Volume 1

Capítulo 3: Chuva, Febre

AQUELE SEU PROFESSOR adora usar a palavra "costume", né? — foram as primeiras palavras da minha mãe depois de um longo silêncio enquanto ela me levava para casa da escola. Eu estava largado no banco do passageiro, observando as gotas de chuva deslizarem pelo para-brisa como estrelas cadentes, levadas pelo vento forte.

Ah, é costume que os alunos participem de atividades extracurriculares — ela continuou, imitando a voz dele de forma zombeteira. — É costume considerar essas coisas como faltas não justificadas. É costume que todos estejam em seus lugares pelo menos cinco minutos antes da aula começar. Chegou a ser tão ridículo que, depois de um tempo, comecei a contar quantas vezes ele dizia isso. Vai lá, tenta adivinhar.

— Mãe, eu realmente não me importo — respondi.

— Com certeza foi mais de oito vezes. No mínimo. Sinceramente, fiquei tão focada em manter uma contagem precisa que mal prestei atenção no que ele estava dizendo de verdade. Mas, convenhamos, essas reuniões são sempre tão chatas...

Minha mãe riu sozinha. Ela sempre foi muito falante — mais do que feliz em falar até cansar quem quer que lhe desse atenção, fosse um estranho ou até um gato de rua. Aliás, foi exatamente o que ela fez hoje; tínhamos acabado de sair da minha reunião de pais e mestres da oitava série, e minha mãe dominou a conversa inteira.

— Além disso, de que "costumes" a gente tá falando, afinal? — ela prosseguiu. — Eu até entendo as regras sobre faltas não justificadas e tal, mas se vão exigir que as crianças estejam na sala cinco minutos antes do início das aulas, qual é o sentido do sinal de atraso? Sei que ele disse que é para evitar que os alunos entrem correndo na última hora, mas, francamente, quem se importa se eles chegarem no limite, contanto que não estejam realmente atrasados? Parece um costume meio inútil, se quer saber.

— É porque um aluno se machucou — falei.

— Como é? — ela perguntou.

— Alguém estava correndo no corredor, tentando chegar na sala antes do sinal tocar, e acabou batendo em outro aluno... O menino teve que levar pontos e tudo. Então, quando discutiram como evitar isso no futuro, criaram essa regra dos cinco minutos.

— Olha só, que bem-informado — comentou minha mãe.

— Estava no boletim da escola.

— Mas isso não resolve o problema de verdade, né? — ela rebateu. — Se obrigarem todo mundo a chegar cinco minutos antes, só vão criar outro prazo arbitrário e fazer os alunos correrem do mesmo jeito.

— Pois é, por isso que é "costume". Não é obrigatório nem nada, dã.

— Opa! Alguém tá meio nervosinho hoje, não é? Acho que nunca te ouvi falar "dã" desse jeito antes. Será que estamos entrando na fase rebelde da adolescência? Ou será que é a má influência do Kurehiko que tá pegando em você? Olha, vou te falar, agir como se estivesse de saco cheio de tudo não vai te levar a lugar nenhum, viu?

— Não tô.

Deus, me deixa em paz. Eu realmente não precisava que ela ficasse me interrogando sobre as palavras que eu usava. Era insuportável.

— Ah, e falando em machucados... Você era bem amigo daquele menino, o Mishima, né, Kayato?

As faixas de chuva no para-brisa ficaram ainda mais intensas, e os limpadores automáticos aceleraram para acompanhar.

— Fiquei bem surpresa quando o seu professor mencionou isso — disse minha mãe. — Ele ficou em primeiro lugar na sua gincana escolar, não foi? Deve estar sendo bem difícil pra ele agora, imagino.

— Não sei. A gente não se fala mais — respondi.

— Era o Mishima-kun e... Como era o nome do outro menino mesmo? Matsuse-kun? Nem lembro direito. Mas deve estar sendo complicado — comentou ela. — Ter dois alunos se machucando no mesmo dia... Não foi isso que ele disse? Que o Mishima-kun ainda estava no hospital? Se vocês eram tão próximos, talvez devesse visitá-lo.

— Eu já falei que a gente não se fala mais!

O sinal fechou. Minha mãe freou bruscamente, e eu fui jogado um pouco para frente. Alguns pedestres, protegidos por guarda-chuvas, atravessaram a rua na nossa frente.

— Quem se importa, sério? — falei. — Não faz diferença pra mim.

Apoiei o cotovelo na moldura da janela e encostei a cabeça na porta, o vidro logo ficando embaçado com minha respiração. Se fôssemos próximos? Que piada. Eu nem queria pensar neles. Para mim, eles apenas colheram o que plantaram. Quando anunciaram no alto-falante da escola que eles tinham se machucado, eu quase comecei a acreditar que Deus realmente existia. Ao mesmo tempo, era meio assustador — ver justamente duas das pessoas que eu mais queria que desaparecessem deste mundo se ferirem no mesmo dia, como se fosse algo planejado.

Pelo que disseram, ambos se machucaram durante o treino esportivo — um quebrou um osso, o outro ficou coberto de hematomas. Parecia até que tinham sido espancados com algum objeto pesado.

Dada minha "proximidade" com os dois, meus colegas rapidamente começaram a me olhar como o principal suspeito. Mas eu não tinha feito nada — e mesmo se quisesse, não teria conseguido. Todo mundo na sala sabia da minha condição, sem falar da minha natureza retraída. Então, obviamente, ninguém tentou me culpar. Mas, em troca, passei de piada da turma para um tipo de aberração horrível que parecia amaldiçoar quem se metesse comigo. Eu suponho que isso era uma pequena melhora, se fizesse com que me deixassem em paz, mas ainda era uma forma brutal de ser tratado.

— É, acho que no fim das contas realmente não importa tanto pra você — disse minha mãe, de maneira casual, quando o sinal abriu e ela acelerou suavemente. — Mas também não devia desprezar amizades verdadeiras, sabia?

Não respondi nem com um "não" nem com um "sim".

Amizades verdadeiras, é? Eu não tinha nada disso — nem mesmo alguém para desprezar, caso quisesse. Sinceramente, não dava a mínima para o que acontecesse com os outros. Podiam todos cair mortos, que eu não ia me importar.

— Olha só, já estamos quase em casa — disse minha mãe. Ela acionou a seta.

Click-clock. Click-clock.

*

 

Acordei de mais um sonho estranhamente vívido do passado distante.

Bom, talvez três anos atrás não fosse tão "distante" assim, mas ainda assim.

— Aaaai... — gemi.

Ótimo. Minha cabeça também estava me matando. Definitivamente não tinha sido um sonho agradável, mas, para ser justo, eu também não tinha muitas lembranças boas dos meus dias no ensino fundamental. Especialmente daquela época, no oitavo ano — facilmente o período mais sombrio e deprimente da minha vida até agora. Ainda conseguia sentir o gosto do desprezo e da frustração que experimentei no sonho.

Na esperança de tirar aquele gosto ruim da boca, me levantei de um pulo da cama e pousei os pés descalços no carpete, pronto para ir lavar o rosto. Tínhamos passado a noite em um hotel, e a Akira estava no quarto ao lado do meu. Peguei meu relógio de pulso e conferi as horas: eram 8h da manhã. Ela deveria estar acordando a qualquer momento. Caminhei até a janela e abri as cortinas. A luz invadiu o quarto, revelando o modesto horizonte de Aomori.

Já fazia três dias desde que saímos do Túnel Seikan. Depois de atravessarmos o norte de Honshu em direção ao sul — dormindo em postos de gasolina e agências dos correios pelo caminho —, finalmente chegamos ao centro de Aomori, a primeira cidade grande desde que deixamos Hakodate.

Peguei a garrafa de água que havia deixado ao lado da cama e fui para o banheiro. Ainda vestido, desenrosquei a tampa da garrafa e a virei diagonalmente sobre a banheira. Devido ao timefreeze, a água começou a escorrer por um momento, depois congelou no ar, na altura da cintura.

Recolhi um pouco daquela água flutuante com as mãos e a joguei no rosto. Esse era o jeito mais prático que encontrei para me lavar, embora tenha levado um tempo para descobrir a distância e a técnica ideais para manter a água congelada fora da minha aura.

Aproveitei também para escovar os dentes, e logo saí do banheiro ao ouvir uma batida na porta. Passei os dedos pelos cabelos bagunçados para ajeitá-los e abri a porta, encontrando Akira, que viera me chamar.

— Vamos, Mugino — disse ela. — Vamos tomar café da manhã.

Desde o começo da nossa jornada, tínhamos feito todas as refeições juntos. Na maioria das vezes, era Akira quem me convidava. Pessoalmente, eu preferia comer sozinho, mas a companhia dela também não me incomodava.

— Claro, só um segundo — respondi.

Calcei meus tênis e saí do quarto, deixando a porta escancarada para não ficar trancado do lado de fora. Nenhum de nós tinha chave do quarto, e a entrada era por cartão, então provavelmente não conseguiríamos entrar de novo se a porta se fechasse. Como sempre, havíamos nos apossado de quartos que estavam destrancados logo após serem limpos pela equipe de limpeza.

Descemos pelas escadas de emergência externas até o primeiro andar e saímos pela recepção do hotel. Caminhamos sem rumo pelas ruas, procurando algum lugar decente para comer. Era um pouco irritante ter que desviar de pedestres novamente agora que estávamos numa área mais movimentada. Por isso, havíamos adotado o hábito de andar pelo meio da rua — afinal, não havia chance de sermos atropelados no momento.

Essa adaptação parecia menos uma solução esperta para a situação e mais um sinal de que nossa percepção da realidade estava lentamente ficando insensível ao absurdo. Me preocupava pensar em como conseguiríamos nos readaptar à vida normal caso o tempo voltasse a correr.

Por ora, caminhávamos por esse mundo suspenso, nossos passos sendo o único som. Era sinceramente empolgante pensar que tínhamos controle absoluto sobre esse mundo — como se fôssemos seus governantes, livres para fazer o que quiséssemos. Enquanto andávamos, Akira soltou um grande bocejo.

— Ainda com sono? — perguntei.

— É... talvez um pouco — respondeu ela, esfregando os olhos. — Você podia ter dormido mais, sabia? Não é como se estivéssemos com pressa.

— Pode acreditar que eu tentei. Mas não consegui dormir ontem à noite.

— Sério? Mas está tão quieto...

— Pois é. E é exatamente por isso que eu não consegui dormir.

— Ah, é mesmo... Você disse que fica ansiosa quando tá quieto demais, né?

— Exato. Então agora estou completamente privada de sono — reclamou Akira, esfregando os olhos com as palmas das mãos. — Argh, como eu sinto falta de um barulho de fundo...

Apesar de estar feliz por não estar na mesma situação que ela, não pude deixar de me sentir um pouco culpado por gostar tanto daquele silêncio que era uma tortura para Akira. Ao mesmo tempo, reforçava ainda mais a noção de como eu era um completo deslocado na sociedade normal. Queria poder fazer mais para ajudá-la a lidar com aquilo, mas tinha certeza de que a única solução verdadeira seria acabar de vez com o timefreeze.

*

 

Vimos uma cafeteria de uma rede nacional e decidimos tomar café ali. Ao entrar, fomos recebidos por uma vitrine irresistível de doces e lanches salgados. Peguei um sanduíche tostado e fui me sentar numa das mesas vazias. Ao passar pelo atendente do balcão, abaixei a cabeça em vergonha.

Pouco depois de sairmos do Túnel Seikan, nosso dinheiro acabou. E, a menos que conseguíssemos sacar dinheiro de alguma maneira, estaríamos sem um centavo até o fim da viagem. Embora me sentisse culpado por roubar, precisávamos comer para sobreviver, e não havia muito o que fazer quanto a isso.

Logo Akira apareceu, sentando-se à minha frente. Ela carregava uma bandeja lotada, com um sanduíche Milano, uma fatia de cheesecake e um chocolate quente. Não pude evitar encarar aquele banquete impressionante — um verdadeiro testemunho tanto da falta de vergonha quanto do apetite dela.

— Tá querendo dizer alguma coisa? — perguntou Akira, me lançando um olhar irritado.

De fato, havia várias coisas que eu queria dizer. Mas minha simpatia por ela naquela manhã — além da minha costumeira covardia — me fizeram desistir de repreendê-la pela ousadia.

— Só tô surpreso que você consegue comer tanto logo de manhã — comentei.

— Ah, cala a boca — retrucou ela, dando uma mordida enorme no sanduíche.

Observei de canto de olho as migalhas caindo da boca dela, enquanto rasgava a embalagem do meu sanduíche também.

*

 

Depois que terminamos de comer, começamos a nos preparar para a próxima etapa da viagem.  Deixamos Aomori para trás e seguimos rumo ao sul pela região de Tohoku, com a cidade de Morioka, na província de Iwate, como próximo destino.

Agora caminhávamos pela via expressa — um trajeto que normalmente seria impossível de se percorrer a pé, salvo em circunstâncias extraordinárias como as nossas. Seria um caminho um pouco mais longo até Morioka, mas, pelo mapa, dava para ver que seria o percurso menos cansativo em termos de elevação. E ainda assim...

— Quando essa maldita ladeira vai acabar, afinal? — resmungou Akira, com o suor pingando do queixo para o asfalto.

Desde que havíamos entrado na estrada expressa, era uma subida leve, mas constante. O ângulo era tão sutil que, parado, talvez nem se percebesse — mas caminhando por horas a fio, o esforço se fazia sentir. Minhas pernas já estavam prestes a ceder.

— Urgh... — gemi. Eu também estava coberto de suor; a parte de trás da minha camiseta estava completamente encharcada, o que já seria desconfortável sem uma mochila pesada nas costas. E como não soprava nem uma brisa, o calor parecia ainda pior do que realmente era. Eu estava mais do que pronto para fazer uma pausa, mas não via um bom lugar para descansar. Na verdade, já fazia mais de uma hora que só víamos asfalto sem fim.

— Eu-eu preciso fazer uma pausa... — disse Akira, se jogando no canteiro central. Seus ombros subiam e desciam enquanto ela tentava recuperar o fôlego. Não era o lugar ideal para parar, mas parecia que ela já havia decidido por nós. Agachei no chão, puxei uma garrafa de água da mochila, abri a tampa e bebi alguns goles do conteúdo morno.

— Ufa... — murmurei, afastando a garrafa dos lábios — só para ver Akira me lançando um olhar suplicante.

— Que foi? — perguntei.

— Nada — ela respondeu, virando o rosto emburrada. — Não se preocupe.

Para quem tinha acabado de me criticar por não dizer o que pensava, ela mesma estava sendo bem evasiva. Provavelmente queria bancar a durona, mas era fácil perceber que algo a incomodava — sua expressão era sempre muito óbvia. Dei outro gole na água para testar. E, como imaginei, vi que ela lançou mais um olhar furtivo, e nossos olhos se encontraram. Ela ficou paralisada por um instante, depois desviou o olhar rapidamente. Mas que diabos ela estava fazendo, me encarando daquele jeito? Foi ela quem quis parar para descansar — era de se esperar que quisesse beber um pouco também. A não ser que já tivesse acabado com a água dela.

— Tem certeza de que não quer se hidratar? — perguntei.

— Acabou minha água — respondeu.

— Sério? — perguntei, surpreso. Achei que ela ainda tivesse, já que lembrava de ter visto ela esvaziar apenas uma garrafa até agora.

— Água pesa demais. Tava tentando carregar o mínimo possível.

— Ah, entendi...

Ela não estava errada. Água pesa bastante e ocupa muito espaço na mochila. Eu mesmo já tinha pensado em reduzir o peso algumas vezes. Dava para entender perfeitamente como ela se sentia — e por que estava me lançando aqueles olhares.

— Foi mal, mas essa é minha última garrafa também... — falei.

— Eu nem te pedi nada! — retrucou Akira, fazendo bico. — Como se eu quisesse a sua água nojenta... Pode apostar que não... Consigo aguentar mais um pouco sem beber. Logo a gente acha algum posto de descanso.

— Sei não...

Algo me dizia que ainda levaríamos um bom tempo para encontrar um. Só víamos árvores por todos os lados, e não havia nenhuma placa indicando a distância até o próximo posto. E, sinceramente, não dava para deixá-la desmaiar de desidratação. Peguei a toalha mais limpa que tinha na mochila, limpei o bocal da garrafa e a estendi para ela.

— Tem certeza que não quer um gole? — insisti.

— Hã?! — ela se engasgou. — N-Nem pensar! Não preciso da sua água imunda... Deve estar cheia de saliva e tudo...

— Tá tranquilo. Limpei direitinho — respondi, sem me surpreender com o quanto ela se preocupava com essas coisas.

— Quer dizer que você não se importa que eu beba da sua água, Mugino?

— Não, tranquilo. Só não toma tudo.

— Tá bom, então. Vou aceitar — disse ela, pegando a garrafa de forma brusca.

Ela lançou um último olhar furtivo para mim antes de, hesitante, levar a garrafa à boca e tomar um gole generoso e longo. Ela devia estar morrendo de sede. Depois de beber quase metade da garrafa de uma só vez, soltou um suspiro aliviado. Então, virou-se para mim — e sua expressão mudou num instante para um misto de embaraço e irritação.

— Não fica me encarando enquanto eu bebo, seu pervertido.

— Ah, foi mal... Desculpa aí.

Akira fechou a tampa da garrafa e praticamente a enfiou no meu peito.

— E vê se limpa de novo também... Se eu te pegar lambendo a boca da garrafa, juro que te dou um tapa!

— Eu nem pensei nisso, poxa...

Para alguém que tinha acabado de ganhar água no momento de necessidade, ela definitivamente não parecia muito grata. Engoli o orgulho e apenas guardei a garrafa de volta na mochila sem dizer nada.

*

 

Quando achei que não conseguiria dar mais um passo sem desabar, finalmente vimos uma placa indicando que havia um posto de descanso logo à frente. Se conseguíssemos chegar lá, teríamos toda a água que quiséssemos. Akira e eu comemoramos como se tivéssemos encontrado um oásis no meio do deserto. Então, espremendo até a última gota de força dos músculos, seguimos em frente até alcançar o posto.

Cortamos o enorme estacionamento em linha reta até o prédio principal, onde havia uma loja de conveniência e uma pequena praça de alimentação, com estandes de taiyaki e sorvete.

— Meu Deus, eu tô morrendo de sede. Preciso de uma coca-cola pra ontem... — disse Akira, marchando direto para a seção de bebidas.

Eu também precisava reabastecer minha água, então a segui, peguei algumas garrafas da marca mais barata que encontrei e as enfiei na mochila. Agora que não precisava mais me preocupar com sede, pude focar na outra necessidade urgente: fome.

— Deveríamos descansar aqui por um tempo — sugeri.

Akira assentiu enquanto dava grandes goles em seu refrigerante.

— Uhum.

Ela não hesitou nem por um segundo em ir até a geladeira e abrir uma garrafa de refrigerante ali mesmo. Não que isso fosse novidade, mas reforçava a ideia de que ela não sentia absolutamente nenhuma culpa por não pagar pelas coisas. Sinceramente, isso me fazia questionar a educação que ela teve.

Para ser justo, era tudo uma questão de perspectiva. Nós dois estávamos roubando agora, então, do ponto de vista da loja de conveniência, eu não era melhor do que ela, só porque me sentia culpado. Ao mesmo tempo, não queria abrir mão de todos os meus princípios só porque sabia que não seríamos pegos.

— Desculpe, senhor... — murmurei para o atendente que mantinha um sorriso permanente, enquanto pegava um pacote de onigiri de salmão, um sanduíche e uma salsicha de peixe de uma prateleira próxima. Isso seria mais do que suficiente para um almoço reforçado.

Akira e eu seguimos para a praça de alimentação. Estávamos famintos e exaustos, sem energia nem para conversar enquanto comíamos; devoramos nossas refeições em silêncio. Assim que meu estômago ficou cheio até a borda, recostei-me languidamente na cadeira e soltei um grande bocejo. Estava tão satisfeito que sentia a sonolência se aproximando. Apoiei a cabeça na mão, tentando tirar um cochilo ali mesmo. No momento em que fechei os olhos, o sono me envolveu como um ladrão na calada da noite e—

— Mngah?!

Acordei assustado. Minha cabeça estava pesada, e eu não fazia ideia de que horas eram — mas parecia que eu realmente havia desmaiado ali mesmo. Levantei a cabeça da mesa e massageei o pescoço rígido.

Quanto tempo será que eu tinha dormido?

— Espera, hã?

Não vi Akira em lugar nenhum; talvez ela tivesse ido ao banheiro. Aliás, eu também estava começando a precisar, depois de tanta água que bebi antes de dormir. Levantei da cadeira e fui em direção aos banheiros externos. No caminho, avistei Akira agachada em um dos corredores da loja de conveniência. De onde eu estava, só conseguia ver seu perfil, mas seu rosto parecia um pouco tenso. Achei que talvez ela tivesse lembrado de algo que precisava pegar — mas, nesse instante, a vi esticar o braço, pegar algo da prateleira e enfiar rapidamente no bolso.

Foi um movimento tão rápido e ágil que só consegui ver por um instante o que ela pegou — mas tinha quase certeza de que era um pacote de pilhas. Sem saber como reagir naquele momento, fingi não ter visto e segui em direção ao banheiro. Akira nem pareceu notar minha presença enquanto eu saía.

Enquanto fazia minhas necessidades, não pude deixar de pensar que aquela destreza dela era coisa de alguém experiente em furtos.

Quando voltei para a praça de alimentação, Akira já estava sentada de novo em nossa mesa. Querendo confirmar se o que ela tinha roubado eram mesmo pilhas, andei casualmente pelo corredor onde a vi agachada. Havia ali uma seleção de isqueiros, canetas de lembrancinha e — como eu suspeitava — pilhas. Meus olhos não haviam me enganado.

Eu até conseguia aceitar, a muito custo, furtar comida ou produtos de higiene necessários para manter a dignidade, considerando que não tínhamos escolha. Mas pilhas não eram uma necessidade, especialmente na nossa situação. Eu precisava dar uma bronca séria nela.

— Ei.

Me assustei com a voz de Akira e me virei para vê-la me encarando desconfiada da praça de alimentação.

— S-Sim? O que foi? — perguntei.

— Onde é que você se meteu?

— Só fui ao banheiro.

— Ah, é? Demorou.

— N-Não sei o que te dizer...

Tentei disfarçar o constrangimento com um sorriso forçado. Akira jogou a mochila nos ombros e se levantou da cadeira.

— Já descansamos o suficiente. Vamos seguir em frente.

— Ce-certo. Ok.

Adeus, bronca séria. Ela não me deu nem tempo para criar coragem. Bem, não precisava ser agora. Eu poderia achar um momento melhor enquanto caminhássemos.

Só que, mesmo depois de sairmos dali, eu continuei adiando. Toda vez que tentava abordar o assunto, as palavras morriam na minha garganta. Eu realmente não era bom em conversas difíceis. Já tinham me repreendido muitas vezes na vida, mas eu quase nunca estive do outro lado da situação.

A única vantagem da minha terrível indecisão era que o tempo parecia passar muito mais rápido. Quando percebi, já passava das sete da noite, e estávamos descendo de um viaduto para uma área mais central. Havíamos visto de longe uma lanchonete decente e decidido que passaríamos a noite por ali. Se tivéssemos qualquer energia sobrando, talvez procurássemos um banho público ou uma pousada tradicional, mas hoje, estávamos exaustos demais.

Entramos no restaurante e larguei minha mochila em uma mesa vazia. Felizmente, o local estava quase vazio, com espaço de sobra para me esticar em um dos sofás encostados na parede.

— Mugino — chamou Akira com a boca cheia. Olhei para ela e vi que já estava devorando uma caixa de nuggets de frango. — Tem um restaurante de sushi por este bairro. Vamos comer lá.

— Sushi...? — repeti, meio em choque.

— É. Sei lá, me deu vontade. E acho que um restaurante de esteira é o ideal pra gente — já que sempre tem um monte de pratos frescos passando na nossa frente, né? Tudo bem que a qualidade é bem inferior a um sushi de verdade, mas...

Com um ar satisfeito, ela estufou o peito e enfiou mais um nugget na boca. Uma mistura de ansiedade e irritação tomou conta de mim. Akira estava começando a tratar o roubo como se fosse algo trivial.

Se continuasse assim, logo ela poderia mirar em coisas muito mais valiosas do que pilhas ou comida de fast-food. Se eu não a advertisse agora, talvez depois fosse tarde demais.

— Escuta, hum... Iguma-san?

— Hm? — Akira murmurou, inclinando a cabeça enquanto lambia a gordura dos dedos. Na mesma hora, o nervosismo me tomou. Mas, agora que já estávamos nos chamando pelos sobrenomes de forma mais amigável, sabia que ela provavelmente me via como um igual e ouviria o que eu tinha a dizer. Não podia voltar atrás agora. Precisava tentar agir naturalmente e chamar sua atenção de forma sutil.

— Eu realmente acho que não deveríamos ficar fazendo esse tipo de coisa...

Akira parou de lamber os dedos e me olhou, surpresa.

— Perdão, que tipo de coisa?

— Bem, tipo... Só parece meio indulgente demais, sabe? Se empanturrar de sushi e tal, sendo que isso é mais um luxo.

— Luxo? — O rosto dela ficou sério por um instante, depois franziu a testa defensivamente. — E o que você sugere? Que a gente só coma aquelas marmitas baratas de lojas de conveniência e supermercados toda santa refeição? Eu realmente não vejo por que temos que ser tão rígidos com essas coisas — especialmente nas circunstâncias em que estamos. Já estamos nos virando como dá.

— Sim, mas nós não temos dinheiro para pagar por isso... Só porque o tempo parou não significa que podemos fazer o que bem quisermos. Temos que ter um pouco de moderação. Tudo com equilíbrio, sabe?

— Eu duvido muito que alguém com meio cérebro fosse nos culpar por comer algo melhorzinho de vez em quando.

— Ah é? E o que você diz sobre o que roubou na parada de descanso? Acha que ninguém teria problema com isso também?

— Hã? Do que você tá falando?

— Você tá com umas pilhas no bolso, não tá? — perguntei, com cautela. Os olhos da Akira se arregalaram, depois ela desviou o olhar e estalou a língua com desgosto.

— Então você tava me espionando, é isso? — resmungou, amargurada.

— Só passei por acaso.

Pelo visto, ela sabia que aquilo era algo de que deveria se envergonhar. Passou a mão com força pelo cabelo, frustrada.

— Caramba, você é um pé no saco — disse ela. — Para de querer me dar sermão por qualquer coisinha. Você não é minha mãe, tá?

— Desculpa, mas é meio difícil ignorar quando você simplesmente furta na minha frente — retruquei —, e Akira arregalou os olhos ao ouvir a palavra "furtar".

— Ei, não fala de mim como se eu fosse uma criminosa! Isso nem conta como... como... furto... — disse ela, mas sua voz foi sumindo à medida que percebia que seu argumento não se sustentava.

— E pra que você precisa dessas pilhas, afinal? — perguntei. — Não é como se a gente precisasse mais das lanternas…

— Pra carregar meu celular — respondeu ela, carrancuda. — Tenho um carregador portátil que funciona com pilhas, e é pequeno o suficiente pra caber no bolso. Funciona mesmo com o tempo congelado.

Interessante. Eu não sabia disso.

Mas mesmo com o celular funcionando, ela ainda não conseguiria sinal agora, então fiquei me perguntando para que raios ela estava usando o telefone. Não era importante no momento — não era esse o ponto da discussão.

— Você realmente não devia pegar coisas de que não precisa.

— Ah, qual é... São só algumas pilhas.

— Isso não é desculpa — disse com firmeza —, e Akira mordeu o lábio, hesitando.

Eu nem era do tipo com um senso de moral particularmente forte. Na maior parte da minha vida, minha estratégia para lidar com conflitos tinha sido simplesmente evitá-los. Mas não podia fechar os olhos para isso, não quando a Akira claramente não percebia o quão perigoso esse caminho poderia ser.

— Tinha uma livraria de bairro onde eu morava — comecei, nostálgico. — Era tocada por um velhinho corcunda, que era dono e único funcionário. Eu vivia lá quando era criança. A seleção de livros nem era grande coisa, mas eu amava o cheiro de papel velho e o ambiente tranquilo.

— Que diabos isso tem a ver...? — resmungou Akira.

— O velho acabou fechando a livraria. Perdeu dinheiro demais por causa de furtos — continuei, e vi a bochecha da Akira tremer. — Uns moleques da escola local começaram a ir lá pegar coisas de graça... Sabiam que o velho tinha problema na perna e que não podia contratar ninguém pra ajudar. Então, quando eles invadiam, não tinha muito o que ele pudesse fazer.

Observei enquanto Akira parecia ficar cada vez mais desconfortável.

— E como era uma livraria independente, o prejuízo de cada volume de mangá roubado saía diretamente do bolso dele. Claro, lojas de conveniência e supermercados também têm que pagar pelo que vendem — mesmo grandes redes sofrem com perdas. Mas ouvi dizer que mesmo essas acabam fechando por causa de roubos, especialmente em lugares onde o movimento é menor…

— Então, o que eu quero dizer é: mesmo que precisemos roubar comida e água para sobreviver, devíamos limitar isso ao absolutamente necessário, porque não podemos…

— Ah, cala essa boca de uma vez! — Akira gritou, me lançando um olhar mortal. Ela finalmente perdeu a paciência.

— Quem é você pra ficar me dando sermão sobre isso?! Além do mais, você fala, fala, sobre como roubar vai prejudicar os outros, mas isso só acontece se o tempo voltar a andar! Se tudo continuar congelado para sempre, que diferença vai fazer o que eu fizer?! Não vai ter prejuízo pra ninguém! Nem pra eles, nem pra você!

— Bom... tecnicamente, nesse caso seria outra história.

Se o tempo continuasse parado para sempre... Era algo em que eu vinha pensando há algum tempo, mas evitava comentar por medo de perder a vontade de seguir em frente. Por mais que eu gostasse do silêncio e da solidão, era um cenário desesperador que eu evitava até imaginar. E Akira jogou essa possibilidade no ar, sem mais nem menos, só para justificar seus atos.

Fiquei em silêncio, sem saber o que dizer para fazê-la mudar de ideia. Akira também não parecia achar que tinha vencido a discussão; ela mordeu o lábio e olhou para o chão. Provavelmente, estava sentindo o peso das palavras que acabara de usar.

— Me deixa em paz, tá? — disse, e saiu do restaurante.

Eu não achava que tinha falado nada demais, mas ainda assim me senti mal — aquela culpa parecida com a que você sente depois de ter que explicar a uma criança exatamente o que ela fez de errado. Não pude evitar pensar, em retrospecto, se não teria havido uma maneira melhor de dizer aquilo tudo.

*

 

Passaram-se três horas até que Akira voltasse ao restaurante. Pra ser sincero, nem sabia se ela realmente voltaria, mesmo tendo deixado as coisas dela ali.

— Então, é... — comecei, sabendo que precisávamos conversar.

Eu ainda não pretendia passar a mão na cabeça dela, mas também reconhecia que poderia ter lidado melhor com a situação. E, no fim das contas, ela tinha um ponto: viver só de comida processada de mercado seria cansativo — além de prejudicial para nossa saúde e moral.

Por isso, meu plano era sugerir que, a cada poucos dias, a gente pudesse se permitir uma refeição mais caprichada. Esperava que ela aceitasse esse meio-termo, pois parecia a solução mais razoável para nós dois.

— Vai pro inferno.

Infelizmente, ela não parecia nem disposta a me encontrar para uma conversa. Na verdade, ela nem sequer olhou para mim ao atravessar a sala e se deitar nos bancos encostados na parede oposta, usando a mochila como um travesseiro improvisado. Algo me dizia que ela não estava nem um pouco disposta a ouvir o que eu tivesse para dizer naquele momento, então achei melhor desistir por aquela noite e tentar falar com ela de novo quando seu humor melhorasse.

*

 

Depois de acordarmos — e mesmo depois de deixarmos a lanchonete —, Akira continuou completamente fechada para mim. Sempre que eu tentava puxar assunto, ela me ignorava ou respondia de forma fria, com alguma palavra indiferente. Ela também deixou de fazer suas costumeiras exigências para que eu sugerisse temas de conversa, o que resultou em nós dois quase não falando nada.

Embora eu gostasse de paz e silêncio, detestava silêncios constrangedores tanto quanto qualquer outra pessoa. E, naquele momento, o comportamento frio de Akira era tão sufocante que parecia apertar meu peito como um torno. Minha ansiedade foi se transformando lentamente em ressentimento. No final das contas, o que eu tinha feito para merecer esse desprezo? Ela é que estava errada. Tudo o que eu disse era verdade, e nem sequer tinha sido duro com ela. Se ela fosse agir assim toda vez que tivéssemos uma pequena discordância, então eu realmente não queria mais me envolver.

Então, desisti de tentar resolver as coisas com Akira e apenas segui em frente, um passo de cada vez, em silêncio. O céu do sul parecia nublado — como se previsse a discórdia entre nós e tivesse se vestido de cinza para combinar.

*

 

Já fazia dois dias desde que Akira e eu paramos de nos falar.

— Cara, que frio — resmunguei.

Tínhamos acabado de sair de um drive-in onde passamos a noite e agora estávamos atravessando um desfiladeiro coberto por uma floresta densa. Pouco depois, senti uma umidade repentina no rosto. Levei a mão para enxugar — e encontrei gotas de água na pele.

— Está chovendo? — murmurei em voz alta.

O céu estava tão carregado de nuvens que parecia noite, mesmo sendo onze da manhã. Para testar, estendi a mão e esperei para ver se mais gotas cairiam.

...Espera, o que eu tô fazendo? Não deveria chover durante a paralisação do tempo, certo?

— Hã? — Akira murmurou. Então, como se estivesse me imitando, levantou a mão e tocou o rosto, olhando em seguida para a palma.

Espere um pouco.

Olhei para o chão — ele estava um pouco úmido, embora eu não tivesse notado antes, já que o asfalto era preto. E, olhando mais à frente, vi que tudo estava envolto em uma névoa espessa. Pequenas poças de condensação também se formavam nas bordas da estrada.

— Cuidado — avisei Akira. — Está chovendo.

— Hã? — ela respondeu, me lançando um olhar como se eu tivesse perdido a cabeça. E embora minha frase realmente pudesse soar estranha, o olhar dela parecia ainda mais selvagem e implacável do que antes — talvez as olheiras sob seus olhos também tivessem algo a ver com isso. Talvez ela não estivesse dormindo direito de novo. Se fosse o caso, me perguntei se era apenas estresse causado pela paralisação do tempo... ou se eu também tinha parte nisso. Vai saber — talvez fossem ambos.

— Er, desculpa — disse. — Como eu explico...? Não está chovendo de verdade agora, mas a chuva que caía quando o tempo parou ficou suspensa no ar. Então, se a gente continuar, provavelmente vai ter que lidar com isso por um tempo.

— Certo — respondeu Akira, parecendo entender.

Mas e agora? O que deveríamos fazer? Nenhum de nós tinha guarda-chuva. E, mesmo se tivéssemos, será que adiantaria contra bilhões de gotículas paradas no espaço? Talvez uma capa de chuva ajudasse, mas mesmo assim...

Enquanto eu pensava nas opções, Akira simplesmente começou a andar estrada abaixo, sem se importar.

— Espera, você vai mesmo assim? Vai acabar toda molhada!

— Pff. Um pouquinho de chuva nunca matou ninguém.

— Não acho que vá ser só um pouquinho...

Pensei melhor. Já fazia mais de uma hora que não víamos nenhuma casa; voltar agora nos faria perder tempo e energia. Além disso, havia uma chance de que essa chuva fosse apenas um trecho breve, então talvez o melhor fosse seguir em frente, como Akira parecia querer. Corri para alcançá-la, e nós dois seguimos lado a lado em direção à tempestade imóvel.

Infelizmente, meu otimismo provou-se infundado.

À medida que avançávamos, a densidade da chuva só aumentava. Sem ter como evitar ou nos proteger, só nos restava aceitar. Nossas roupas encharcaram rapidamente, drenando tanto nosso calor corporal quanto nossa resistência. Dentro dos meus sapatos, a água fazia um barulho incômodo a cada passo — uma sensação horrível que eu não desejava nem para meu pior inimigo. Cada passo parecia afundar o pé em uma poça de lama.

— Urgh, droga... — resmungou Akira, irritada, afastando as gotas do rosto como se batesse em moscas. Ela puxou as franjas molhadas para trás das orelhas, e vi que seus lábios estavam pálidos — o que não era surpresa. Já estávamos no período frio do ano, e, com a chuva, tudo ficava ainda pior.

— Você tá bem? — perguntei.

— Por que diabos eu não estaria— ATCHIM! — Akira soltou um espirro enorme, daqueles dignos de cena cômica. Todo seu corpo estremeceu, e ela puxou o nariz fungando de volta o rastro de catarro. Sem dúvida, ela estava sentindo o frio.

— Não precisa bancar a durona se estiver sofrendo, sabia?

— Quem disse que eu tô?!

— Eu. Porque é óbvio. Olha pra você — tá tremendo feito vara verde. E eu não posso deixar você ficar doente ou se machucar.

— Ngh...

Se olhares matassem, os que Akira me lançou certamente teriam acabado comigo. Normalmente, eu teria recuado diante de uma expressão tão ameaçadora — mas, naquele momento, tudo o que senti foi pena. Vê-la completamente encharcada, com os dentes batendo de frio, tornava óbvio o quanto ela estava se forçando para manter uma aparência forte. Às vezes, seu nível de teimosia era simplesmente deprimente.

— Você não pode simplesmente forçar a barra — eu disse. — Só vai acabar se machucando.

— E o que você sugere que a gente faça? — perguntou Akira, sua voz tremendo, provavelmente de uma mistura de fúria e frio. Ela me lançou um olhar fulminante e continuou. — Não é como se essa chuva fosse parar se a gente decidisse voltar. E também não dá pra saber o quanto teríamos que desviar para contornar isso... Que outra opção a gente tem além de seguir em frente? Ou o quê — você tem alguma ideia genial para manter a gente seco?

— Na verdade, tenho sim — respondi sem hesitar. — Eu vou na frente e sirvo de escudo contra a chuva. Você vem logo atrás de mim. Assim, não vai ter que enfrentar o pior da tempestade.

O rosto de Akira congelou, sua boca entreaberta em choque.

Será que ela realmente não tinha pensado nisso até agora? E eu que achava que ela só estava orgulhosa demais pra me pedir pra tomar a dianteira.

Suspirei.

— Tudo bem, eu vou na frente — disse. — Me siga quando estiver pronta.

Eu sabia que continuar discutindo não levaria a lugar nenhum. Com certeza, Akira ainda tinha muita coisa pra dizer, mas, acima de tudo, precisávamos continuar andando. Eu queria sair logo daquela tempestade infernal.

Alguns momentos depois que comecei a caminhar, ouvi o som de passos pesados atrás de mim. Akira estava me seguindo em silêncio. Então, por algum motivo, ela apressou o passo. Fiquei me perguntando por que tanta pressa para me alcançar.

Senti um forte impacto através da mochila e fui empurrado para frente — caí de cara no asfalto. Uma dor aguda percorreu meus joelhos e palmas das mãos. Por um instante, achei que algum animal selvagem tivesse me atacado. Mas, ao olhar para trás, ainda ajoelhado no chão, só vi Akira. O que só podia significar uma coisa: ela mesma me empurrou.

Mas por quê?

— O q-que diabos você—?

— Não me trate como uma maldita criança!

A voz dela estourou nos meus ouvidos como um trovão. Quando levantei o olhar, vi que seu rosto, pálido de frio momentos atrás, agora estava completamente vermelho. Era como se todo o sangue tivesse subido à cabeça — tanto no sentido literal quanto no figurado.

— Você acha que eu sou uma idiota que não consegue se cuidar sozinha, não é?! — gritou Akira.

— O quê? Não, eu—!

— Acha sim! Eu vejo isso nos seus olhos!

Quase desviei o olhar por reflexo. Não era minha intenção menosprezar Akira — mas era verdade que eu só havia me oferecido para tomar a dianteira porque estava começando a sentir pena dela, e isso podia, sim, soar como se eu estivesse tratando-a como uma criança.

— Você acha que sabe de tudo, né? — continuou ela. — Só porque alguém começou a te tratar como um ser humano em vez de um completo esquisitão, você acha que é melhor do que todo mundo. Pois saiba que eu não gastaria nem um segundo com um fracassado deprimente como você, se não estivéssemos presos nessa situação agora.

Depois de despejar seu veneno, Akira levou a mão à testa, como se estivesse prestes a desmaiar.

— Droga... minha cabeça tá me matando...

— Você tá bem? — perguntei, me levantando.

— Não, fica longe! — disse Akira, estendendo a mão como para me afastar. — Você só tá fingindo que se importa, mas na verdade se acha melhor e mais inteligente do que eu. Eu vejo através de você, moleque. Deus, como você me irrita... Qual é o seu maldito problema? — Ela rangeu os dentes de frustração e passou a manga encharcada do casaco no rosto. — Fazendo de conta que isso tudo nem é culpa sua...

— Espera, hã...?

— Você mesmo disse — tudo aquilo que ele te contou antes de morrer. Aposto que ele passou a "maldição", ou seja lá o que for, pra você, como parte da linhagem de sangue. Não me venha dizer que não faz todo sentido ser você quem causou isso. Vai lá — tenta me dizer que eu tô errada.

Tudo culpa minha. Eu nunca tinha pensado nisso dessa forma; era uma possibilidade que meu subconsciente rejeitava por completo. Afinal, não é como se eu tivesse o poder de parar o tempo deliberadamente... Ainda assim, as palavras de Akira ressoaram fundo no meu peito. Seria porque me lembravam de outra coisa? Não, impossível. Era meu primeiro timefreeze. Eu nunca tinha vivido algo assim... Ou será que já? Eu podia afirmar com certeza que era a primeira vez?

— E então? — exigiu Akira. — Fala alguma coisa, vai.

Levantei a cabeça num sobressalto. O rosto dela estava colado no meu.

— Q-Quê? Fica longe...! — falei, me afastando, pego totalmente de surpresa pela proximidade. Akira apenas deu uma risadinha de desdém.

— Ha — disse ela. — Que medrosinho patético.

Isso eu não podia deixar passar. Ela já vinha falando demais, zombando descaradamente de mim só porque achava que eu não ia reagir. Eu me considerava uma pessoa calma e racional, mas não tão passiva a ponto de aceitar abuso verbal gratuito.

— Já deu dessa pose de durona, né?

— Ah, qual é? Não é "pose", moleque. Essa sou eu de verdade.

— Ah, para. Você tá cheia de conversa. No fundo, é você quem tá morrendo de medo.

Os olhos de Akira quase saltaram das órbitas.

— Como é que é?!

— Porque, se eu não me engano... — engoli em seco — quem desabou chorando no túnel foi você, não eu. Tô errado?

Um brilho de fúria e traição cruzou os olhos dela — e então veio um sonoro TAPA. Pequenos pontos de luz brilharam na minha visão. Demorei alguns segundos pra perceber que Akira acabara de me dar um tapa na cara. Foi tão repentino que o choque superou tanto a dor quanto a força do golpe. Fiquei ali parado, com a mente em branco e a boca entreaberta como um idiota. Akira me encarava com os olhos marejados e os lábios trêmulos.

— Muito bem — disse ela. — Vou pra Tóquio sozinha. Não me siga.

Fiquei parado, atônito, enquanto ela passava por mim e marchava estrada abaixo com passos longos e indignados.

— Ah…

Tentei chamá-la, mas a voz não saiu. O arrependimento se acumulou no fundo do meu estômago, subiu até o diafragma e apertou meus pulmões, sufocando minha voz. Eu era impotente para fazer qualquer coisa além de observar sua silhueta desaparecer lentamente do outro lado da colina — e foi só então que soltei um grande suspiro, como se alguém finalmente tivesse tirado a rolha da minha boca.

— Droga…

O que diabos eu estava fazendo? Eu sabia melhor do que ninguém o quão humilhante era ser ridicularizado por um medo que carregava como um complexo, então por que eu tinha feito aquilo com ela? Eu precisava correr atrás dela e pedir desculpas imediatamente — mas não conseguia. Minhas pernas pareciam enraizadas no chão. Minha mente sabia exatamente o que eu precisava fazer, mas meu coração ainda hesitava, oscilando com a incerteza emocional.

Era óbvio que Akira devia estar furiosa comigo agora. E quem sabia se ela me perdoaria, mesmo que eu me desculpasse com todas as minhas forças?

Sem saber o que fazer, abaixei a cabeça e apenas observei a chuva pingar da minha franja encharcada e caída sobre o rosto. Estava mais frio do que o normal — e, ainda assim, eu tinha certeza de que Akira pretendia seguir obstinadamente para o sul, rumo a Tóquio, com pernas trêmulas.

Pensando bem, o que ela planejava fazer quando chegasse lá? Eu nunca havia contado para ela o endereço do meu tio, então mesmo que ela conseguisse completar toda a viagem sozinha, inevitavelmente acabaria batendo em uma parede. Não sabia se ela apenas esperava que as coisas se resolvessem de algum jeito ou se simplesmente não tinha pensado tão longe. De qualquer forma, ela claramente estava agindo mais por impulso e emoção do que por razão. E eu era, em parte, responsável por isso. Eu precisava tentar esclarecer as coisas, mesmo que ela não estivesse disposta a ouvir.

Passei uma mão pelos cabelos molhados para trás, como se simbolizasse minha renovada determinação, e comecei a correr pela estrada. Felizmente, depois do topo da colina, o caminho seguia em linha reta e em declive, então consegui alcançá-la rapidamente. Ainda sem coragem de encará-la nos olhos, parei a alguns passos de distância.

— Ei, hum... foi mal — disse. — Eu realmente não deveria ter dito aquilo.

Silêncio.

— Foi totalmente desnecessário — continuei. — Foi extremamente imaturo da minha parte fazer pouco caso dos seus sentimentos num momento tão vulnerável. E... eu sinto muito de verdade.

Ainda nada.

— De qualquer forma, hum... pelo menos deixa eu te proteger da chuva, tá?

Dito isso, contornei Akira e comecei a abrir caminho pela chuva à frente dela. Mas Akira não disse uma única palavra. Em vez disso, apenas se desviou para fora da trilha que eu havia aberto para ela.

A mensagem era clara: Não perca seu tempo. Não quero a sua piedade.

Por um momento, considerei insistir ou ao menos propor que trocássemos de tempos em tempos, mas sabia que discutir só nos desgastaria ainda mais. Então engoli o suspiro de decepção e continuei andando — tentando convencer a mim mesmo de que aquele tratamento frio era melhor do que ser empurrado no asfalto de novo.

*

 

O ar estava mais pesado do que nunca, e a chuva gelava até os ossos. A jornada parecia ainda mais exaustiva do que atravessar o Túnel Seikan.

Tentei puxar conversa com Akira mais algumas vezes depois disso, mas ela se recusava até mesmo a reconhecer minha existência. Nossa situação não melhorava nem um pouco, e a chuva também não dava sinal de que fosse parar. Na verdade, parecia que o aguaceiro só piorava conforme avançávamos. Ainda assim, continuávamos nossa marcha sem descanso, completamente exaustos, de corpo e mente, encharcados até a alma.

Eu torcia para sairmos daquela área chuvosa antes do fim do dia, mas essa possibilidade parecia cada vez mais distante. Se não encontrássemos logo um abrigo, só tornaríamos o resto da viagem ainda mais difícil para nós mesmos.

Olhei ao redor. Já havíamos descido a serra e agora atravessávamos uma planície aberta. À direita, apenas mais montanhas. À esquerda, campos de arroz recém-colhidos que se estendiam até onde a vista alcançava, sem edifícios, exceto por uma ou outra estufa de plástico ou celeiro. Mas não estávamos em condições de escolher, então talvez fosse uma boa ideia tentar arrombar um desses celeiros e ver se encontrávamos guarda-chuvas ou capas de chuva.

Foi então que percebi o quão silencioso tudo estava. Não que isso fosse estranho, considerando que estávamos no tempo congelado — mas havia um som específico que eu estava acostumado a ouvir e que agora estava ausente: passos.

Girei nos calcanhares. E, claro, Akira não estava mais caminhando atrás de mim. Ela estava caída na estrada, desabada como um boneco de trapo.

— Droga! — Corri de volta até onde ela estava e me ajoelhei ao seu lado.

— H-Hey, você tá bem? O que aconteceu? — perguntei. Akira levantou levemente a cabeça, ainda curvada sobre si mesma — mas assim que vi seu rosto, recuei em choque. Seus olhos estavam completamente desfocados, e seus lábios tinham um tom arroxeado. Sinais claros de má circulação sanguínea — eu sabia que isso era um sintoma chamado cianose.

— Eu tô bem... — murmurou. — Não se preocupa comigo…

Essas foram as primeiras palavras que me dirigiu em horas, mas não acreditei nem por um segundo. Ela definitivamente não estava bem. Quando tentou se levantar sobre as pernas bambas, tentei impedi-la — mas nem foi preciso. Akira caiu de novo, seu corpo desabando no asfalto encharcado como um boneco de pano, os cabelos molhados espalhando-se como um esfregão dourado.

— I-Iguma-san! — gritei.

Nenhuma resposta. Pela expressão dela, percebi que havia desmaiado por completo. Droga. Isso não era nada bom. Mas o que eu podia fazer? Não era como se eu pudesse simplesmente chamar uma ambulância. E mesmo se a levasse para um hospital... quem, exatamente, iria atendê-la? Não havia ninguém além de mim.

Eu teria que dar um jeito sozinho.

Eu sabia que não podia deixá-la ali, deitada no asfalto frio e molhado — isso só drenaria ainda mais o pouco calor corporal que lhe restava. Precisava secá-la e levá-la para uma cama quente e limpa, para que seu sistema imunológico começasse a se recuperar.

Mas ela não tinha condições de se mover, nem mesmo com ajuda.

O que significava que só havia uma coisa a fazer.

Não havia tempo a perder — e, por isso, não hesitei. Girei minha mochila para frente do peito, me agachei ao lado dela e me preparei. Sabia que, se parasse para pensar, meu coração bateria ainda mais forte do que já estava, e eu sentia o suor frio escorrendo pela minha cabeça. Aquela velha sensação de desconforto visceral subiu pela minha espinha como bilhões de pequenas aranhas — mas sacudi os pensamentos intrusivos para longe.

Não pense. Só vai!

— Hrnnngh...!

Em apenas um suspiro, ergui Akira nas costas, puxando seus braços por cima dos meus ombros enquanto me levantava. Cerrei os dentes, fazendo tudo o que podia para não me desligar da realidade enquanto mancava pela estrada em busca de abrigo.

Droga... Droga, droga...

Era ainda mais brutal do que eu jamais poderia ter imaginado. Minha própria humanidade foi colocada à prova, enquanto cada fibra do meu ser gritava para que eu simplesmente a largasse ali e a deixasse morrer. Não era nada contra Akira; eu teria a mesma reação não importasse quem estivesse carregando nas costas. Mas reconhecer que era uma reação involuntária não tornava mais fácil resistir ao impulso, especialmente quando parecia que meus músculos das pernas estavam prestes a se romper como elásticos. Isso já era esperado, considerando que eu carregava o peso de outro ser humano, além de duas mochilas pesadas, sobre os ombros.

Então, sim — em uma palavra, era brutal.

"Qual é o problema de ser tocado? Não vejo nada demais nisso."

Enquanto lutava contra o peso de Akira e meu próprio tormento mental, ouvi uma voz dentro da minha cabeça, confrontando-me com a mesma pergunta que já me haviam feito tantas vezes ao longo da vida. Mas não havia uma resposta simples que eu pudesse dar para tornar minha condição mais fácil de entender. Algumas coisas simplesmente eram gatilhos para certas pessoas e não para outras — não havia uma razão mais profunda além disso. Certamente todo mundo tinha uma ou duas coisas que o deixavam extremamente desconfortável, coisas que jamais consentiriam sob qualquer circunstância. Quem dizia o contrário provavelmente só não sabia quais eram, talvez porque ainda não tivesse passado por essas situações. E se tivesse muita sorte, talvez passasse a vida inteira sem jamais descobrir.

Esses eram os que eu mais invejava.

"Ah, deixa de frescura. Não vai te matar nem nada."

Sim, essa também era uma frase que eu já ouvira muitas vezes. Imagine, se puder, segurar uma lagarta grande e peluda na palma da mão. Para mim, tocar outra pessoa causava o mesmo desconforto visceral e a mesma angústia emocional que você sentiria se tivesse de apertar o punho e esmagar aquele pequeno inseto. Ou, se preferir um exemplo que não envolva tirar a vida de uma criatura, substitua a lagarta por um cadáver de roedor. De qualquer forma, o ponto era o mesmo: era uma resposta puramente involuntária, sem base em razão ou lógica.

— Huff... huff...

Uma grande gota de suor escorreu pela minha testa. Eu sentia Akira escorregando pelas minhas costas, então a impulsionei para cima para reajustar minha pegada — mas o impacto de mudar o peso fez com que eu torcesse o tornozelo e caísse de cara no chão.

— Aii... Droga, merda...

Felizmente, consegui me preparar a tempo, então só sofri alguns arranhões nos joelhos e cotovelos. Akira também continuava firme nas minhas costas. Mesmo assim, foi preciso reunir cada grama da minha força de vontade para me levantar e seguir em frente, em vez de sucumbir ali mesmo à dor e ao cansaço.

Minha mente estava completamente nublada. Não fazia ideia de quanto tempo eu já vinha caminhando — poderiam ser apenas alguns minutos, por tudo o que eu sabia. Se não encontrássemos logo um lugar para descansar, eu não fazia ideia do que faríamos. Deveríamos ter nos preparado melhor para a chuva antes de vir para cá. Ou, no mínimo, deveríamos ter feito pausas regulares para nos secar. Pensando bem, Akira já parecia meio doente antes mesmo de correr para debaixo da tempestade.

Cara, nós realmente deveríamos ter conversado antes... E embora eu soubesse que a retrospectiva era sempre perfeita, não conseguia evitar de pensar em tudo o que poderíamos ter feito de maneira diferente.

— Ah, olha só.

Logo adiante na estrada, avistei uma velha casa de madeira — aparentemente ainda habitada. Foi um alívio para meus olhos cansados, mas também me encheu de uma estranha sensação de apreensão. Até então, em nossa jornada, nunca tínhamos nos hospedado na casa de um estranho. Principalmente porque parecia antiético, mas também porque era quase impossível ocultar a intrusão em uma casa alheia sem ser extremamente meticuloso. No entanto, aquilo era uma emergência — não tínhamos outra escolha. Reuni o pouco de força que restava nas minhas pernas bambas e me empurrei em direção à casa.

*

 

Após invadir a propriedade, fiz uma pequena oração mental enquanto estendia a mão para a porta corrediça da frente — que, para minha sorte, abriu com um único puxão. Ufa, graças a Deus. No hall de entrada, avistei sapatos femininos e um par velho de chinelos terapêuticos, daqueles com bolinhas nas solas.

O lugar tinha aquele cheiro típico de "casa estranha", difícil de descrever, mas inconfundível. Coloquei Akira e as mochilas no hall, tirei o casaco e as meias encharcadas e entrei, procurando algum lugar para descansarmos. A cada pegada molhada que deixava no chão, uma nova pontada de culpa me atravessava — mas tudo o que eu podia fazer era prometer a mim mesmo que depois limparia tudo.

Ao entrar na sala de estar, vi que a TV estava ligada e um jornal aberto sobre a mesinha baixa de jantar. Mais adiante, vi uma senhora de cabelos grisalhos de costas para mim, aparentemente preparando algo para o almoço na cozinha. Embora pudéssemos descansar ali se fosse necessário, seria um tanto desconfortável fazer isso debaixo do nariz de alguém. Decidi, então, explorar o restante da casa.

Enquanto percorria os cômodos, passei por uma sala de estar tradicional japonesa. Pelo shoji entreaberto, vi um pequeno altar doméstico dedicado aos mortos e decidi espiar. No centro do altar havia um retrato de um senhor idoso, que presumi ser o falecido marido da senhora da cozinha. Se fosse o caso, então era razoável imaginar que a idosa vivia sozinha, o que significava que devia haver algum quarto livre na casa.

E, de fato, minha intuição estava certa. Logo no topo da escada do segundo andar, encontrei o que parecia ter sido um quarto infantil. Havia estantes repletas de mangás shoujo e vários romances de bolso, com diplomas de honra ao mérito pendurados nas paredes. O ambiente era um pouco escuro, devido à falta de luz natural, mas parecia muito bem conservado. Abri o armário embutido e encontrei um futon e um cobertor, que imediatamente estendi no chão para preparar uma cama para Akira.

Perfeito. Isso serviria muito bem.

Quando desci novamente até o saguão de entrada, encontrei Akira já acordada. Ela estava encolhida em posição fetal, tremendo levemente. Ao me ouvir se aproximar, levantou o olhar para mim com olhos semicerrados e sonolentos.

— Onde... estamos? — perguntou, com uma voz quase frágil demais para ser ouvida.

— Em segurança — respondi. — Encontrei, ahm... a casa de uma senhora aleatória.

— Seus braços...

— Hã?

— O que... aconteceu com seus braços?

Confuso, estendi os antebraços — e então soltei um pequeno suspiro de surpresa. Eles estavam cobertos de grandes vergões vermelhos até a parte interna dos cotovelos.

— Ah, droga. Eu estava me perguntando por que estava sentindo tanta coceira antes... É, foi mal. Isso acontece quando eu fico tocando outra pessoa por muito tempo — expliquei. — Vai desaparecer rapidinho, não se preocupe. Não é culpa sua. E você? Como está se sentindo? Acha que consegue ficar de pé? Preparei um futon lá em cima pra você. Você deveria deitar e se aquecer.

Sem forças nem para responder, Akira se levantou sem dizer uma palavra, apoiando as costas na parede para se equilibrar. Peguei nossas mochilas e segui na frente para mostrar o caminho, enquanto ela me seguia com passos lentos e trêmulos — suas roupas encharcadas deixando um rastro de poças pelo chão.

Quando chegamos ao quarto no topo da escada, mostrei o interior, deixei as mochilas no chão e me virei para ela da porta.

— Você deveria trocar de roupa primeiro — disse. — Seque-se e depois se enrole na cama pra descansar. Se não tiver toalha limpa, pode pegar uma na minha mochila.

Akira ficou parada por um momento, com um olhar perdido, mas então assentiu.

— Vou tentar encontrar algo pra gente comer — falei. — Volto já.

Saí do quarto e fechei a porta atrás de mim.

Imediatamente, toda a tensão de sobrevivência que me mantinha em estado de alerta se dissipou, e minhas forças escoaram das pernas, me fazendo desabar ali mesmo.

Ugh... estou tão cansado...

Sem conseguir sequer me recostar na parede, estendi-me deitado no chão do corredor. Estava tão exausto e desanimado que precisava fazer um esforço hercúleo só para lembrar de respirar. Sinceramente, parecia que essas últimas horas tinham roubado uns bons cinco anos da minha vida. Por mais que eu quisesse apenas apagar ali mesmo, sabia que também precisava me secar, ou acabaria pegando um resfriado.

Forcei meu corpo cansado a se erguer. Precisava de uma toalha... Mas, espera. Droga, deixei todas as minhas coisas no quarto. E não podia entrar lá agora, já que a Akira provavelmente ainda estava se trocando. Sem outra opção, desci devagar até o armário de roupas de cama, que tinha visto antes, para pegar uma toalha emprestada.

Depois de enxugar o rosto, fui até a sala de estar e então para a cozinha, onde um cheiro delicioso me atingiu. Espiei por cima do balcão e vi uma panela de sopa de missô com carne de porco fervendo no fogão. Uma nuvem de vapor pairava sobre o líquido borbulhante, indicando que havia sido recém-preparada.

Engoli em seco ao perceber que estava salivando.

Não podemos simplesmente roubar a comida caseira dessa senhora... Mas, por outro lado, passamos por um inferno hoje. E não podemos nos dar ao luxo de adoecer — precisamos preservar nossas forças.

Vamos considerar isso um mal necessário.

— Perdão, senhora — murmurei. — Espero que não se importe...

Peguei uma tigela em um armário próximo e, usando a concha que já estava na panela, servi uma porção generosa, pegando o máximo de carne que consegui. Depois peguei uma bandeja e o primeiro par de hashis que encontrei, e subi de volta ao quarto onde Akira descansava. Bati na porta.

— Pode entrar — respondeu ela, com voz fraca. — Já estou vestida.

Que estranho... Essa polidez repentina da Akira me preocupou mais do que qualquer outro sintoma que ela tivesse mostrado até então. Ao entrar no quarto, encontrei Akira enrolada como um burrito sob as cobertas, deixando apenas a testa para fora. Ajoelhei-me e coloquei a bandeja ao lado da cama.

— Achei uma sopa de missô com carne de porco lá embaixo, trouxe pra você, caso queira comer — disse. — Parece que a senhora que mora aqui estava preparando pro almoço, mas enfim...

— Tá bom... obrigada — murmurou Akira —, deslizando lentamente a cabeça para fora do cobertor. Vi que ela tinha vestido seu agasalho preto habitual. — Vou tentar comer depois.

— Beleza. Vou deixar aqui do lado. Como o tempo tá congelado lá fora, não vai esfriar tão cedo, então pode comer quando quiser.

Tive que me segurar para não fazer uma piada inoportuna sobre como o timefreeze às vezes tinha suas vantagens, enquanto Akira voltava a se esconder debaixo das cobertas.

É claro que uma tigela de sopa não seria suficiente para ela recuperar as forças, então me levantei para procurar mais comida pela casa. Mas antes, eu também precisava trocar de roupa; mesmo dentro de casa, estava congelando com essa camiseta molhada e a calça úmida. Fui até minha mochila e notei as roupas encharcadas da Akira jogadas no chão.

Achei que não haveria problema se ficassem amassadas por uma noite, mas, ainda assim, decidi dobrá-las para ela. Estendi a mão para pegar as roupas e comecei a desenrolar o emaranhado — e então minhas mãos pararam.

Sua roupa íntima estava no meio do bolo.

Imediatamente abandonei essa ideia e devolvi cuidadosamente o amontoado de roupas ao chão, tentando deixá-lo do jeito que estava. Peguei minhas roupas secas e saí do quarto em silêncio. No corredor, troquei de roupa e desci novamente para a sala de estar.

Precisava encontrar comida para nós — algo com valor nutricional de verdade, se possível. Mas não me sentia bem em continuar pegando coisas da casa dessa senhora. Talvez fosse melhor sair na chuva para procurar uma mercearia ou algo do tipo. Eu me lembrava de ter visto um guarda-chuva no hall de entrada, então não seria tão perigoso enfrentar a tempestade dessa vez.

Estava decidido — mas antes, eu precisava descansar um pouco, pois ainda me sentia totalmente esgotado. Peguei algumas almofadas empilhadas num canto da sala e as arrumei no chão para formar uma cama improvisada, bem vagabunda. Olhei no relógio: já eram 18h30. Decidi tirar um cochilo até às 19h e então sair.

*

 

Acordei de um salto e imediatamente soube que tinha dormido demais.  

Droga, eu realmente dormi de novo. Como isso continua acontecendo?  

Soltei um grande bocejo enquanto puxava meu relógio de pulso — e senti um arrepio percorrer minha espinha quando vi que horas eram. Caramba. Eu tinha dormido por mais de duas horas. Tomara que a Akira ainda esteja bem.  

Esfreguei os olhos para afastar o sono e fui até o corredor. Com a mente ainda meio confusa, fiz um caminho desnecessariamente longo até a escada. Subi para o segundo andar e bati na porta do quarto onde Akira estava descansando. Mas não houve resposta.  

— Iguma-san? — perguntei. — Tá tudo bem aí dentro?  

Talvez ela já tivesse desmaiado. Abri a porta bem devagar para dar uma olhada. E, de fato, Akira estava profundamente dormindo, e pude ver a tigela de sopa vazia ao lado de sua cama. Soltei um suspiro momentâneo de alívio — mas logo percebi que algo parecia errado. A respiração dela estava ofegante e irregular, e a coberta do futon subia e descia de forma errática com cada respiração. O rosto dela estava vermelho e coberto de suor. Pelos sintomas, eu supus que fosse apenas um resfriado, mas parecia ser um bem forte.  

Percebendo minha presença, Akira abriu um pouco os olhos.  

— Por que está tão frio aqui…? — reclamou, puxando as cobertas sobre a cabeça.  

Se ela estava reclamando do frio mesmo estando coberta até o pescoço, meu palpite estava certo. Mas se não fosse tratado, até um simples resfriado poderia se agravar para algo bem pior. Desci rapidamente e comecei a vasculhar o lugar inteiro em busca de qualquer medicamento para resfriado ou febre. Já nem me importava mais de estar me comportando como um ladrão comum. Se eu precisasse revirar cada cômodo para encontrar o remédio que a Akira precisava, que fosse.  

— Aha! Achei!  

Após muito tentar e errar, encontrei um remédio para resfriado de venda livre e um termômetro em uma das gavetas abaixo da estante da TV. Peguei os dois e subi correndo. Quando medi a temperatura de Akira, ela estava com febre de mais de 38°C, então dei a ela um copo de água e o remédio, que ela tomou obedientemente antes de cair novamente na cama.  

— Tem algo que eu possa trazer para você? — perguntei. — Alguma comida de que esteja com vontade ou algo assim…?  

Akira balançou a cabeça sobre o travesseiro. Aparentemente, ela não estava com muita fome, apesar de ter comido apenas uma tigela de sopa. Ela definitivamente precisava de mais nutrientes se quisesse melhorar logo. E logo íamos ficar sem água também. Esvaziei o conteúdo da minha mochila e coloquei-a sobre o ombro.  

— Ok — falei. — Eu vou sair um pouco. Preciso tentar achar um supermercado ou algo assim.  

— Desculpa por tudo isso — disse Akira, com a voz fraca e cansada. Fiquei parado por um momento.  

Akira e eu estávamos viajando juntos há um bom tempo, e essa foi a primeira vez que ela me pediu desculpas por algo. Uma parte de mim sentia que estava esperando ouvir essas palavras dela há muito, muito tempo. No entanto, elas não me fizeram me sentir melhor. Se alguma coisa, apenas fizeram meu coração doer ainda mais.  

— Não tem nada para se desculpar — respondi, então virei para sair do quarto.  

— E obrigada — ela disse suavemente.  

Essas palavras, no entanto, foram o suficiente para fazer minhas pernas cansadas se sentirem leves novamente. Deus, eu me sentia tão fácil de agradar, deixando uma pequena demonstração de agradecimento levantar meu ânimo de maneira tão grande — mas, cara, que sensação boa foi ouvir.  

— Não precisa agradecer — falei enquanto saía pela porta.

*

 

Segurando meu guarda-chuva de plástico como um grande escudo, corri pela tempestade congelada. Com a chuva suspensa no ar, não era necessário proteção acima — eu só tinha que repelir as gotas que estavam diretamente no meu caminho. Dito isso, havia apenas uma quantidade limitada de área que eu poderia cobrir com um único guarda-chuva, então as extremidades das minhas calças ainda estavam ficando encharcadas. Cheguei a considerar tirar elas completamente, mas mesmo em um mundo fora do tempo, eu definitivamente não tinha coragem suficiente para sair correndo pela cidade de roupa íntima. Especialmente não enquanto segurava o guarda-chuva de uma senhora idosa na minha frente como se fosse uma arma. Eu já devia uma dívida de vida para aquela mulher, então o mínimo que eu podia fazer era não traumatizar a comunidade local depois de tudo o que ela fez por mim.  

Não que ela tivesse muito o que escolher, eu acho.  

Acelerei o passo. Embora eu tivesse dormido algumas horas, ainda me sentia bem cansado, e minhas pernas estavam doloridas como nunca. Eu queria encontrar logo um supermercado ou mini-mercado para poder voltar para casa e descansar. O número de casas unifamiliares que estava vendo começou a aumentar, então pensei que não devia estar muito longe de um deles… No pior dos casos, eu teria que começar a roubar pedacinhos de comida de todas as casas vizinhas, uma por uma. Não era como se isso fizesse muita diferença, já que íamos roubar de qualquer jeito — e agora, eu precisava priorizar a saúde de Akira em relação ao meu próprio código moral.

*

 

Depois de andar mais uma hora, comecei a ver estabelecimentos comerciais começando a aparecer aqui e ali. Eram pequenos negócios locais, é claro — mas eu pensei que, se seguisse esses sinais de civilização como uma trilha de migalhas de pão, com certeza me levariam a algum supermercado mais cedo ou mais tarde.  

E, de fato, depois de caminhar um pouco mais, encontrei um. Era uma lojinha bem decadente, com a tinta descascando e o letreiro antigo sinalizando claramente sua idade. Entrei rapidamente e comecei a encher minha mochila com tudo o que eu podia pensar que poderia ajudar alguém a se recuperar de um resfriado. Vamos pegar umas bananas, iogurte, pêssegos enlatados, algumas bebidas esportivas, alguns lanches…  

— Droga… Isso está ficando meio pesado.  

As alças da minha mochila estavam agora cavando fundo nos meus ombros. Talvez eu tenha colocado coisas demais. Mas eu definitivamente não queria ficar sem comida e ter que voltar até ali, então decidi tentar levar tudo de volta para casa da melhor forma possível. Como sempre, me curvei pedindo desculpas ao caixa enquanto saia da loja, mesmo sabendo que era um gesto inútil.  

Quando saí para fora, parei para respirar fundo ao ver a cena estranha e surpreendente diante de mim. Agora, havia um caminho claro e óbvio de volta pelo caminho que eu tinha vindo. Ou melhor, não era um caminho, mas mais como um túnel pela tempestade. Com o tempo parado, a parede de gotas de chuva por onde passei com o guarda-chuva havia ficado suavemente afastada. Isso significava que o exato caminho que eu segui até ali estaria perfeitamente preservado até o fim do timefreeze. Eu poderia segui-lo de volta para casa com segurança, sem me preocupar em limpar um caminho novamente.  

Peguei o guarda-chuva da senhora idosa no rack fora da loja, deixando a lona dele recolhida enquanto o segurava firmemente no meio e marchava triunfante pelo caminho que meus esforços anteriores haviam aberto para mim. Era uma sensação engraçada, mesmo eu entendendo a mecânica — como se o próprio mundo estivesse estendendo o tapete vermelho para mim em desculpas pela dura provação que eu passei. Essa breve pausa foi quase o suficiente para fazer minha mochila parecer leve nos meus ombros e para eu esquecer o peso da exaustão que toda essa peregrinação me causou, nem que fosse por um momento.

Mas ainda assim, foi uma caminhada árdua de uma hora para voltar para casa com meu peso de comida. Quando finalmente cheguei à casa da velha, estava completamente exausto de novo. Depois de tatear até a porta da frente, tirei os sapatos e as meias, e então subi engatinhando as escadas até o quarto onde Akira estava dormindo. Ela acordou abruptamente ao ouvir o som da porta se abrindo, torcendo o pescoço para olhar. Assim que viu que era só eu, relaxou e deixou a cabeça afundar de volta no travesseiro.

— Da próxima vez, bata na porta — ela disse.

— Oh, m-minha culpa. Esqueci completamente…

— Está tudo bem.

Normalmente, ela teria ficado completamente irritada com isso, mas parecia que ela não tinha energia para me xingar agora. Deixei minha mochila pesada cair no chão com um baque e então me sentei de pernas cruzadas ao lado dela.

— Como você está se sentindo? — perguntei.

— Um pouco melhor, eu acho.

— Fico feliz em ouvir isso.

O rosto dela ainda parecia bastante febril para mim, mas parecia que sua condição, pelo menos, havia se estabilizado. Sua respiração também estava muito mais estável. Alcancei a mochila e a puxei pelo chão até a beirada da cama.

— Fui até o mercado — disse. — Peguei algumas frutas frescas, alguns daqueles geles energéticos da Weider… Peguei um monte de coisas.

— Você teve que ir longe?

— Sim, um pouco. Acho que foi uma caminhada de uma hora daqui.

— Ah...

Depois que Akira soltou essa sílaba desanimada, lágrimas começaram a brotar em seus olhos vazios, escorrendo lateralmente pelas bochechas e caindo sobre a fronha.

— O-O que houve? — perguntei, um pouco em pânico.

— Nada… — ela disse, esfregando o nariz no travesseiro para limpar o rosto, antes de virar de costas, como se estivesse tentando me afastar.

Tirei o relógio do bolso. Eram 00:00 — bem mais tarde do que normalmente iríamos dormir. Hoje, principalmente, eu realmente precisava de descanso; meus músculos estavam esgotados. E ainda assim, a ideia de levantar e sair do quarto não parecia certa, então apenas me recostei na parede do quarto e fechei os olhos.

— Por que está sendo tão legal comigo? — murmurou Akira, suavemente, contra o travesseiro. — Eu fui tão horrível com você…

— Está tudo bem. Nós dois estávamos cansados e estressados. E quer dizer, estamos nessa juntos, não estamos? Então, claro, precisamos cuidar um do outro. Não é como se alguém mais fosse fazer isso.

— Quando é que eu te cuidei? Parece que eu só te arrastei para baixo o tempo todo.

— Ah, não. Isso não é verdade.

— Sim, é. Além disso, nada disso teria acontecido se eu não tivesse insistido pra ir pra Tóquio no começo — ela disse, com a voz cheia de auto-ódio. — Você estava totalmente certo sobre mim… Sobre tudo. Eu não sabia o que estava fazendo, pensando que poderia realmente dar certo. Eu não sabia o quão difícil seria. E… E esse tempo todo, eu… Eu só estava tentando ser durona para esconder, como você disse…

Eu não disse uma palavra. Só escutei em silêncio.

— Ugh, o que é que eu estou fazendo aqui…? — ela gemeu — e então se enrolou em posição fetal, se enterrando nos cobertores.

Nenhum de nós disse mais nada por um bom tempo depois disso. Ficamos ali, juntos, compartilhando um silêncio tranquilo e mutuamente entendido. De vez em quando, eu podia ouvir o som reconfortante do tecido de lã roçando contra o linho enquanto ela se mexia debaixo das cobertas.

— Eu fugi de casa, sabia? — disse ela, com a voz abafada debaixo dos cobertores, bem quando eu pensei que ela poderia finalmente ter adormecido. Esperei pacientemente que ela se sentisse pronta para falar mais.

— Nossa família é tão disfuncional — ela começou. — Literalmente aquele estereótipo de "pai babaca e tóxico, mãe completamente passiva". Sempre que aquele idiota dá uma ordem, minha mãe larga tudo pra levar uma bebida, o jornal, ou seja lá o que for.

Só pela forma como ela estava descrevendo esse "imbecil", eu já imaginava que provavelmente não ia gostar nada do pai de Akira.

— Ele é como uma criança, metade do tempo — continuou. — Um verdadeiro mimado. Ele faz uma cena enorme no momento em que não consegue o que quer, e sai tarde fazendo sabe-se lá o que, sem avisar a ninguém que não vai voltar… Depois bate a porta como se quisesse arrancar ela das dobradiças quando finalmente volta… Deus, eu não aguento os homens da minha família. Meu irmão estúpido é a mesma coisa — um perdedor preguiçoso que não consegue ficar cinco minutos sem se masturbar. Estou tão cansada de ambos.

Não pude deixar de estremecer ao ouvir essas declarações duras sobre a própria família dela. Mas, no fundo, senti a verdade nas palavras dela; não estava recebendo um relato unilateral. E algo me dizia que isso só iria piorar daqui pra frente.

— Eu sinto muito pela minha mãe, sempre tendo que aguentar essas bobagens deles — disse Akira. — Ela é boa demais pra si mesma — nunca reclama, nunca fala mal de ninguém. Por isso, sempre tentei fazer o que podia para apoiá-la… Ajudar nas tarefas de casa, já que sabia que ninguém mais faria. Eu realmente queria ser aquela que sempre estava ao lado dela. Mas aí… Mas aí…

Akira parou por um momento e fungou suavemente.

— Aquela noite… A noite antes de te conhecer… aquele imbecil teve a ousadia de zoar a comida da minha mãe, só porque não tinha saído tão boa… Tipo, ele realmente riu disso. Dizendo que tinha gosto de merda… Tentando fazer ela se sentir uma idiota total. Aí eu me levantei, sabe… E disse "Ei, se você não gosta, pode ir comer em outro lugar"… Mas então minha mãe, ela… ela me deu um tapa… e começou a gritar comigo… Tipo, "Como você ousa falar assim com seu pai?!" Eu não podia acreditar. Quer dizer, por que ela fez isso comigo quando eu estava só tentando defendê-la, entende? Parecia que ela estava dizendo "Eu não quero sua ajuda", e isso doeu muito… E aí eu olhei pro meu pai e pro meu irmão, e os dois estavam me encarando e balançando a cabeça como se eu fosse a errada ou algo assim… E aí eu pensei, "Nossa. Acho que eu realmente não pertenço aqui depois de tudo…"

Eu podia ouvir ela quase se quebrando a cada palavra.

— Então eu saí de casa… Não fazia ideia de pra onde ir… Então só fui e fiquei vagando perto da estação sozinha por um tempo, mas então… Mas então eu… eu…

Mas por mais que tentasse, parecia que Akira simplesmente não conseguia articular as palavras. Tudo o que eu podia ouvir era o som de um choro inconsolável saindo debaixo dos cobertores, intercalado por soluços convulsivos. Na verdade, as únicas palavras que consegui entender da parte dela durante toda a noite foram simplesmente: "Está doendo…"

Eu queria nada mais do que fazer ela se sentir melhor de algum jeito. Mas não sabia o que poderia dizer para tranquilizá-la. Então, enquanto eu estava ali, tentando encontrar uma palavra que pudesse ao menos alegrá-la um pouco, minha mente voltou para o dia em que nos conhecemos. Eu ainda me lembrava da forma arrogante como ela se comportava e falava comigo, mesmo que tivéssemos nos encontrado há pouco tempo. Mesmo naquela época, eu tinha a sensação de que aquilo tudo era só uma defesa, para esconder o quanto ela estava assustada com o timefreeze. Depois de uma série de eventos estressantes e traumáticos na noite anterior, seguidos por um fenômeno sobrenatural na manhã seguinte, ela provavelmente só estava se fazendo de durona para não desmoronar.

Eu me senti muito mal por Akira, e queria poder fazer mais para ajudar. Eu realmente queria mantê-la feliz e segura de qualquer dano. Se eu tivesse o poder de resolver todos os problemas dela com um estalar de dedos, eu teria feito isso naquele momento.

Mas eu sabia que dizer isso não iria fazer ela se sentir melhor.

Sentimentos como pena e desejo de proteger, ou o desejo de resolver os problemas dos outros — embora, geralmente, nobres na teoria — eram frequentemente egoístas e condescendentes em sua essência. Quando esses instintos heróicos surgiam, podiam até ser vistos como uma admissão tácita de que você não acreditava que a outra parte fosse forte ou capaz o suficiente para se defender sozinha, independentemente de realmente precisarem ou não da sua ajuda.

Embora não fosse a pior coisa do mundo, definitivamente não era um sentimento nascido de um respeito genuíno e mútuo. Pelo menos, eu tinha quase certeza de que Akira interpretaria dessa forma.  

Então, em vez de oferecer garantias vazias que só a ofenderiam, simplesmente fiquei em silêncio e me sentei ao lado dela. Queria forçar-me a ficar acordado com ela, pelo menos até que ela tivesse chorado todas as suas lágrimas.  

Isso era, pelo menos na minha opinião, a coisa mais atenciosa e respeitosa que eu poderia fazer por ela naquele momento. 

Akira chorou por mais duas horas, então finalmente adormeceu.

*

 

Já estávamos na casa da velha mulher há três dias.

Felizmente, Akira tinha se recuperado completamente; parecia que era apenas um resfriado comum. Ela não tinha mais sintomas, sua temperatura estava normal e seu apetite havia retornado também. Mesmo assim, decidimos jogar pelo seguro e descansar por mais um dia antes de voltar à estrada. Akira insistiu que estava bem para ir, mas considerando que estaríamos indo direto para o epicentro da tempestade, eu queria que estivéssemos em forma total.  

No momento, eu me mantinha ocupado enxugando as pegadas molhadas que deixamos por todo o corredor com uma das minhas toalhas pessoais. Queria deixar o menor rastro possível de que estivemos ali, para que a velha mulher não tivesse um ataque cardíaco quando o tempo começasse a seguir seu curso novamente.  

Mas como era impossível deixar tudo como novo — como as toalhas que pegamos emprestadas, que eu tinha acabado de jogar na máquina de lavar — decidi deixar um bilhete ou algo assim para a velha mulher quando saíssemos. Talvez isso a assustasse ainda mais, mas se ela fosse notar todas as pequenas diferenças de qualquer forma, eu preferiria que ela não sentisse que estava enlouquecendo.  

— Ufa — eu disse. — Acho que é isso.

Terminei de limpar o chão e subi para o quarto — desta vez, me certificando de bater antes de abrir a porta. Dentro, encontrei Akira folheando um volume de mangá shoujo que ela tinha pegado da estante próxima. Mas assim que entrei no quarto, ela fechou o livro e levantou a cabeça.  

— Oi — ela disse. — Terminou de limpar tudo?

— Sim, mais ou menos.

— Legal. Obrigada por fazer isso. E desculpa por não ajudar.

Desde que a febre dela tinha baixado, percebi que Akira começou a agradecer e pedir desculpas muito mais frequentemente — quase tão frequentemente quanto qualquer outra pessoa. Isso foi, na minha opinião, uma mudança verdadeiramente significativa. Eu estava tentando agir normalmente e não fazer um grande alarde sobre isso para não deixá-la desconfortável, mas ao mesmo tempo, isso me deixava tão animado que eu não conseguia evitar querer sorrir toda vez que acontecia.  

— Ah, não precisa agradecer — eu disse. — Você ainda está se recuperando, então quero que descanse.

Enrolei a toalha que usei para limpar o chão em um saco plástico, junto com todas as minhas roupas que ainda estavam molhadas da chuva. Akira se inclinou para colocar o volume de mangá de volta na estante, então se virou para me encarar.  

— Ei, é… eu estava pensando… — ela disse.  

— Hm? Sim, o que foi?

Akira enfiou a mão no bolso e tirou um pacote selado de pilhas — o mesmo que ela havia pegado no posto de descanso alguns dias antes.  

— Eu meio que quero voltar e devolver isso — ela disse. — Acho que você estava certo; não é bom pegar coisas que a gente não precisa, sabe...?

Ela estava coçando a bochecha com um dedo enquanto falava, claramente se sentindo um pouco envergonhada com toda aquela confusão — e provavelmente envergonhada por tê-las pegado em primeiro lugar. Aquilo realmente aqueceu meu coração ao ver ela fazendo um esforço para corrigir suas ações e mostrar que entendia o meu ponto de vista. Ao mesmo tempo, isso significaria voltar até o posto de descanso na chuva e depois voltar até aqui antes de podermos seguir em frente. Francamente, era uma perspectiva desmotivante. Mesmo assim, se fosse isso que Akira sentia ser o certo a fazer, eu queria apoiá-la — principalmente porque fui eu quem a empurrou para ter essa mudança de opinião.  

— Parece um bom plano — eu disse. — Vamos lá devolver elas então.

— Sim… Desculpa pela enorme volta — disse Akira.  

— Não se preocupe com isso. Mas posso te perguntar o que você ia fazer com elas? Sei que você disse que tem um carregador de celular portátil, mas o que você tem feito no seu celular?  

— Oh, verdade. — Akira enfiou a mão no outro bolso para me mostrar. — Eu tenho escutado música nele. Eu baixei um monte de coisas, então não preciso de sinal ou nada para escutar. Sempre que está muito quieto ou eu não consigo dormir, eu só coloco um fone de ouvido e coloco algo para preencher o silêncio por um tempo. Me ajuda a manter a mente ocupada.

— Ah. Entendi…

Agora que penso bem, ela já tinha mencionado ter dificuldades para dormir algumas vezes durante a viagem, não tinha? Às vezes, era fácil esquecer que eu era o anormal aqui por achar esse estado de coisas tão relaxante. Eu tinha que me lembrar de que, para a maioria das pessoas, ser jogado em um mundo congelado e completamente desprovido de som seria tão assustador que chegaria a ser profundamente inquietante. Talvez até o suficiente para enlouquecer uma pessoa.  

E quando isso fez sentido para mim, fui invadido por tantos arrependimentos de uma só vez. Eu nunca considerei que, para Akira, aquelas pilhas eram uma necessidade básica.  

— Pensando bem — eu disse. — Talvez seja melhor não irmos.

— Hã? — disse Akira, atônita. 

— Desculpe, eu sei que estou mudando de opinião o tempo todo... Mas se música é o que você precisa para se acalmar, então eu não diria que essas pilhas são um luxo desnecessário. Elas são tão vitais para você quanto açúcar, ou carboidratos, ou seja lá o que for.

— Então... você acha que posso ficar com elas?

— Sim. Só faça bom uso delas, certo? Er, não que elas sejam minhas para dar ou algo assim... Mas você entendeu o que eu quero dizer.

Assim que terminei de falar, pude sentir meu corpo todo se tensionar um pouco, me preparando para ela gritar comigo por ter feito tanto alarde sobre isso no começo. Mas mais uma vez, Akira desafiou minhas expectativas, e seus lábios não se esticaram em uma careta, mas em talvez o sorriso mais largo que eu já vi — um sorriso de pura e incontrolável alegria e alívio.

— Ah, graças a Deus... — ela disse com um suspiro exasperado, como se tivesse literalmente prendido a respiração esperando ouvir meu veredito.

Ver ela aliviada foi o suficiente para me fazer sentir o mesmo. Eu podia perceber que a influência dela definitivamente estava começando a afetar meu compasso moral, me fazendo reconsiderar meus próprios pensamentos e valores de maneiras que eu nunca tinha sido forçado a fazer antes. Se minha influência estivesse tendo até um pouquinho do mesmo efeito nela, e nós dois pudéssemos crescer de maneiras separadas a partir dessa experiência... isso me deixaria bem feliz, para ser honesto.

— Ei, Mugino — disse Akira. — Eu esqueci, você disse que não ouve muita música, né?

— Ah, é... — eu disse. — É, não muito.

— Bem, você está com sorte, meu amigo, porque eu tenho um monte de músicas boas aqui no meu celular! Se você não gostar de nenhuma dessas, então vamos saber que você não tem gosto nenhum! Aqui, deixa eu te dar uma amostra. Eu vou achar algo no seu estilo, pode esperar!

— É? Tá bom, se você diz...

Akira e eu nos sentamos um ao lado do outro contra a parede, e eu observei enquanto ela rapidamente passava pelas playlists do celular dela.

— Ok, agora vamos ver… Hmmm, que gênero será que um cara como você gosta... Talvez você curta algo mais experimental como o Tokyo Jihen... Ou talvez algo meio retrô e psicodélico como o Glim Spanky seja mais a sua cara? As duas são bandas super boas, aliás, e ótimos pontos de partida — mas eu definitivamente quero te mostrar algumas músicas do Ellegarden também... Ah, poxa. São tantas opções! Eu não sei decidir!

Enquanto Akira ia de uma música para outra, tentando decidir qual tocar primeiro (e parando para se empolgar com cada uma de suas favoritas), não pude evitar me deixar contagiar um pouco pela empolgação dela. Eu não fazia ideia do que ela tinha preparado para mim em termos de música. Tudo o que eu sabia é que, independentemente do artista ou do gênero, eu realmente, de verdade, esperava conseguir aprender a gostar.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora