Volume 1 – Arco 1

Capítulo 29: No Coração da Maldição - Parte 6

Quinn engoliu em seco. Misha franziu o rosto, já sabendo que tinha passado do ponto.

Veyron tinha girado o corpo e corrido.

Correu com tudo o que tinha. Os pés descalços, a pele nua e suja de terra e brilho. O peito arfando. O chão machucando os calcanhares. Mas ele não ligava. Ele não queria morrer. Ele só tinha 17 anos. Era um babaca, um machista de merda, um imaturo... mas ainda queria viver. Ainda tinha festas pra ir, garotas pra impressionar, piadas idiotas pra contar.

— MERDA! — gritou Misha, girando no ar como uma tempestade de frustração. — Eu falei demais! Falei merda! Daquelas bem merdas!

— Falou mesmo... — respondeu Quinn, já com as mãos no rosto, arrastando a voz como quem aceita o desastre. — Uma merda completa, redonda e fedida. 

— Ah, então a culpa é minha agora? — Misha disparou, pairando no ar com os braços abertos. — Sou eu que transei com o Veyron, sou eu que finjo que sou hétero, sou eu que estraguei tudo? Diz aí, Quinn, vai jogar tudo nas minhas costas agora? Porque até onde eu lembro, quem ficou hipnotizado olhando pro pau do Veyron foi você! E aí, pronto: virou plano, virou clima, virou fanfic erótica gay de quinta categoria!

— Você entregou tudo! — Quinn explodiu, apontando o dedo como se fosse uma lança. — Nem precisa de interrogatório quando tem a Misha "língua de esgoto"! Eu estava quieto, só suando em pânico! Quem transformou o plano em podcast de fofoca foi você! A merda das merdas saiu da sua boca, não da minha!

— Cala a boca, seu idiota!

— Cala a boca você, sua louca!

— ELE VAI FUGIR, SEU BURRO!

— ENTÃO VAMO ATRÁS DELE, SUA DESGRAÇADA!

Quinn correu até o carro, quase escorregando na poeira, mas não parou. Enfiou a chave na ignição, girou com força, e o motor rugiu como um animal faminto.

O corpo de Misha começou a brilhar em amarelo, uma aura vibrante de pura magia se formando ao redor como eletricidade viva. Os olhos dela brilharam como duas lanternas acesas de raiva e adrenalina.

— Eu vou por cima! — gritou ela.

E lá foram eles.

Atrás de um garoto pelado, coberto de glitter e terror, que só queria viver mais um pouco.


Depois de tudo, sob o teto silencioso da mansão da família de Trrira, os cinco jovens se ergueram aos poucos, como se seus corpos voltassem de um estado entre o sono profundo e um transe. Seus olhos piscavam devagar, retomando a consciência como quem emerge debaixo d'água. O quarto, antes dominado por um caos invisível, estava calmo outra vez. Ártemis, de olhos atentos e respiração controlada, ergueu as mãos com suavidade — o vento soprou de forma precisa, envolvendo os objetos amaldiçoados e empurrando-os de volta para dentro da caixa de vidro. Era a única forma de manuseá-los sem tocar diretamente neles. Ela prendeu a tampa com firmeza, o suor escorrendo discretamente pelo pescoço. Aquela maldição exigia demais.

Trrira observava a movimentação em silêncio. Por dentro, sentia um alívio imenso — tudo havia terminado, pelo menos por agora. Mas em seu rosto, não havia espaço para angústia — não porque fosse inabalável, mas porque não queria preocupar ninguém. 

Glomme, que ainda estalava os dedos como se espantasse o torpor dos ossos, estreitou os olhos. Havia entendido algo durante o transe — todas aquelas visões, aquelas distorções do tempo e da memória... elas se repetiam entre eles. Com algumas variações, sim, mas estavam ligadas. Havia um padrão. E ele prometeu a si mesmo que descobriria o motivo.

Enquanto o grupo saía do quarto e descia a escadaria da mansão em direção à saída, com os pés ecoando nos degraus de mármore, Vanpriks desviou do caminho.

— Onde fica o banheiro? — perguntou ela, com a mesma entonação entediada de quem pergunta a hora.

— Eu te levo — respondeu Trrira, girando sobre os calcanhares com a elegância de quem sabe que está sendo avaliada a cada passo.

Enquanto os outros desciam pelas escadas até a saída da casa, Vanpriks e Trrira seguiram sozinhas por um corredor lateral, largo e gelado. Vanpriks caminhava na frente com uma calma estranha, os olhos semicerrados, o rosto neutro. Já sabia o que vinha. Trrira, logo atrás, tinha os ombros duros e os lábios trincados. O silêncio entre elas parecia ferver.

— Vanpriks — disse Trrira, parando de andar. — Para! — disse Trrira, a voz mais firme do que se sentia, mesmo que o coração batesse no ritmo de um tambor em guerra, batendo contra as costelas.

Vanpriks não obedeceu. Continuou andando como se nada tivesse sido dito. Seus passos ecoavam secos. Trrira deu um passo à frente, sem hesitar dessa vez.

— É por causa do jarro, né? — soltou, firme. — Você só entrou no grupo por isso, né? Fingiu ser do grupo, lutou com eles, comeu com eles. Mas o plano sempre foi esse. Você não passa de uma traidora suja e fria. Se o jarro estivesse na caixa, você teria roubado e fugido sem olhar pra trás, como o monstro que você claramente é.

Então Vanpriks parou. Não virou, não respondeu. Apenas congelou no meio do corredor. Trrira sentiu um calafrio escorrer pelas costas. Foi um parar sem hesitação, sem dúvida, como quem já sabia que aquele era o momento exato em que tudo mudaria.

— Eu vou contar pros outros — continuou Trrira, com a voz subindo um pouco. — Eles precisam saber quem você realmente é. Eles merecem saber que confiaram numa sangue frio, numa criatura que só pensava em si mesma o tempo inteiro.

Num instante rápido demais para que os olhos de Trrira acompanhassem, Vanpriks virou-se. Não foi um giro humano. Foi como se ela tivesse se teleportado, como se os olhos da outra piscaram e ela já estivesse ali, de frente, a poucos metros de distância. Rígida. Os olhos fixos nos de Trrira, frios como pedra molhada. A luz artificial tremeluzia sobre seu rosto branco. O corredor parecia mais estreito de repente.

— Conta. Vai — disse Vanpriks, o tom calmo, mas cada palavra soava como lâmina fina entrando na pele. — Vê se eu me importo. Acha que dou a mínima pra esse grupo de idiotas? Bambis? São um rebanho de bichos cegos esperando o abate.

Vanpriks começou a se aproximar. Cada passo dela parecia tornar o ar mais denso. A eletricidade nas lâmpadas piscava com mais frequência, como se a presença dela afetasse até a estrutura do lugar. Trrira deu um passo para trás, sentindo os músculos tensos e o estômago revirar, mas manteve os pés no chão, ainda que por pura força de vontade.

— O jarro está nessa casa, não é? — Vanpriks disse, a voz suave, mas carregada de uma ameaça mortal. — Sei que você o escondeu em algum lugar. Sei que você é o alvo aqui. Você sabe exatamente onde ele está. Eu vou pegar aquele jarro, nem que eu tenha que destruir cada canto dessa casa. Você não vai escapar, se o que eu procuro estiver mesmo dentro daquele jarro... É meu, não importa o preço que eu tenha que pagar.

Os olhos de Vanpriks começaram a escurecer, uma escuridão profunda que parecia engolir tudo ao redor. No centro de cada olho, emanava uma pequena luz vermelha intensa, como brasas ardendo no fundo de poços sombrios. Sua expressão se intensificou, os dentes começando a ranger suavemente. Sua boca ficou entreaberta, o suficiente para revelar suas presas de vampira — afiadas e ameaçadoras, como se estivessem prontas para dilacerar. Os dentes estremecendo, quase como se quisesse morder ou chupar o sangue de alguém. Seus olhos estavam concentrados, fixos em Trrira, e a tensão era palpável, como se ela fosse babar a qualquer momento. 

— Me entrega o jarro. Agora. Ou eu vou arrancar de você — a voz de Vanpriks saiu como uma lâmina, fria e afiada.

Trrira engoliu seco. Sua garganta queimava. Mas não podia recuar. Não podia mostrar fraqueza, mesmo quando sentia o suor frio descendo pelas costas.

— N-não — respondeu, tentando soar firme, mas a voz falhou no começo. — Pode me ameaçar o quanto quiser. Eu não tenho medo de você.

Vanpriks deu um riso seco, sem humor algum — um som áspero, cortante, que dilacerava o silêncio mais do que o preenchia. Em seguida, inclinou levemente a cabeça, como quem observa uma criatura pequena tentando parecer perigosa, quase com desprezo. Seus pés se ergueram do chão, e ela começou a flutuar lentamente na direção de Trrira, se aproximando com uma calma ameaçadora. Parou tão perto que conseguia sentir o medo dela pulsando no ar, vibrando como uma onda invisível. A própria aura de Vanpriks parecia absorver aquele medo, saboreando-o, como se aquilo a alimentasse.

— Quer saber a diferença entre você e eu? — sussurrou ela, com crueldade escorrendo de cada sílaba. — Eu já matei por bem menos. E se você acha que vou hesitar por você, por esse seu teatrinho de valentia... se engana. Eu vou arrancar esse jarro das suas mãos, mesmo que tenha que arrancar você junto.

Trrira respirou fundo, o ar entrando com dificuldade enquanto tentava manter o controle. Suas mãos tremiam levemente, e ela deu um passo para trás, como se cada centímetro de distância fosse vital. Seus olhos varriam o ambiente em busca de algo — qualquer coisa — a que pudesse se segurar, como se um ponto de apoio físico pudesse conter o turbilhão dentro dela. O peito subia e descia rápido, o coração disparado batendo contra suas costelas como um tambor de alerta. Ainda assim, ela tentou se firmar, lutando para não deixar o medo tomar conta por completo.

— Dá mais um passo e eu juro que acabo com você — rosnou Trrira, escorando os pés no piso polido. — Vai ter que me derrubar, Vanpriks. E eu prometo que vou te machucar no processo.

Vanpriks flutuou mais à frente, como se a qualquer momento fosse atravessar Trrira. 

— Você mal sobreviveu ao Gumer. Lembra disso? Aquele brutamonte que te enforcou com tanta força até quase explodir tua cabeça como uma fruta podre?

Ela se inclinou levemente, os olhos flamejando com desprezo.

— E agora tá aqui, tentando peitar a mim? — continuou a vampira. — Se ele quase te matou, imagina o que eu faria sem nem tirar a jaqueta. Eu posso quebrar você em trinta segundos e ainda sair sem um arranhão. Não é uma ameaça, amiga. É só estatística.

Trrira não respondeu. Só manteve o queixo erguido, tentando disfarçar o pânico que se infiltrava sob a pele.

— Continua com esse jarro, Trrira — cuspiu Vanpriks, se aproximando só o bastante pra que Trrira sentisse o cheiro metálico do sangue seco em sua respiração. — Mas você vai se arrepender, garota. Esconda-se. Esconda tudo o que você ama — sua família, suas memórias. Porque eu vou entrar. E quando eu vier buscar o que é meu, vou deixar um rastro que nem magia vai apagar.

Ela passou ao lado de Trrira, deixando-a para trás, os cabelos ondulando com o movimento elegante de quem nunca, jamais, teve medo de nada.

— Você não me deve respeito. Mas vai aprender a me temer.

Trrira ouviu a voz dela pelas costas, e um arrepio percorreu todo o seu corpo, fazendo sua nuca estremecer como se um fio de eletricidade tivesse passado por ali. A tensão a paralisou, e ela ficou ali, imóvel, por alguns segundos, como se seu corpo se recusasse a reagir. O ar parecia ter ficado mais pesado, e o som dos passos suaves ecoou logo depois. Vanpriks descia as escadas com uma calma quase cruel, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse acabado de envenenar o ambiente com sua presença.


Nas terras abandonadas, Quinn e Misha se viraram, frustrados. Não encontraram Veyron. Ele havia se perdido pelas florestas, desaparecendo entre as árvores com uma agilidade impressionante. O som dos galhos quebrando sob os pés de Veyron, um lembrete perturbador da velocidade do fugitivo, tão rápido quanto uma sombra, fugindo como um veado tentando escapar de uma bala. O rastro de Veyron era impossível de seguir, a floresta engolia qualquer vestígio, como se a própria terra o estivesse ocultando. Eles sabiam que não valia a pena continuar a busca naquele momento. Porém, algo ainda os mantinha seguros: eles sabiam exatamente para onde ele iria. Para a casa dele, que ficava ao lado da de Quinn. Misha, sem pressa, desceu do céu e entrou no carro de Quinn, a expressão dela fria, mas com uma leve certeza. Sem palavras, eles seguiram para a cidade, como cidadãos normais, misturando-se ao cotidiano enquanto a tensão da busca se dissipava no ar, mas o destino de Veyron ainda os observava de perto, silencioso.

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