Volume 1 – Arco 1

Capítulo 11: Ossos e Conflitos - Parte 1

21 de março de 2019 - Quinta-Feira

A manhã começava na casa de Trrira com a luz suave entrando pelas grandes janelas, iluminando sua fachada imponente.

Dentro da casa, Trrira terminava de se arrumar diante do enorme espelho de seu quarto decorado com móveis de madeira escura e detalhes em dourado. As cortinas de veludo azul-marinho estavam abertas, permitindo que a luz fria da manhã iluminasse o ambiente luxuoso. A cama de dossel, impecavelmente arrumada, era um reflexo da disciplina e das expectativas que seus pais sempre tiveram dela. 

Ela vestia uma jaqueta de couro preto ajustada, uma camisa branca bem passada e calças jeans de grife combinadas com botas elegantes, mas funcionais. Uma bolsa lateral de couro caríssimo completava o visual. Dentro da bolsa, ela guardava seu celular, e uma carteira recheada com dinheiro e alguns documentos, como precaução.

Respirando fundo, Trrira saiu de seu quarto e desceu a escadaria de mármore branco, cujos degraus ecoavam sob seus passos. A sala principal, decorada com móveis clássicos e uma lareira ornamentada, exalava uma atmosfera de poder e prestígio. O aroma suave de café e croissants frescos vinha da luxuosa cozinha gourmet.

Na cozinha, sua mãe chamada Sylmara, uma mulher elegante e sempre bem arrumada, estava sentada à mesa lendo um jornal internacional enquanto saboreava uma xícara de café artesanal. Ela ergueu o olhar ao ouvir Trrira se aproximando.

— Bom dia, querida. Vai sair tão cedo? — perguntou Sylmara.

Antes que Trrira pudesse responder, passos firmes ecoaram pelo piso de mármore. Seu pai, chamado Kael, surgiu com sua postura imponente, pronto para mais um dia à frente de sua prestigiada empresa. Seus olhos afiados pousaram imediatamente na filha.

— Aonde você vai? — ele perguntou em um tom sério e controlador, como se soubesse que havia algo fora do comum.

Trrira manteve a compostura. Sabia como esconder o nervosismo, especialmente diante do olhar sempre atento do pai. Aquela conversa não era nova.

Disse que sairia para encontrar algumas colegas, alegando que trabalhavam juntas em um projeto escolar. Segundo ela, era um portfólio sobre estética e comportamento profissional. A explicação saiu com naturalidade, como se tivesse sido ensaiada dezenas de vezes.

O pai a observou com desconfiança, os olhos semicerrados ao ouvir a palavra “portfólio”. Quis saber que tipo de trabalho era aquele, o que exatamente ela pretendia fazer.

Trrira manteve o tom firme. Explicou que iam fotografar locações pela cidade, buscar estilos variados de arquitetura, montar composições visuais que transmitissem emoções. Falava com segurança, usando uma linguagem que sabia que ele respeitava.

Ele não pareceu totalmente convencido, mas não insistiu. E isso era o suficiente para que ela pudesse sair.

Sylmara perguntou, com a voz gelada, se aquilo fazia parte do programa de treinamento. Trrira assentiu sem hesitar. Disse que sim — que era uma atividade voltada para desenvolver presença e expressividade diante das câmeras, algo que contaria pontos na avaliação final.

O silêncio que se seguiu foi pesado. Os pais trocaram um olhar rápido, calculando. Para eles, a carreira de modelo de Trrira era um plano definido, um investimento — não uma vontade dela.

O pai deu um aceno breve, encerrando a conversa. Limitou o tempo: duas horas, sem atrasos. Exigiu resultados.

Trrira respondeu prontamente, com firmeza. Depois, atravessou a grande porta de madeira entalhada e deixou a casa. O ar frio bateu em seu rosto, trazendo uma leve sensação de liberdade — mesmo que fosse apenas por um instante.

Sem mais palavras, ela saiu pela imensa porta de carvalho entalhado, sentindo o vento frio atingir seu rosto como uma onda de liberdade temporária.

No caminho para o cemitério, Trrira observava as ruas da cidade de Michilli através da janela do taxi. O céu estava cinzento, As árvores secas balançavam ao vento enquanto as ruas fervilhavam de movimento naquela manhã. As calçadas estavam cheias, com pessoas indo e vindo em meio ao ritmo apressado do dia que começava. Seus pensamentos estavam voltados para o túmulo de Rowena Cinder e para o que poderia encontrar ali — alguma pista que ajudasse a entender o mistério por trás das possessões e dos desaparecimentos na escola. 


No internado escolar. A Sala de Treinamento estava agitada, cheia de alunos praticando diferentes técnicas sob a supervisão do instrutor Kevin. 

Misha estava na sala, observando as lutas no campo externo durante uma simulação de combate. 

De repente, as portas pesadas se abriram com um estrondo. Quinn entrou com passos firmes, seu rosto marcado pela fúria contida. Seus olhos fixaram-se em Misha como um predador mirando sua presa. Ele marchou em direção a ela, esbarrando em outros alunos que tentaram sair de seu caminho.

Antes que Misha percebesse, Quinn a agarrou pelo pescoço e a empurrou brutalmente contra a parede de cimento queimado, chamando a atenção de todos na sala e no campo. Um silêncio pesado se instalou à medida que os estudantes interrompiam seus treinamentos para assistir à cena.

— Você quer acabar com minha vida, porra? — ele sussurrou com desprezo, pressionando-a pela mandíbula contra a parede. — Você é uma psicopata... Matou o Veyron, caralho!

Misha arregalou os olhos por um instante, mas logo sua expressão mudou para uma mistura de surpresa falsa e fragilidade fingida. Ela tentou parecer inocente, deixando lágrimas brilharem em seus olhos como uma atriz experiente.

— Eu... eu não sei do que você está falando... — sua voz tremia levemente, ela chorava, piscando os olhos como uma vítima, mas Quinn não se deixou enganar.

Ele apertou o rosto dela com mais força, obrigando-a parar de fingir. Misha gemeu de dor.

— Pare! — ele rosnou. — Eu sei o que você fez no banheiro, caramba... Matou ele... Eu sei disso! Os pais do Veyron acham que foi a minha família que matou aquele merda... Mas foi você, Misha, sua vadia de merda. Você me traiu, porra!

Misha deu uma risada amarga, sua expressão mudando para algo muito mais sombrio.

— Então era Veyron o nome dele? — ela perguntou, sua voz gélida e cheia de desprezo. Seus olhos brilharam em um tom amarelado intenso, emanando uma energia ameaçadora que fez Quinn hesitar. — Ele mereceu.

Quinn recuou, tirou as mãos dela com brutalidade, empurrando-a de leve para longe., o choque momentâneo tomando conta de seu rosto. Os olhos brilhando e a expressão fria e mortal de Misha parecia confirmar todos os seus piores medos. Antes que ele pudesse reagir, a porta da sala se abriu com um estrondo, revelando o professor Kevin, sua presença imponente e olhar severo dominando o ambiente.

— Quinn! Misha! Na direção. Agora! — sua voz soou como um trovão.

Quinn a encarava, com o rosto endurecido pela raiva, ele saiu da sala com passos pesados, enquanto Misha ajeitava a roupa e recuperava sua expressão impecável, seus olhos voltando ao normal. Sem dizer nada, seguiu até a saída, enquanto o resto da sala permanecia em silêncio, atordoado com o que acabara de presenciar.


O cemitério de Michilli, um dos mais antigos e esquecidos da cidade, era conhecido por seu silêncio opressivo e árvores retorcidas que lançavam sombras eternas sobre os túmulos. Foi lá, como Glomme havia revelado, que Rowena Cinder fora enterrada — e era para lá que os passos de Trrira agora se dirigiam. O vento soprava com um toque frio e cortante, balançando as árvores altas que cercavam a área. A terra era escura e árida, as lápides antigas cobertas por musgo, e o silêncio era absoluto, interrompido apenas pelos ecos distantes da cidade. Trrira desceu do carro, sentindo a tensão crescer no ar enquanto olhava ao redor, suas botas de couro fazendo um som suave ao tocar o chão seco.

Ela respirou fundo e começou a caminhar entre os túmulos, seu olhar fixo nas placas de pedra enquanto seu celular brilhava na palma de sua mão. Digitando com rapidez. Procurava por imagens do túmulo de Rowena Cinder, digitava o nome nos buscadores, vasculhava imagens antigas: algumas borradas, outras em preto e branco, mas todas pareciam erradas. As fotos da lápide de Rowena eram marcadas por pichações grotescas — insultos como “Feto do Diabo”, “Bruxa das Maldições”, “A Besta de Michilli” — rabiscados por adolescentes ao longo dos anos, zombando da figura trágica que ela fora. Era difícil distinguir o original sob tantas camadas de tinta e ferrugem. 

Trrira se agachou diante de uma lápide coberta por musgo espesso, passando os dedos pelas letras apagadas numa tentativa de revelar algum nome familiar — mas tudo ali parecia antigo demais, indistinto, sem nenhum sinal de pichação como nas imagens da internet; apenas silêncio, musgo e pedra, como se aquele cemitério quisesse esconder seus segredos sob camadas de esquecimento. Ela se levantou com um suspiro e continuou a andar, sentindo o peso de cada passo, como se o cemitério estivesse lhe cobrando algo.


Enquanto isso, na sala da direção da escola de Michilli, Quinn e Misha estavam sentados em cadeiras de madeira dura, aguardando a chegada da vice-diretora Hanvasa. A sala era austera, com paredes escura e móveis simples, mas imponentes. A única decoração chamativa era um grande quadro antigo na parede, representando a fundação da escola. A tensão entre os dois era palpável, mas ambos estavam em silêncio, o olhar de Quinn ainda carregado de raiva, enquanto Misha observava tudo ao seu redor com uma expressão enigmática.

Quinn se mexeu na cadeira, inquieto, sentindo o desconforto se espalhar por seu corpo. Ele olhava fixamente para a porta, como se desejasse que ela se abrisse imediatamente, mas a ansiedade o corroía por dentro. Seus pensamentos estavam em turbilhão, voltando com força à conversa com Misha mais cedo, à maneira como ela havia se comportado, tão fria, tão distante. A morte de Veyron não parecia ter importância para ela, e isso o deixava com um nó na garganta. Ele sentia o peso daquilo em cada fibra do seu ser, a responsabilidade esmagadora de manter a imagem de sua família intacta.

Os pais de Quinn eram tudo para ele. A boa reputação deles era tudo o que ele conhecia e respeitava, e ele sabia que, se algo saísse do controle, isso arruinaria tudo o que haviam construído ao longo dos anos. Ele não podia entender como Misha, com aquele sorriso debochado e sem remorso, poderia não perceber as consequências que isso traria. Enquanto ela seguia sua vida, impune e sem preocupações, sua família estava à beira do abismo. Ele sabia que tudo estava em jogo. A boa imagem de sua família, suas festas, seus privilégios... tudo isso estava sendo ameaçado. Os pais dele, que sempre estiveram acima de qualquer suspeita, agora eram alvo de investigações, com todos os olhares voltados para eles.

A ideia de que seus pais pudessem ser presos por homicídio era uma constante em sua mente. Quinn sentia o peso disso, como uma sombra que nunca o deixava. Ele queria justiça. Não só porque isso era o certo, mas porque não podia permitir que sua família fosse destruída dessa maneira. Seus pais, tudo o que eles construíram... ele não podia deixar que tudo fosse por água abaixo por causa de Misha.

Ela estava feliz, talvez até se sentindo vitoriosa, mas Quinn sabia que tudo estava prestes a desmoronar. Ele não podia permitir que ela se saísse impune. Ele queria que ela se entregasse para a polícia, que assumisse a culpa e parasse de jogar a responsabilidade nos outros. Quinn sabia que, se ela se entregasse, poderia ser o fim desse pesadelo. Mas se ela continuasse, se fosse permitido que ela se saísse dessa, sua família poderia pagar o preço mais alto. Ele não permitiria que isso acontecesse.

Por outro lado, Misha estava tranquila, quase entediada, como se tudo ao seu redor fosse apenas uma distração temporária. Como se estivesse observando um jogo, e ela soubesse, sem sombra de dúvida, que era a vencedora. A ideia de perder nunca a preocupava; ela sempre se saía ilesa, não importava o que acontecesse. Ela sabia que a situação com Quinn a divertia, e isso a deixava satisfeita de uma maneira quase perversa.

Ela lançou um olhar vago para Quinn, um toque de desdém em seus olhos, mas não disse uma palavra. Não precisava. Ele estava tão óbvio, tão visível em sua raiva que ela quase podia sentir a frustração dele emanando, como se estivesse prestes a explodir. Misha adorava ver essa luta silenciosa. Quinn tentava controlar o que sentia, mas isso só o tornava mais previsível, mais fraco aos olhos dela.

Ela não se importava com a reputação da família dele. Não percebia o impacto que suas ações tinham sobre eles. Para Misha, a única coisa que importava era o controle, o poder. Quinn, com sua raiva contida, não a assustava. Ele pensava que suas palavras e ameaças a afetariam, mas ela estava além disso. Ele achava que ela estava colocando a culpa na sua família, mas Misha mal notava os efeitos reais de suas ações. A ideia de destruir a reputação da família dele parecia tão distante, tão irrelevante para ela, que não conseguia sequer ver as consequências disso. Ela simplesmente não se importava.

Enquanto Quinn se debatia com a culpa e temia pelo que sua família poderia perder, Misha o observava com frieza,  enxergando apenas mais uma peça prestes a ser descartada. Ele era um caçador, como ela. Faziam parte do mesmo grupo, juraram proteger os mesmos princípios — mas, aos olhos de Misha, ele havia cruzado uma linha que jamais deveria ser tocada. Ele a havia enforcado, não aceitou a morte de Veyron e, pior, questionou os desígnios divinos, como se pudesse se colocar acima de Nael. Veyron? Para Misha, não passou de um peão. Ela o eliminou sem hesitar, fria, precisa. Talvez não matasse Quinn, mas isso não significava que o perdoaria. Ela o faria se ajoelhar. Iria dobrá-lo, fazê-lo rezar a Nael para que ela não acabasse com ele ali mesmo. Porque, no fim, não importava o que ele fosse ou o que sentia — Quinn a havia desafiado. E Misha não aceitava ser desafiada. 

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