Volume 1 – Arco 1

Capítulo 30: No Coração da Maldição - Parte 7

Voltando à casa de Trrira, a tarde ainda tingia as janelas com uma luz dourada e artificial que escorria pelas cortinas pesadas. A enorme porta da frente permanecia aberta, revelando a despedida lenta e silenciosa dos que ali estiveram reunidos. Risos baixos e abraços desconfortáveis se espalhavam entre os amigos. Vanpriks, com seu sorriso ensaiado e postura ereta demais para alguém genuinamente tocado, apenas acenou de longe, mantendo a falsa simpatia com um gesto breve, como quem já tinha apagado a memória de todos ao redor.

Tiruli foi o último a se afastar de Trrira, parando próximo ao batente da porta, hesitando por um instante, como se ainda houvesse algo não dito.

— Trrira — disse ele, franzindo o cenho enquanto olhava nos olhos dela com firmeza, o tom baixo mas cheio de urgência. — Se você puder, tenta passar no Distrito Rei esta semana. É um pouco longe, eu sei, mas você é a única esperança que temos. As bibliotecas de lá guardam coleções esquecidas, e talvez alguma delas fale sobre a Lua de Sangue ou dos símbolos que vimos.

— Eu vou dar um jeito, sim — respondeu Trrira, sem desviar o olhar e com a mão ainda na maçaneta, seu tom carregado de uma firmeza que escondia o cansaço. — Obrigada por lembrar, Tiruli. Se eu achar algo, aviso você e os outros imediatamente, mesmo que meus pais me fechem dentro de casa até o fim do ano.

A porta finalmente se fechou com um estalo abafado, e Trrira se virou devagar, encontrando os pais parados à sua frente no meio da sala, braços cruzados, semblantes tensos e olhos que julgavam sem dizer uma palavra. A conversa que teriam estava escrita em suas expressões: longa, pesada e sem escapatória. Ela engoliu em seco, mas não desviou o olhar.

Enquanto isso, do lado de fora, os outros caminhavam lentamente pelo enorme condomínio de luxo. Os corredores externos eram impecáveis, adornados por árvores cuidadas por magia e paredes cobertas por runas de proteção. Glomme andava ao lado de Ártemis, desviando os olhos de tudo enquanto reunia coragem para falar.

— Ártemis, amanhã você pode vir comigo ver a Firefy? — disse ele de forma rápida e trêmula, arrumando o cabelo com nervosismo. — Ela foi conversar com o Gumer na clínica hoje, e eu não quero ir sozinho... eu sei que talvez você tenha algo mais importante, mas seria rápido, prometo.

— Posso ir sim — respondeu ela, com um sorriso discreto e a voz serena, cruzando os braços como quem escondia a própria ansiedade. — Eu também quero saber como o Gumer está. Não tem como fingir que tá tudo bem enquanto ele não melhorar de verdade, e ver a Firefy vai ajudar.

Continuaram andando lado a lado até alcançarem o portão principal do condomínio, onde as luzes mágicas flutuavam como vaga-lumes silenciosos. Vanpriks, mantendo a postura fria, se despediu sem calor e seguiu sozinha pelo caminho do parque a frente ao condomínio, desaparecendo entre as árvores altas. Ártemis deu um breve abraço em Tiruli, depois em Glomme, e também partiu, deixando os dois sozinhos diante do portão, sob a brisa que começava a soprar mais gelada.

Tiruli e Glomme estavam um do lado do outro, tão imóveis quanto as estátuas encantadas próximas à entrada. Queriam falar, mas pareciam presos a um silêncio desconfortável que doía mais do que qualquer batalha. Seus olhos fugiam um do outro, mergulhando no chão, e seus dedos se mexiam inquietos, traçando gestos invisíveis como se procurassem uma desculpa para quebrar o gelo. Até que Tiruli respirou fundo e tomou a dianteira.

— Você vai precisar de ajuda com as visões? — disse ele num fôlego só, mordendo o lábio ao final e chutando uma pedrinha com a ponta da bota. — Eu sei que às vezes você prefere ficar sozinho pra isso, mas talvez, sei lá, talvez ajude ter alguém do lado só pra garantir que você não se perca de novo.

Glomme gaguejou ao responder, como se as palavras lhe fugissem pela garganta antes de alcançar a boca.

— N-não... não precisa, eu consigo — disse ele, mas logo balançou a cabeça, como quem se corrigia pela verdade que não queria esconder. — Quer dizer... sim. Na verdade, sim. Eu precisaria sim. Se você puder, claro. Quer ir lá em casa agora pra começarmos isso? Só se não tiver compromisso ou estiver cansado, pode falar — ele falou tudo sem conseguir encarar Tiruli uma única vez, os olhos sempre procurando qualquer canto da paisagem, como se olhar nos olhos dele fosse difícil demais.

Tiruli sorriu de leve, com um brilho inesperado nos olhos e os ombros finalmente relaxando.

— Eu posso... quer dizer, eu realmente quero ir, sim — Tiruli começou, desviando o olhar e mexendo as mãos, a voz vacilante mas com um brilho tímido nos olhos. — Só que... será que eu posso dormir lá? Pra não ter que voltar tarde e tal... Eu não quero ser um incômodo pra você, nem pros seus pais, nem atrapalhar alguma coisa importante que você tenha que fazer... Se for complicado, tudo bem, eu entendo...

Glomme travou por um instante, surpreso pela ideia, mas logo assentiu com sinceridade.

— Pode sim. Dorme lá, sem problema — disse ele, tentando soar seguro, mas a voz saiu meio trêmula. — Você pode dormir na cama, eu fico no chão ou na poltrona. Ou, a gente divide a cama, assim... se for melhor pra você. Ehh... não é bem isso que eu quis dizer, é só que... enfim, a cama é sua, eu me viro. É só que... ah, você decide.

Ele deu uma risadinha seca meio nervoso, desviando o olhar, claramente meio arrependido do que falou.

Tiruli piscou, surpreso com o que Glomme acabara de dizer. Ficou confuso por um instante, percebendo o quanto ele estava nervoso, tropeçando nas palavras sem querer.

— A gente decide isso no caminho, então — respondeu Tiruli com um sorriso meio tímido. — E, olha, não vejo problema nenhum em dividir a cama, viu? 

Os dois sorriram um para o outro pela primeira vez desde que saíram da casa de Trrira, e havia algo novo no ar — uma sensação delicada, quase invisível, mas cheia de força, como uma semente prestes a germinar entre sombras e raios de sol da tarde. Então, juntos, deram o primeiro passo rumo ao que ainda estava por vir naquele dia.


No mesmo momento a tensão fervia na mansão da família de Icegren, onde a luz dourada do entardecer atravessava janelas enormes e reluzia sobre colunas de ônix polido. Icegren estava com os braços cruzados, os olhos faiscando, e os cabelos trançados vibrando magicamente com sua respiração pesada. Caminhava de um lado para o outro diante dos pais, como uma fera contida prestes a explodir. Sua presença preenchia o ambiente como se fosse impossível ignorá-la — e era.

— Vocês têm que aceitar esse acordo agora mesmo — disse Icegren, erguendo o queixo e apontando para o tablet com o documento da proposta flutuando em holograma. — É um plano estratégico entre todas as maiores joalherias de Hiden, uma fusão histórica que vai mudar o mercado, e eu preciso estar nisso, eu quero ser o rosto da nova potência que vai engolir todas as outras.

A mãe, elegante como sempre e ainda assim claramente abalada com o tom da filha, cruzou os braços e encarou Icegren como quem tenta conter uma tempestade com uma taça de cristal.

— Icegren, você já tem tudo o que qualquer jovem poderia sonhar — disse ela, com o olhar enviesado e uma falsa doçura escorrendo entre as palavras. — Você vai herdar cem por cento do império da nossa família, não precisa se expor nesse jogo de cobras querendo morder o próprio rabo.

Icegren se aproximou até que seus olhos quase encostassem no olhar desconfortável da mãe. Seus olhos brilharam com uma fúria gelada que fazia jus ao nome que carregava. Ela respirou fundo, firmou os pés no chão e respondeu sem hesitar.

— Vocês estão confundindo "ter tudo" com "ser tudo" — disse ela, batendo o dedo no próprio peito com força. — Eu não nasci para seguir passos, eu nasci para abrir caminhos onde nunca deixaram ninguém como eu passar, e eu vou provar que sou poderosa o bastante pra estar entre esses homens brancos que acham que mandam no mundo.

O pai tentou interromper, levantando a mão com a autoridade que sempre usara para cortar qualquer crise.

— Você ainda é jovem demais para lidar com esse tipo de politicagem, Icegren — disse ele, ajeitando os botões da manga como se isso devolvesse algum controle. — Eles não vão te respeitar, vão te usar como peça de marketing, como símbolo, e depois te empurrar para fora sorrindo.

Ela girou nos calcanhares com brutalidade, como se a própria mansão tremesse ao seu redor, e estendeu a mão com os dedos rígidos, decidida.

— Então comprem agora mesmo sete por cento dessa fusão no meu nome — ordenou ela, e os olhos brilharam com uma luz mágica roxa e intensa. — Porque se vão ser dezoito representantes nessa brincadeira de titãs, então eu quero ser a maior entre eles, quero sentar no trono da mesa redonda, quero o topo, o domínio, o poder absoluto, e quero ser a razão pela qual todos os outros não dormem à noite.

O silêncio durou longos segundos. A mãe olhava para o chão, pensativa. O pai desviou o olhar para a janela, derrotado antes mesmo de lutar. Icegren ficou imóvel, com os olhos cravados neles, como uma monarca que já conquistou o reino antes da guerra começar.

— E mais uma coisa — completou ela, virando-se com um leve sorriso curvado que parecia arrancado de uma deusa vingativa. — Não vou aceitar ser apenas respeitada. Quero ser temida. Quero que, toda vez que falarem em liderança, alguém se lembre do meu rosto e engasgue antes de falar meu nome.

O pai bufou, derrotado, já pegando o comunicador arcano da família. O mãe abriu um novo documento holográfico com as ações disponíveis. Icegren respirou fundo, se aproximou da varanda de vidro e olhou para a cidade brilhante abaixo. O império dos outros estava apenas começando. O dela, estava prestes a engolir o mundo.


A estrada de pedras mágicas que levava à enorme casa de campo da família de Glomme parecia não terminar nunca, cercada por campos verdes que dançavam com o vento, árvores cuidadosamente enfileiradas, cercas encantadas e flores brilhantes revelavam uma dedicação que beirava o ritualístico. Tiruli observava tudo com olhos atentos, encantado com o tamanho da propriedade e com os detalhes encantadores das cercas mágicas que acompanhavam o terreno por quilômetros. Quando se aproximou da casa, Glomme respirou fundo, um pouco ansioso, mas mantendo a calma com uma leve rigidez nos ombros, determinada a passar uma boa impressão.

Assim que atravessaram a porta principal, Glomme estufou o peito com um sorriso ensaiado e falou com um brilho tímido nos olhos, apontando para Tiruli com a mão ainda suada de nervosismo.

— Mãe, pai, esse é o Tiruli — disse ele, tentando parecer natural enquanto engolia a ansiedade. —. Ele vai dormir aqui hoje porque vamos estudar juntos... quer dizer, teorizar e ver umas coisas sobre a escola... é, isso.

Os pais de Glomme, dois senhores sorridentes vestidos com roupas encantadas que trocavam de cor conforme o clima emocional da casa, foram rápidos como feitiços em direção a Tiruli. O jovem foi impecável em sua saudação, curvando-se levemente, apertando as mãos dos dois com educação encantadora e dizendo elogios sinceros sobre a casa e sobre como sempre ouvira que os campos da família de Glomme eram um verdadeiro espetáculo — e que agora via que era verdade.

— Que honra conhecer vocês — disse Tiruli com um tom elegante, deixando os pais de Glomme derretidos. — Seu filho é um dos colegas mais talentosos e inteligentes que eu já conheci, e prometo que hoje à noite nossa prioridade será o estudo. Ele decora tudo num piscar de olhos. Se eu não aprender com ele hoje, não aprendo nunca mais.

Os olhos dos pais de Glomme brilharam com alegria, e a mãe logo anunciou que o almoço seria preparado com urgência, enquanto o pai invocava ingredientes flutuantes e caldeirões dançantes, como parte do ritual sagrado de suas refeições em família. Glomme sorriu, um pouco vermelho, e cochichou para Tiruli que eles realmente levavam o almoço mais a sério do que a própria magia ancestral — mas aquilo era parte do encanto daquela casa.

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