Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Alma Esquecida

O quarto estava imaculado, mas o ambiente denso de tensão pairava no ar, um quarto pálido com apenas uma cama e uma mesa no canto. Firefy estava sentada ao lado de Gumer. Ele segurava as mãos dela com força, Firefy o observava de perto, com uma expressão tensa, sentindo o desespero dele respingar em sua própria alma. As palavras ditas por ele, densas e pesadas. Nada que ela fizesse parecia capaz de aliviar aquilo. Tentava se manter firme, buscava em seu olhar alguma forma de amparo, mas tudo que via era um vazio escuro e instável crescendo por trás dos olhos dele.

Ele não falava de doenças. Não era uma doença. Nunca tinha sido. Era outra coisa. Algo de fora. Algo que entrou nele e não saiu mais. Falava de algo que o atacava de dentro, todas as noites. Uma voz, constante e corrosiva, que vinha antes de o sono chegar. Um monstro, como ele dizia, que o devorava lentamente, em silêncio, deixando apenas a lembrança de sangue e ardor quando o dia nascia. E o mais assustador de tudo era que ele não sabia quem ou o que era aquilo.

Firefy apenas escutava. Às vezes piscava devagar, sentindo as palavras entrarem fundo demais. O peso de não poder ajudá-lo apertava seu peito. E, mesmo com o corpo dele aparentemente são, havia algo mais sombrio agora — uma ferida invisível, crescente, que nada parecia capaz de cicatrizar.

Firefy, sentindo o peso das palavras dele, ficou em silêncio por um momento, observando-o enquanto ele lutava para se manter forte, sua mente sendo dilacerada por aquilo que ele estava vivendo. Ela não sabia o que fazer, mas sabia que ele estava em um estado muito além de qualquer doença humana.

— Como é esse monstro, Gumer? 

Gumer tremeu. Encolhido, seus olhos fixos no teto como se algo horrível estivesse prestes a cair sobre ele. O suor escorria pelas têmporas. A voz saía em sussurros partidos — ele vinha todas as noites. Devorava tudo. O Sangue queimava seus pés. E ninguém via.

Firefy não soltava sua mão. Sentia o desespero dele pulsar como febre. Aquilo não era uma doença. Nunca foi. Algo mais profundo o arrastava para dentro, noite após noite.

Ele falou da garota. Invisível. Um vulto sem expressão que o vigiava, parasilada no mesmo lugar escuro e vasto. Ela bebia o Sangue. Recusava o monstro. E estava sendo devorada por dentro.

Então, com o olhar perdido e a voz mais baixa que um sopro, ele disse o nome: Satrak. A alma precisava ser destruída. Era a única chance.

Firefy ficou ali por um momento, muda, o coração preso entre medo e decisão. Apertou mais forte a mão dele. Se era isso que precisava ser feito, ela faria.

Por Gumer. Pela garota. Por tudo.

Eles se encararam por um longo momento, e então Firefy se inclinou para frente, envolvendo Gumer em um abraço apertado. O calor de sua presença parecia trazer um pouco de alívio para ele, e ele se deixou ser abraçado, chorando silenciosamente.

— Eu vou voltar para você, eu prometo... — disse ela, antes de afastar-se, sentindo uma mistura de tristeza e esperança. — Cuide de si, Gumer. E quando tudo isso acabar, eu vou estar aqui.

Ela se levantou, com os olhos ainda lacrimejando, mas com a certeza de que sua missão estava apenas começando. Gumer, olhando para ela, deu um sorriso fraco, mas sincero, antes de ela sair do quarto.

Firefy se despediu de Gumer e saiu da clínica, com a mente cheia de planos e uma única missão: acabar com Satrak e ajudar a garota invisível, qualquer que fosse o custo.


18 de março de 2019 - Segunda-feira

Glomme chegou atrasado no internato escolar e, no pátio externo, logo reparou Ártemis e Firefy reunidas em uma das mesas de piquenique. Ele se aproximou, se sentou com elas e percebeu que conversavam com seriedade.

Firefy esperava por ele, e logo interrompeu a conversa com um tom decidido, chamando a atenção de Glomme e Ártemis. Comentou que estava tentando entender melhor as visões de Gumer e que precisavam se concentrar em encontrar algo chamado "Alma de Satrak". Além disso, havia a questão de uma misteriosa "garota invisível", um fantasma que surgia repetidamente nos sonhos de Gumer e que ninguém parecia conhecer de verdade.

A conversa fluía sem pressa, saltando de assunto em assunto, quando Glomme, quase sem pensar, comentou sobre um incidente recente. Mencionou que, na semana passada, uma garota teve uma "convulsão" no quarto, tanto que as colegas de quarto dela pediram transferência. Além disso, outra aluna desapareceu dentro da escola sem deixar rastros, e, apesar das buscas, ninguém a encontrou até agora.

Ártemis franziu a testa, intrigada. Ela não se lembrava de ter ouvido nada sobre isso. — Quem eram essas garotas?

Glomme hesitou por um instante antes de dizer que achava que o nome delas era Marry e Zaelin—ou algo parecido. Não tinha certeza. Ele apenas tinha visto a notícia no jornal, sem muitos detalhes, ouvia comentários dispersos de outros alunos. 

Firefy, que até então ouvia a conversa distraidamente, ergueu as sobrancelhas ao reconhecer o nome. Marry… Esse nome não lhe era estranho. Tentando juntar as peças dentro da sua cabeça, tudo parecia confuso, fragmentado — como um quebra-cabeça sem imagem na caixa. O nome Marry despertava uma sensação vaga, como se tivesse cruzado com ela no ano passado, ou talvez fosse só alguém parecido, uma entre tantas garotas que ficaram invisíveis pela escola. Lembrava vagos rumores antigos, histórias sussurradas sobre uma menina humilhada no auditório, chorando sozinha em algum canto, sumindo por dias, semanas. Nada concreto, só sombras de memórias desconexas.

Ela se lembrava também daquele estranho comportamento atribuído a Marry: sempre observando, quieta, sem se envolver, como se estivesse esperando algo que ninguém via. Mas será que aquilo era verdade? Ou apenas paranoia? Ou apenas inventado por alguém que gostava de histórias?

Firefy queria acreditar que fazia sentido, que aquelas peças se encaixavam. Até que a lembrança de Gumer veio à tona — ele já tinha dito que sentia uma presença invisível o vigiando no quarto, uma sombra que nunca se mostrava. Na hora, ela não tinha ligado, mas agora parecia um detalhe que não podia ignorar.

E Glomme? Firefy lembrava das palavras vagas, quase sussurradas, de que depois daquele incidente ninguém mais parecia ver Marry pelos corredores da escola. Mas será que ela realmente desapareceu? Ou apenas se escondeu, como tantos outros?

Tudo parecia se dissolver em dúvidas, em incertezas, e Firefy ficava presa nesse turbilhão de pensamentos, sem saber se aquilo era real ou só fruto da sua mente cansada, uma alucinação em meio ao caos.

Então, como quem tem uma ideia no meio de um pensamento qualquer, Firefy sugeriu que talvez Ártemis pudesse falar com ela. Afinal, se havia algo para ser descoberto, era melhor que viesse de alguém que soubesse como se aproximar sem assustá-la ainda mais.

Ártemis fez uma careta e recusou de imediato.

— Falar com ela? De jeito nenhum, Firefy. E se ela for... perigosa? Não quero um encosto me perturbando.

— Por favor, Ártemis, é pelo Gumer. Leva alguma coisa doce, tipo pudim. todo mundo gosta de pudim — insistiu Firefy.

Ártemis suspirou, ainda com receio, mas acabou assentindo.

— Eu posso tentar.

Firefy sorriu ao ouvir a decisão de Ártemis, seu entusiasmo evidente.

Firefy olhou para Ártemis com um sorriso genuíno, seu coração aliviado pela ajuda que ela tinha dado. Ao virar-se, ela lançou um olhar de reconhecimento para Glomme, apreciando o apoio e a contribuição dele. Ele também havia sido crucial, e qualquer informação adicional ou pista que ele pudesse encontrar seria um avanço importante.

Glomme deu um aceno confiante, a expressão resoluta em seu rosto. Ele estava determinado a fazer o que fosse necessário para ajudar.

Firefy respirou fundo, seus olhos se estreitaram com uma determinação inabalável. Não havia espaço para dúvidas ou hesitações. Eles iriam salvar Gumer, custasse o que custasse. Ele não merecia o que estava passando, e ela não descansaria até vê-lo livre daquilo.

O grupo trocou olhares de apoio, cada um sentindo o peso da missão que tinham pela frente.


10 de Março de 2019 - Domingo

8 dias e 9 horas atrás

A madrugada parecia lenta, como se o mundo tivesse decidido descansar em silêncio. O relógio na parede já marcava a quarta hora da madrugada, mas nada parecia ter mudado desde o último olhar. O frio lá fora se intensificava, e a escola, agora imersa em sombras, exalava uma calma profunda. As luzes fracas dos corredores lançavam sombras longas e vazias, como se a própria noite estivesse se estendendo sem pressa.

No quarto de Marry, tudo parecia tranquilo. As três colegas de quarto dormiam profundamente, mas Marry, com seus poderes aguçados de audição, percebeu algo estranho. A porta do dormitório se abriu lentamente, e o som suave do rangido da madeira foi o suficiente para fazer Marry se alertar. Ela olhou para as outras garotas, que continuavam dormindo, alheias ao que estava acontecendo. Ela foi a única a ouvir.

Marry ficou em silêncio, pensando no que poderia ser. Ela se forçou a relaxar, achando que poderia ser o vento ou qualquer outro som natural. Mas, quando se deitou novamente, fechou os olhos para tentar dormir.

De repente, seus olhos se abriram novamente, e o brilho vermelho que iluminou seu olhar refletia um terror profundo. A voz começou a invadir sua mente, surgindo como um sussurro ameaçador. As palavras se entrelaçavam com suas memórias mais dolorosas: sua infância marcada por maltratos, bullying na escola, e a dor de ser constantemente agredida e assediada pelos “amigos” que se diziam próximos. Ela havia aguentado tanto tempo, sofrendo calada, esperando que tudo passasse.

A voz continuou, relembrando-lhe os momentos mais sombrios de sua vida, a crueldade de sua família, que nunca se desculpou por seus erros. Sua infância marcada por abusos emocionais, as humilhações constantes, os dias sem fim de sofrimento. Ela entrou para o internato, acreditando que lá ela poderia finalmente escapar de tudo isso, mas, aparentemente, a dor a acompanharia onde quer que fosse. E agora, a voz não parava de se intensificar, trazendo à tona cada detalhe insuportável, que fazia o coração de Marry se apertar.

Ela chorava, paralisada na cama, o corpo congelado pela magia da voz que invadia sua mente. Marry tentou se mover, mas suas mãos e pés não respondiam. De repente ela se viu em um quarto infinito, escuro e vazio, um cenário de terror com o sangue tocando seus tornozelos. A voz continuava, sem piedade, espalhando mais e mais crueldade em sua cabeça. A dor era física e emocional, e ela estava sozinha, imersa em seu próprio sofrimento.

E então, algo começou a mudar. Uma fumaça vermelha começou a tomar forma, surgindo do nada e envolvendo Marry, se movendo ao redor dela com a força de um vórtice de vento. Ela gritou, seu corpo paralisado dentro daquele turbilhão de fumaça, mas, surpreendentemente, o vórtice não era algo externo. Era a própria Marry quem o estava criando, suas mãos erguidas como se controlassem a magia que estava tomando conta de seu corpo.

A fumaça se tornou mais densa, mais vibrante, e Marry, com olhos completamente vermelhos, começou a absorver a energia que se movia ao seu redor. Ela flutuava no ar, sentindo o poder crescendo dentro de si, e seus pés e mãos brilhavam intensamente em tons de vermelho enquanto a magia a envolvia. A fumaça mágica que ela criava, ao invés de ser um fardo, começava a se infiltrar em seu corpo, como se estivesse sendo assimilada por ela, o quarto infinito se desfazia, se fundindo com a fumaça enquanto tudo era absorvido por ela.

Mas, ao contrário do que parecia ser um momento de controle absoluto, a sensação mudou rapidamente. Marry sentiu uma dor esmagadora, como se a energia estivesse corroendo-a de forma descontrolada. Sua mente, tão assombrada, estava cheia de confusão. A fumaça dentro dela começou a se agitar, e, com um último esforço, ela foi projetada de volta para a cama, caindo sobre o sangue imaginário, acordando repentinamente em sua cama.

Marry se contorceu, seu corpo febril e estremecido, enquanto uma dor lancinante tomava conta de seu ser. Ela estava coberta de suor, e sua respiração estava ofegante, quando finalmente conseguiu descer da cama, caiu no chão, gritando de dor no estomâgo, um grito profundo e desesperado que parecia ecoar pelo quarto vazio.

Suas colegas de quarto acordaram assustadas com o barulho e a visão de Marry no chão. Duas delas correram para fora do quarto em busca de ajuda, mas uma ficou ali, olhando para Marry, sem saber o que fazer. Marry, com dificuldade, tentava manter o controle da energia que ainda pulsava dentro dela, lutando para não deixar que o vórtice de fumaça a dominasse novamente.

A respiração de Marry estava pesada, e ela conseguiu, aos poucos, se acalmar, com o suor escorrendo pela testa. Ela se sentou no chão, olhando para o teto, tentando restaurar a calma em sua mente. A fumaça ainda estava lá, contida dentro dela, mas por quanto tempo conseguiria mantê-la sob controle? Ela não sabia. Tudo o que sabia era que a voz, os traumas e a dor dentro dela continuariam a ser uma presença constante, até ela encontrar uma maneira de se livrar de tudo isso.

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