Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10: A Balela de Rowena Cinder

Firefy ajustou os óculos falsos no rosto e puxou o capuz para baixo, tentando parecer o mais natural possível. A sala estava quase às escuras, iluminada apenas por pequenas luzes espalhadas, que piscavam como vagalumes. Ao redor da mesa redonda, o grupo de garotos discutia com fervor sobre as regras do jogo de tabuleiro. Cada um parecia mais imerso no universo nerd do que o outro, debatendo estratégias e narrativas com paixão.

Ela se acomodou em uma cadeira rangente, observando os dados e as miniaturas intricadamente pintadas sobre o tabuleiro. Embora não fizesse ideia do que estava fazendo, ela imitava os outros, murmurando comentários de apoio e comemorando quando alguém fazia um movimento importante.

Ela ergueu um copo, brindando a jogada de alguém ao lado, como se estivesse se divertindo. Levou a bebida à boca, mesmo preferindo nem saber do que se tratava. O gosto amargo a fez estremecer, mas manteve o sorriso — precisava parecer convincente.

Enquanto o jogo avançava, Firefy percebia o entusiasmo deles crescendo. Eles falavam de personagens, mundos fictícios e enredos elaborados, como se fossem historiadores de um universo paralelo. Esperou pacientemente por uma brecha até o momento das conversas informais, que sempre surgiam quando a partida acabava.

Finalmente, um dos garotos, chamada Selindra, jogou os dados e venceu. Houve gritos e aplausos, e, como de costume, eles se acomodaram em uma roda de cadeiras, cada um segurando uma bebida na mão. O ambiente continuava escuro, iluminado apenas pelas pequenas luzes piscantes espalhadas pela sala, criando uma atmosfera quase mística.

Ela aproveitou o momento. Era a chance perfeita para introduzir o assunto que realmente a interessava.

— Me digam uma coisa — Firefy cruzou os braços, olhando para todos. — Vocês já ouviram falar de possessões ou feitiços acontecendo aqui na escola? Tipo, algo diferente, meio estranho? 

Todos trocaram olhares cúmplices. Alguns riram baixinho, outros apenas bebericaram suas bebidas como se estivessem considerando a pergunta.

— Feitiços? Invocaçõeszinhas? — um deles, chamado Dreyko, respondeu com um tom zombeteiro. — Claro que já ouvimos. A gente sabe de tudo.

Outro garoto, chamado Tioran riu e deu um tapa no ombro dele.

— Para de mentir. Você só lê aquelas revistas de ficção barata — disse o Tioran com um sorriso de escárnio. Virou-se para Firefy e falou. — Você sabe que aqui não tem feitiçeiros nem magos de verdade, né? Só tem sinthrahs, como nós, com habilidades especiais ou mágicas. Feitiçaria de verdade? Isso é treino para quem vai pra outras escolas, separadas, especiais, longe daqui. O governo não mistura gente “inferior” com magos e feiticeiros, entendeu? 

Dois garotos, Kaelun e Ezven, que estavam mais ao fundo riram entre si e puxaram três jornais velho de uma pilha bagunçada. Jogaram-los encima da mesa.

— Aqui, ó — disse Kaelun, jogando um dos jornais sobre a mesa. — Lê isso. Um desses fala sobre uma velha cadeirante maluca que morreu faz quase 20 anos. Ela era obcecada pela escola, maldições, possessões e essas coisas estranhas. 

— E não é só isso — completou Ezven, com o tom mais sério. — Ela dizia que um dia a lua de sangue ia voltar e trazer problemas pra todo o mundo de Aflhenia. Uma maldição sem fim... Mas a escola já viu coisa pior: tem relatos de aparições, alunos desaparecidos, até sinais de magia fora do controle que ninguém conseguiu explicar direito.

— Essas histórias estão espalhadas nesses jornais aqui — acrescentou Kaelun, mexendo nos papéis. — Já teve casos de gente que jurava ter ouvido vozes, outros que falavam em sombras andando pelos corredores. Parece até que a escola carrega um peso antigo, cheio de mistérios que ninguém ousa enfrentar de verdade.

Firefy folheou os jornais com cuidado. As páginas estavam amareladas e cheiravam a poeira. Haviam menções a uma mulher que havia sido declarada insana, alguém obcecada com magias antigas e que parecia ter uma conexão sinistra com a escola. A menção da "Lua de Sangue" chamava ainda mais atenção.

— Esses jornais… de que ano são? — ela perguntou, tentando soar desinteressada, mas seus olhos examinavam rapidamente o rodapé das páginas em busca de pistas.

— Boa pergunta — respondeu Selindra. — A gente o achou num brechó perto do centro. Meio empoeirado, no meio de umas caixas de quadrinhos.

— Pois é... — completou outro garoto, chamado Malrik. — Mas parece ser da mesma época em que a velha morreu. Deve ter quase 20 anos.

— Posso levar isso? — Firefy perguntou, segurando o jornal como se fosse um artefato precioso.

— Claro, fica à vontade — respondeu Selindra. — A gente nem liga muito. É engraçado, mas quem sabe você não descobre algo.


Quando o encontro finalmente acabou, Firefy saiu do quarto abafado dos garotos, respirando o ar fresco do corredor. Apertou o jornal contra o peito, sentindo uma mistura de alívio e excitação.

Ela tinha algo. Algo que talvez pudesse levá-la um passo mais perto da verdade. A história daquela mulher, a menção da lua de sangue e Alfhenia em perigo… tudo isso parecia se conectar. Era hora de desvendar o mistério.


Horas haviam se passado. No dormitório de Ártemis, uma bagunça de papéis ocupava todo o chão. Os papéis que Marry havia rabiscado uma dia atrás. Ártemis e Glomme estavam sentados no chão. Glomme analisando as folhas com atenção, enquanto Ártemis, fazia anotações em seu caderno.

— Sério, quanto mais eu olho, mais bizarro fica — murmurou Ártemis, virando o papel de um lado pro outro. — Olha isso... os braços são compridos demais. E o rosto... ou o que quer que seja isso... não tem feições, só um borrão. Isso parece coisa de um pesadelo, Glomme. Ou pior. Parece algo que nem devia existir no nosso mundo. 

— E se não devia existir mesmo? — disse Glomme, pensativo. — No continente de Gorgoroth dizem que tem criaturas que se escondem entre as sombras do tempo, que se comunicam com símbolos distorcidos, quase humanos, mas não o bastante pra gente entender. E se essa coisa for uma delas? Se for um tipo de sinal? Se alguém — ou alguma coisa — daquilo que vive lá está tentando falar com a gente, só que do jeito torto deles? 

Antes que pudessem continuar, a porta do quarto se abriu com um estrondo. Firefy entrou rápido, com os cabelos bagunçados e o rosto corado de excitação. Sem dizer nada no começo, apenas se jogou no chão entre eles e estendeu jornais antigos, com as páginas amareladas. 

— Vocês não vão acreditar no que eu achei! — Firefy falou animada, enquanto espalhava as páginas pelo chão. — Olhem isso. Esses relatos são antigos, mas todos falam de coisas bizarras que já aconteciam aqui desde o começo da escola. Gente dizendo que ouvia vozes, vultos, pesadelos que se repetiam noite após noite. E isso muito antes da gente nascer. 

Ártemis folheava os jornais, e Firefy continuou.

— Esses relatos são antigos, mas agora... do nada começaram a sumir alunos, e a Marry teve uma convulsão no quarto. A gente sabe que o que aconteceu com o Gumer não foi normal — foi possessão. Só que ninguém sabe explicar direito o que está rolando. Parece que a escola carrega um peso antigo, cheio de mistérios que ninguém quer enfrentar de verdade.

Ela mostrou uma foto de uma senhora idosa, num artigo com o título em letras grandes: "Rowena Cinder: A Maluca Aleijada."

— Parece que ssa mulher morava no terreno antes do internato ser construído — disse Firefy, mais baixa agora, como se a presença dela ainda rondasse o lugar. — Diziam que ela ficou louca depois que começaram as obras. Acreditava que esse internato era um erro, que ele estava “despertando o que devia continuar enterrado”. Falava de maldições, da Lua de Sangue, de possessões...

Glomme franziu a testa, lendo o artigo, enquanto Ártemis falava, desconfiada.

— Tá, mas isso não explica os símbolos e desenhos estranhos que a Marry fez. Isso parece outra coisa, algo de outro mundo, não tem nada a ver com uma velha que enlouqueceu.

— Ártemis, não é normal aluno desaparecer dentro de um internato fechado. Nem muito menos alguém enlouquecer e tentar matar todo mundo na enfermaria — explicou Firefy, baixando a voz como se contasse um segredo. — E ainda por cima, a Marry consegue se conectar com o Gumer? Isso tá longe de ser coincidência. Tem algo aqui dentro, e sempre teve. 

— Ok, mas... — disse Glomme, cruzando os braços. — A gente sabe que o que aconteceu com o Gumer foi feitiçaria, mas quem faria isso? E por quê? Precisamos entender mais sobre, mas como?

Firefy ficou pensativa, mordendo o lábio antes de dizer.

 — Esses jornais mostram que a escola sempre teve segredos, desde o começo. Talvez seja hora de a gente investigar mais, procurar pessoas que conhecem a história antiga, vasculhar arquivos. Alguma coisa vai aparecer.

Glomme olhou em volta, o ar mais pesado que antes. — Tá. Mas por onde a gente começa?

Firefy fechou o último jornal com um baque seco. — Procurando o que esconderam. E rápido. Porque alguém — ou alguma coisa — não quer ser encontrado.

— A Firefy tá certa.

Os três congelaram. Lentamente, ergueram os olhos e viram Leonarda deitada na parte de cima do beliche, os cotovelos apoiados no colchão e o queixo nas mãos, como se estivesse ali o tempo todo.

— Leonarda?! — exclamou Ártemis, se levantando. — Desde quando você tá ouvindo a gente?

— Desde de... sempre — disse ela com um sorriso leve. — Essa é minha cama, lembram? Vocês esqueceram que eu durmo aqui.

Firefy bufou. — Tá. Vai contar tudo pro diretor, é isso?

— Não se eu fizer parte — respondeu Leonarda, se sentando e, num salto ágil, descendo da cama. — E pra ser sincera... eu também sinto que tem algo errado com essa escola. Não sei explicar, é como um desconforto constante, como se alguma coisa estivesse observando.

Ela se sentou com eles no chão e pegou o jornal das mãos de Ártemis. Leu por alguns segundos e balançou a cabeça.

— Escutem — começou Leonarda, sem rodeios, com aquele jeito meio destemido que sempre chama atenção. — Se a Rowena morava aqui antes mesmo de construírem o internato, e anos depois, passou a falar que a escola despertava algo perigoso, algo que ninguém mais parecia notar, então sem dúvidas ela sabia de alguma coisa que os outros não sabiam — falou Leonarda olhando fixamente para os colegas com um tom grave e cheio de preocupação. — Ninguém nunca escuta os doidos até as coisas começarem a dar errado. E agora, olha só, tem gente sendo possuída, e ninguém sabe de onde vem. 

Ela olhou nos olhos de cada um com um brilho estranho, entre a provocação e a certeza arrogante. 

— Vão até o caixão dela. Vejam se tem alguma coisa dentro. Se ela sabia o que tava vindo, talvez tenha tentado deixar um aviso. Ou não. Mas vocês nunca vão saber se ficarem aqui só falando. Eu não vou, claro. Mas boa sorte com a parte nojenta.

Os três trocaram olhares, tentando processar a ideia de Leonarda.

Glomme franziu a testa, sem entender direito por que deveriam mexer no caixão de Rowena. Parecia estranho demais, e ele perguntou se aquilo realmente faria sentido.

Firefy admitiu que era estranho, mas se o que Rowena sabia tivesse alguma ligação com os sumiços e os estranhos acontecimentos na escola, talvez valesse a pena tentar.

Ártemis então sugeriu ligar para Trrira, que poderia ir até lá e olhar o caixão sem eles precisarem esperar para sair do internato.

Depois de trocarem olhares, eles concordaram e começaram a se organizar para chamar Trrira.

O grupo, agora unido, se preparou para dar o próximo passo na investigação. O mistério da Rowena parecia estar apenas começando.


Enquanto os três corriam pelo corredor em direção a sala de telefones, Leonarda tomou o caminho oposto. Sua silhueta ágil desapareceu entre os corredores sombrios, movendo-se com determinação até alcançar outro quarto. O dormitório aonde Vanpriks descansava, um espaço sombrio e enigmático.


Dentro do quarto, Vanpriks flutuava no centro do ambiente, de pernas cruzadas, seus olhos completamente brancos brilhando com uma intensidade sobrenatural. Suas mãos realizavam movimentos elegantes e fluidos, conectando traços de magia pura que brilhavam em tons de vermelho profundo. A luz dançava pelo quarto, projetando sombras em formas bizarras e assustadoras. Suas orelhas, mais pontudas que o comum, captavam o menor dos sons, mas ela estava tão concentrada que não percebeu Leonarda se aproximando até a porta se abrir bruscamente.

A luz do corredor invadiu o ambiente, desfazendo instantaneamente o espetáculo mágico. Vanpriks pousou no chão com um leve impacto, seus olhos voltando ao normal, enquanto uma expressão de frustração tomava conta de seu rosto.

Leonarda entrou no quarto de Vanpriks de forma abrupta, o que irritou imediatamente a outra. Vanpriks, de braços cruzados, demonstrava pouca paciência com interrupções, especialmente as recorrentes de Leonarda. Ainda assim, a menção à Lua de Sangue bastou para mudar sua expressão do aborrecimento à atenção.

Leonarda explicou que os Bambis haviam descoberto algo estranho envolvendo uma mulher chamada Rowena Cinder, falecida anos antes, que supostamente tinha ligação com a Lua de Sangue e talvez até com a escola em si. Vanpriks, inicialmente cética, mencionou que sua avó já lhe falara da Lua, algo que humanos comuns não deveriam conhecer — mas Rowena aparentemente sabia.

Leonarda disse que o grupo iria investigar o túmulo de Rowena. Para tentarem entender o que ela sabia. As vozes da cidade tinham ignorado seus avisos, suas anotações foram consideradas devaneios. Vinte anos depois, restava quase nada — mas talvez algo ainda estivesse lá. Uma pista, um símbolo, qualquer coisa que Rowena tenha deixado para trás sem querer. 

Vanpriks então, sem mostrar entusiasmo, apenas foco, assentiu com a cabeça. Iria com eles. Não para ajudar, mas porque ela queria entender o que Rowena sabia — e por que foi considerada louca.

Leonarda saiu do quarto com um meio sorriso vitorioso, enquanto Vanpriks voltou a flutuar, os olhos ainda vazios, mas agora atentos ao nome que voltava a ecoar pela escola: Rowena Cinder

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