.
A cada tentativa frustrada, o coração de Tiruli afundava um pouco mais. Ele sabia que era inútil, que não havia mais espaço para ele na vida de Selis, mas ainda assim, não conseguia se livrar dessa necessidade de tentar. Ele se perguntava, em silêncio, se Selis alguma vez sentia o mesmo vazio. Se ele, ao menos por um momento, pensava nele. Mas essas perguntas nunca receberam resposta.
Quando o desespero tomava conta, ele recuava para a galeria de fotos do seu celular. Lá, ele guardava as poucas imagens que Selis havia lhe mandado antes do fim. Eram fotos simples: Selis sorrindo timidamente em uma rua qualquer, o rosto iluminado pela luz dourada do entardecer. Tiruli sempre olhava essas fotos com um misto de carinho e dor, como se, ao ver as imagens, ele pudesse reviver aqueles momentos. Mas logo depois, o peso da realidade caía sobre ele novamente, e a saudade se tornava ainda mais insuportável.
Era uma dor silenciosa, que Tiruli tentava esconder do mundo. Ele sorria quando necessário, fingia que estava bem, mas o peso da solidão o acompanhava a cada passo. Ele sabia que não poderia voltar no tempo, que não poderia desfazer o que havia acontecido, mas, mesmo assim, o coração de Tiruli nunca parou de se afligir pela ausência de Selis. E, por mais que tentasse seguir em frente, ele sabia que, em algum lugar dentro dele, Selis sempre teria um lugar guardado.
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