Volume 1 – Arco 1

Capítulo 9: Pudim

19 de março de 2019 - Terça-Feira

Pela tarde, o clima na escola se tornava mais tranquilo, com uma brisa morna entrando pelas janelas abertas e espalhando o cheiro de grama e folhas secas pelos corredores. Ártemis caminhava segurando um pudim, um pequeno presente, enquanto se dirigia ao quarto de Marry, sentindo a apreensão crescer dentro dela.

Ao chegar, bateu na porta, mas ninguém respondeu. Decidiu então entrar e, no escuro do quarto, acionou a luz. A claridade repentina revelou Marry deitada na cama, com uma expressão cansada e um olhar que pedia para não ser incomodada. Ártemis se aproximou, tentando estabelecer contato, mas Marry parecia relutante, virando o rosto para o lado, evitando contato, deixando claro que não queria conversa. 

Marry, contudo, com uma suspeita silenciosa sobre como Ártemis soubera de sua existência. A dúvida pairava no ar, um questionamento não verbalizado que fazia o ambiente ficar pesado. Mas Marry queria apenas que ela fosse embora, evitando o peso daquela busca e o desconforto de ser questionada. Ártemis, impaciente, continuava pressionando, tentando arrancar qualquer informação que ajudasse a entender o que acontecia, pois havia um amigo em quem ambos poderiam ser a última esperança. 

Marry hesitou quando Ártemis mencionou estar ali por causa de um amigo. Seu incômodo era visível, mas mesmo assim ouviu. Ártemis falou demais, empurrando palavras com pressa — disse que o garoto estava sendo atormentado por visões de uma menina, descreveu os sintomas, insistiu que poderia ser Marry. Ela falava como se tivesse descoberto algo importante, como se esperasse que aquilo fosse o suficiente para forçar uma reação.

Marry manteve o rosto fechado, mas quando ouviu a descrição — alto, pele escura, cabelos cacheados — o olhar dela vacilou. Reconheceu. Sabia exatamente de quem se tratava. E embora nada dissesse, o nome se prendeu em sua cabeça: Gumer. O nome que ela evitava pensar. O único que fazia seu peito doer de um jeito estranho.

Os olhos dela desviaram para o pudim nas mãos de Ártemis. Foi só um segundo, mas o desejo era claro. Não sabia de onde aquilo vinha, mas era raro alguém trazer algo assim. Ártemis estendeu o doce, como se fosse um prêmio pela insistência.

Marry pensou em mandá-la embora, em se calar de novo. Mas não resistiu. Por aquele pudim, cedeu. Não por gentileza, nem por confiança — apenas porque estava cansada demais para lutar contra tudo ao mesmo tempo.

Se fosse para falar, que fosse rápido. E valesse o açúcar.

As duas se sentaram no chão do quarto, e enquanto Marry começava a saborear o pudim, Ártemis tentou introduzir algumas perguntas, esperando entender melhor o que estava acontecendo. No entanto, conforme as perguntas se tornavam mais profundas, Marry começou a estremecer, lembranças e imagens perturbadoras retornando a sua mente. Suas mãos tremiam, e a respiração ficou irregular enquanto ela lutava contra o pânico que as perguntas despertavam.

Ártemis percebeu que Marry mal respirava naquele quarto abafado. Começou a insistir, dizendo que elas precisavam sair, que aquele lugar não fazia bem, que o ar fresco ajudaria. Marry não respondeu de imediato. Continuou com o olhar baixo, os ombros tensos, o corpo ainda hesitante.

Só ao terminar a última colherada do pudim, ergueu os olhos e assentiu com um gesto breve, quase sem vontade. A condição estava implícita — sairia, sim, mas apenas se houvesse mais daquele doce. Não por vontade de conversar ou por confiança em Ártemis, mas porque, naquele momento, precisava de alguma recompensa mínima para se mover. E o pudim era o suficiente.


No pátio, Ártemis e Marry estavam sentadas em uma das mesas de piquenique. Sobre a mesa, folhas e papéis estavam espalhados, enquanto Ártemis tentava organizar suas perguntas.

— Então, você e o Gumer… Por que vocês se conectam nos sonhos? — perguntou Ártemis.

Marry, sem dar muita atenção, continuava comendo pudins em uma velocidade impressionante, enquanto rabiscava os papéis. Com traços intensos, ela fazia uma figura humanoide — algo meio humano, com braços e pernas longas, boca enorme e dentes afiados. Em outra folha, escrevia uma frase em uma língua estranha, cheia de letras tortuosos. E na terceira folha, em vermelho forte, esboçava um símbolo malacabado.

— Não gosto desses sonhos — murmurou Marry com a boca cheia. — Odeio ver o Gumer sofrendo daquele jeito.

Ártemis arregalou os olhos, um pouco nervosa com a quantidade de pudins que Marry já havia devorado.

— Mas... por que você acha que isso acontece? — insistiu Ártemis, inclinando-se ligeiramente para frente.

Marry engoliu rapidamente outro pedaço antes de continuar rabiscando, ainda mastigando.

— Não sei o motivo, mas eu o vejo todas as noites naquele lugar escuro. É como se… algo tivesse amaldiçoado a gente.

Ártemis tentou captar as palavras de Marry, mas a fala embolada e a comida atrapalharam a compreensão.

— O quê? Pode repetir? — perguntou Ártemis, quase desesperada.

Antes que Marry pudesse responder, ela parou de repente e fez uma expressão desesperada, colocando a mão na boca, como se fosse vomitar.

Ártemis se assustou, fazendo uma careta de nojo e, em um piscar de olhos, as duas já estavam no banheiro feminino.


— Você está bem aí dentro? — perguntou Ártemis, do lado de fora da cabine onde Marry vomitava.

— Não, não estou bem! — respondeu Marry, irritada, sua voz abafada pela porta.

Ártemis ficou surpresa com o tom grosseiro.

— Olha, eu só quero ajudar.

Marry saiu da cabine, ainda pálida e ofegante, apoiando-se na pia enquanto lavava o rosto.

— Eu sei — disse Marry, sua voz um pouco mais suave, mas ainda carregada. — Mas não posso te dar nada. Esse assunto… Só de falar disso já me dá ânsia.

Ártemis suspirou, frustrada, percebendo que precisaria ser ainda mais cuidadosa para conseguir qualquer informação de Marry.

Ártemis colocou os papeis rabiscados na pia e cruzou os braços, olhando para Marry com olhos suplicantes.

— Por favor, Marry, eu preciso entender o que está acontecendo. Gumer está mal! Ele precisa de ajuda, e você é a única que pode me explicar isso.

Marry, ainda esfregando o rosto molhado com as mãos, bufou, visivelmente estressada.

— Eu já disse que não sei! — retrucou Marry, sua voz elevada ecoando no banheiro. — Não adianta ficar me pressionando!

— Mas você sabe alguma coisa! Você falou que vê o Gumer nos sonhos, tem algo conectando vocês. Isso é mais do que qualquer um sabe! Por que não pode simplesmente falar?

Marry virou-se de repente, encarando Ártemis com raiva.

— Porque não quero! Você acha que é fácil? Reviver essas coisas toda noite, sentir como se minha cabeça fosse explodir? — sua voz falhou por um momento, mas logo voltou com força. — Eu já tenho meus próprios problemas, Ártemis. O que você quer de mim?

Ártemis respirou fundo, tentando manter a calma, mas não conseguiu mais segurar.

— O que eu quero? Eu quero que você pare de ser egoísta! — gritou ela, apontando para Marry. — Você sabe que pode ajudar o Gumer, mas só pensa em si mesma.

Marry se afastou, andando até as cabines, surpresa com a explosão, mas logo rebateu, ainda mais irritada.

— Egoísta? Você não faz ideia do que eu passo! Não sabe nada sobre mim! Ou sobre o que essa madição está fazendo comigo!

— Então me conta! — interrompeu Ártemis, sua voz trêmula de indignação. — Você só reclama e reclama, mas não me deixa entender o que está acontecendo! Eu não sou sua inimiga, Marry!

Marry ficou em silêncio por alguns segundos, apertando os punhos enquanto encarava Ártemis com os olhos cheios de mágoa e cansaço.

— Eu não gosto de você — sussurrou Marry, com a voz carregada de desdém.

Ártemis piscou, como se tivesse levado um golpe.

— O quê?

Marry desviou o olhar, segurando-se para não chorar.

— Você insisti demais. Está me forçando a lembrar coisas que me machucam. Como posso confiar em alguém assim?

Ártemis ficou paralisada, suas emoções oscilando entre raiva e tristeza. Depois de alguns instantes, ela balançou a cabeça e se afastou.

— Sabe de uma coisa, Marry? Talvez você esteja certa. Talvez eu esteja insistindo demais. Mas, pelo menos, estou tentando fazer algo para ajudar alguém. Enquanto você… só fica se escondendo atrás dos seus traumas como se fosse a única pessoa no mundo com problemas! Todo mundo tem alguma coisa com que lidar, mas você… você se tranca, foge, e ainda acha que pode simplesmente afastar todo mundo com sua atitude de vítima!

Marry, que já estava a ponto de explodir, virou-se para Ártemis com os olhos brilhando de raiva.

— Você é muito ridícula. Não sabe a hora de parar, não respeita limites! Você acha que ser insistente vai te fazer parecer uma heroína, mas... só te torna irritante. Ninguém aguenta a sua necessidade desesperada de se meter na vida dos outros, Ártemis!

Ártemis deu um passo à frente, sentindo o sangue ferver.

— Eu? É você quem passa a vida fingindo ser vítima, como se o mundo fosse o problema, mas a verdade é que você só pensa em si mesma. Nunca estende a mão para ninguém, nunca faz nada além de se alimentar da pena dos outros, enquanto apodrece sozinha. E pior, você ainda suga tudo ao seu redor, arrastando todo mundo para o mesmo buraco miserável onde você escolheu viver. É isso que você é, Marry, um peso morto, um fardo insuportável que só destrói tudo o que toca!

— NÃO! — gritou Marry, sua voz reverberando com uma força assustadora.

O grito de Marry foi como uma explosão. As paredes vibraram com violência, o teto rangeu como se estivesse prestes a ceder, e os canos velhos começaram a estourar, cuspindo água enferrujada pelas frestas. Os espelhos atrás de Ártemis explodiram de uma só vez, estilhaços voando como lâminas de vidro em todas as direções, ricocheteando nas paredes e cravando-se nas portas das cabines.

O chão tremeu. As luzes piscaram freneticamente, até uma delas estourar com um estalo seco, mergulhando o banheiro em meio-apagão. Azulejos começaram a rachar. Uma pia se soltou da parede com um estalo grotesco e caiu no chão, despedaçando-se. O zumbido do grito parecia perfurar a cabeça de Ártemis, que instintivamente levou as mãos aos ouvidos, tentando se proteger do som avassalador.

Enquanto Ártemis cambaleava, tentando se manter em pé, Marry deu um último olhar de desprezo.

— Não me procure mais — disse ela, a voz fria e cortante.

Sem esperar uma resposta, Marry abriu a porta com força e saiu do banheiro, deixando Ártemis sozinha no meio do caos.

Ártemis abaixou as mãos lentamente, ainda atordoada pelo som. Ela olhou ao redor, vendo os cacos espalhados pelo chão e os espelhos, pias, tudo destruído. Mas ao virar-se e percebesse as folhas ainda na pia, sentiu-se mais leve, sorrindo meio convencida que conseguiu o que queria.


Marry caminhava pelo corredor enquanto as paredes rachavam ao seu redor, com finas fissuras se espalhando como cicatrizes vivas. As vibrações aumentavam, fazendo pequenos pedaços das paredes caírem. As luzes piscavam, criando sombras enquanto o ambiente parecia refletir sua raiva. Absorvida pelas emoções, ela não percebeu o estrago ao redor até parar e tentar recuperar o controle, soltando as mãos e fazendo as rachaduras pararem. Ao continuar sua caminhada, o corredor atrás dela mostrava os sinais do caos que ela mal conseguia controlar.


20 de Março de 2019 - Quarta-Feira

Ártemis caminhava pelo corredor segurando uma cesta de pudins em mãos. Quando avistou Marry, que seguia apressada em direção ao quarto, Ártemis acelerou o passo, tentando alcançá-la.

— Marry, espera! Eu trouxe pudins pra gente conversar.

Marry não diminuiu o ritmo, seu rosto virado para frente, ignorando completamente a presença de Ártemis.

Ártemis implorava para Marry ouvi-la, admitindo que tinha agido rude no dia anterior e queria se desculpar. Mas sem qualquer aviso, Marry levantou as mãos num gesto rápido e mágico. Em um instante, o corredor mergulhou num silêncio absoluto. Ártemis tentou falar, mas suas palavras morreram no ar, inaudíveis até para ela mesma. O som dos seus passos sumiu, e tudo ao redor ficou estranhamente quieto, como se o mundo tivesse congelado no tempo.

Marry avançou até o quarto, como se nada importasse. Ao chegar à porta, com um gesto sutil das mãos, desfez o silêncio que envolvia o enorme corredor, permitindo que os sons retornassem de repente, como um estrondo invisível. Ártemis, sentindo o impacto do barulho, tentou desesperadamente pedir que Marry a ouvisse. Mas Marry a ignorou, mostrando apenas frieza ao olhar para trás antes de entrar no quarto e fechar a porta com força. Do lado de fora, Ártemis, tomada pela indignação e pela vontade de ser ouvida, colocou a cesta no chão e bateu na madeira, exigindo que Marry abrisse a porta e escutasse suas palavras. 

Do outro lado, Marry canalizou seus poderes, liberando um impulso que atingiu a porta como uma explosão contida. Uma onda vermelha e pulsante percorreu a madeira, fazendo-a estremecer com força. Ártemis recuou, instintivamente erguendo os braços para se proteger, como se a porta fosse desabar sobre ela. Ela ficou ali, respirando fundo, o coração acelerado. Por um momento, considerou desistir, mas então olhou para a cesta de pudins no chão. Um sorriso cheio de malícia surgiu em seus lábios.

— Ah, então vai ser assim? — murmurou para si mesma.

Com movimentos rápidos e decididos, começou a abrir os potes e esfregar os pudins na porta de Marry. O doce amarelo grudava na madeira, escorrendo em fios pegajosos.

Quando terminou, largou a cesta vazia no chão, satisfeita com o resultado. 

— Boa sorte limpando isso, sua maluca.

E seguiu seu caminho.

Um último pudim pendurado na porta escorregou e caiu no chão com um som abafado, finalizando o ato de vingança.

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