Volume 1

Capítulo 4: Um Mundo Sem Mentiras ou Dor

QUANDO ESTÁVAMOS CHEGANDO na cidade de Sendai, finalmente saímos da chuva. Não há palavras que possam expressar a libertação que senti ao olhar para o céu azul claro pela primeira vez em vários dias; talvez tenha sido um momento mais emocionante para mim do que ter saído do túnel Seikan, para ser honesto.

A expansão urbana que agora surgia ao longo da estrada fazia com que a última semana ou mais, de caminhada pelas baixas terras pouco povoadas de Morioka, parecesse um tipo de sonho febril. Não estávamos mais constantemente ansiosos, nos perguntando quando poderíamos encontrar outro mercado ou mini-mercado. Agora, tanto comida quanto abrigo estavam em grande abundância. Esses confortos confiáveis nos davam muito mais liberdade física e mental para parar e apreciar a vista — fazendo desvios para conferir atrações turísticas próximas ou passar a noite em resorts mais chiques e com cara de caros.

No momento, estávamos fazendo uma pausa em nossa viagem para conferir um lindo parque à beira do rio, não muito longe da estação de Sendai: o West Park, como era chamado. O lugar todo estava tingido de um amarelo brilhante e luminoso pelas fragrantes árvores de ginkgo, que haviam espalhado suas folhas de outono pelo chão. Era realmente uma visão de se admirar.

— Ei, Mugino! — Akira me chamou animada. — Dá uma olhada!

Eu me virei e a vi reunindo um monte de folhas de ginkgo caídas com os pés. Ela puxou a perna para trás e as chutou para cima, mas assim que começaram a cair de volta ao chão, elas pararam no ar, suspensas. Akira me olhou animada, com os olhos brilhando, esperando alguma reação.

— Muito bonito, sim — concordei.

— Nossa, nem uma reação... Aqui, por que você não tenta?

Admito que isso não parecia muito com o tipo de diversão que eu gostava, mas pensei que poderia tentar já que ela insistiu. Recolhi algumas folhas com os pés, assim como Akira fez. Sabia que teria que levantar bem as folhas no ar para ter o melhor efeito, então balancei minha perna direita para trás como se fosse dar uma cobrança de pênalti, depois bati o pé com força e o empurrei pela base da pilha.

— Bwagh!

O impulso do movimento fez minha perna esquerda escorregar, me lembrando — enquanto eu perdia todo o contato com o chão e via minha vida passar diante dos meus olhos — que, sim, folhas caídas geralmente são um pouco escorregadias. Caí de forma previsível e cômica. Enquanto olhava para o céu azul pálido decorado com as árvores douradas de ginkgo, o que provavelmente foram meus últimos momentos, não pude deixar de me perder um pouco na beleza pitoresca de tudo. Também, minha costa doía, então não consegui me levantar imediatamente.

— Wow! Você está bem...? — Akira gritou, correndo até mim em pânico. Eu me senti mal por preocupá-la, então finalmente me sentei direito.

— Ah, ha-ha... É, desculpa. Acho que você já sabe que não sou muito bom em esportes agora — disse, tentando descontrair com uma piada leve. O alívio passou pela expressão de Akira por um momento, mas então ela colocou as mãos nos quadris como uma mãe repreensora.

— "Sério mesmo? Jura?!" — ela disse. — Ah, qual é, jogador! Vai com calma aí, não vai acabar tendo uma hérnia, pelo amor de Deus… Pfft! Ah-ha-ha-ha!

Akira se curvou e começou a rir feito criança, segurando as laterais como se realmente não conseguisse se controlar. Assistir sua expressão mudar de preocupada para brava e depois para histérica diante de meus olhos foi tão engraçado que não pude deixar de rir junto. Em um parque silencioso, em um mundo no modo mudo, rimos como idiotas para ninguém ouvir.

*

 

Depois de passearmos um pouco pelos arredores do parque, Akira e eu fomos para uma refeitoria próxima. Durante as primeiras partes da nossa viagem, fizemos um esforço para comer apenas almoços prontos e acompanhamentos de supermercados e lojas de conveniência, no que dizia respeito às refeições. Mas, assim que Akira se recuperou do resfriado, conversamos e concordamos em nos dar um pouco mais de luxo, comendo em um restaurante ou refeitório mais indulgente a cada poucos dias.

Este estabelecimento era um tipo de restaurante estilo buffet, onde você podia pegar o que quisesse e colocar no prato, o que era um formato um pouco mais fácil para minha moral engolir. Não que ainda não estivéssemos fazendo o famoso "comer e correr", obviamente — mas pelo menos não me sentia tão terrível, considerando que não estávamos pegando comida debaixo do nariz de outros clientes ou dos garçons. Era a primeira vez que eu estava podendo desfrutar de uma refeição boa, quente e cheia, desde que nossa jornada começou.

Depois de terminarmos de comer, fomos para uma casa de banho pública no centro da cidade, que havíamos descoberto graças a um mapa turístico dobrável que pegamos em um balcão de folhetos na estação. Assim que chegamos ao nosso destino, Akira e eu não perdemos tempo, nos separando e indo para os banhos de nossos respectivos gêneros. Depois de relaxar meus músculos cansados por um tempo, tirei um momento para lavar as roupas dos últimos dias que eu havia trazido para a área de banho comigo. Não na própria banheira, obviamente — só peguei a água do banho emprestada, e até isso parecia meio tabu — mas não havia muitas outras opções para fazer uma carga de roupa completa de uma vez neste mundo, então foi o que deu.

— Certo, acho que isso deve dar.

Fase de lavagem, concluída. Tudo o que restava agora era enrolá-las em uma toalha de banho, torcer a umidade e mantê-las comigo enquanto caminhávamos pela cidade por um tempo — caso contrário, elas não secariam de verdade. Normalmente, não levava mais de cinco horas se eu apenas pendurasse as roupas em um pacote na minha mochila ou as amarrasse em mim como uma capa ou colete.

Até recentemente, eu só estava lavando as áreas ao redor das axilas, punhos e colarinhos que eram mais propensas a acumular suor, e depois usava as roupas como se nada tivesse acontecido, com essas áreas ainda úmidas. Mas isso acabou sendo uma experiência bem mais desagradável do que eu imaginava, e a umidade só fazia parecer mais frio, então recentemente mudei para esse novo método de lavagem. Definitivamente era um trabalho carregar roupas molhadas comigo o tempo todo, mas pelo menos elas ficavam mais limpas com esse método.

Me vesti e voltei para o saguão. Depois de passar por alguns homens idosos que estavam parados no corredor no meio de uma conversa, vi Akira sentada em um sofá com o cabelo enrolado em uma toalha, parecendo um turbante, folheando algum tipo de panfleto.

— Ei, desculpa pela espera — eu disse.

— Sem problema — Akira murmurou, sem levantar a cabeça.

— Então, você já escolheu um lugar para a gente ficar hoje à noite? — perguntei, colocando minha roupa suja em cima da minha mochila enquanto me sentava na cadeira ao lado dela.

— Mm-hmm. Estava pensando que talvez pudéssemos fazer algo um pouco diferente, na verdade.

— Ah é? O que é?

— Heh. Isso é algo que eu sei, e você vai descobrir — disse ela, fechando o panfleto com um estalo enquanto se inclinava para frente e se levantava.

Recolhemos nossas coisas e saímos da casa de banhos. Meu relógio mostrava que eram 22h — já estava na hora de irmos dormir. Passamos por uma fileira de hotéis enquanto Akira me conduzia pela rua em direção à estação. Enquanto me perguntava ansiosamente onde diabos ela pretendia dormir naquela noite, fiquei perplexo ao vê-la de repente fazer uma curva abrupta à esquerda e entrar em uma enorme loja de departamentos.

— Hum, você tem certeza de que esse é o caminho? — perguntei.

— Oh, eu tenho certeza — respondeu Akira, com uma confiança orgulhosa na voz enquanto começava a subir pela escada rolante parada. Ela me levou até o final do quarto andar, então se virou e declarou triunfante: — Ok, aqui estamos!

Ela parou bem antes do departamento de cama de uma grande rede de móveis para casa. Não pude deixar de sorrir quando finalmente percebi o que ela queria dizer com tentar algo "um pouco diferente dessa vez".

— Ei. O que tem de tão engraçado? — exigiu Akira.

— Nada — respondi. — Só acho engraçado o jeito que sua cabeça funciona às vezes. Nunca teria pensado em vir aqui sozinho. Mas é uma ideia bem fofa, eu tenho que admitir.

— Ah, cala a boca. Eu queria fazer isso desde que era criança — disse Akira, jogando sua mochila no chão e se jogando em uma cama próxima. — Eu lembro de ter assistido um filme antigo uma vez, faz um tempão, onde as pessoas passam a noite em uma loja de departamentos como essa. Não lembro muito mais sobre o filme, mas essa cena sempre ficou na minha cabeça, por algum motivo aleatório.

Espere. Um filme antigo onde as pessoas dormem em uma loja de departamentos...?

— Era Tempos Modernos? — perguntei.

— Hã? O que diabos é isso? Não, era um filme do Crayon Shin-chan.

— Ohhh, entendi... Sim, acho que sei qual você quer dizer.

Fiquei um pouco envergonhado; deveria ter percebido de imediato que era aquele filme que ela estava se referindo — não algum filme antigo dos anos 1930 que eu só tinha visto porque meu tio Kurehiko me apresentou a ele na escola primária. Mas definitivamente havia algo nesses filmes de comédia em preto e branco. Mesmo sendo uma criança distraída, eu me lembrava de ter ficado completamente encantado do começo ao fim por causa da grande comédia física de Charlie Chaplin.

— Que tal parar de ficar parado e se sentar logo? — disse Akira.

— Ah, certo — respondi, me despertando da minha reminiscência antes de me perder demais. Procurei por outra cama confortável no showroom. Não que eu fosse muito exigente — não me importava de dormir no sofá se fosse necessário. Também não havia muitos clientes na área, então havia vários lugares onde eu poderia descansar. Mas, enquanto eu vasculhava o local de um lado a outro, Akira me olhou com uma expressão de confusão.

— O que você está fazendo? — ela perguntou. — Só vem para a cama ao lado da minha.

— Hã? — eu disse. — Mas... n-não é um pouco perto demais? Quero dizer, não tem nenhuma divisória ou nada...

— Ah, entendi. Você não quer dormir perto de mim, é isso?

— Não, não é isso que eu quis dizer... — Admito que não estava muito certo de como ficaria confortável com ela me vendo roncar ou vice-versa, e esse pensamento era obviamente desconfortável por vários motivos, mas, o mais importante: — Eu só imaginei que você não gostaria de dormir tão perto de mim...

— Ah, para. Eu te conheço melhor do que isso agora. O que tem para se preocupar?

Akira sorriu e balançou a cabeça como se eu fosse completamente ridículo, então tirou os sapatos e se jogou de costas na cama. Achando que não havia mal algum nisso, desde que ela estivesse confortável e não quisesse insinuar nada rude ao recusar, aceitei sua oferta e fui para a cama ao lado. Coloquei minhas coisas, tirei os sapatos e enfiei as pernas sob as cobertas. O colchão era muito bom — mas o teto alto e as luzes de cima dificultavam um pouco o relaxamento.

— Cara, isso é tão estranho... — disse. — Então, Iguma-san? Como é sentir que um dos seus sonhos de infância foi finalmente realizado?

— Ei, eu nunca disse que era um sonho nem nada. Mas, sim, quer dizer... é legal, acho. Só queria que não fosse tão claro aqui.

— É, tenho que concordar.

Enquanto tentávamos encontrar uma posição confortável, acabamos virando para nos deparar um com o outro. Os olhos de Akira se abriram como os de um cervo ao ser pego nos faróis, e ela rapidamente virou o olhar para o teto.

— É meio estranho deitar assim, né? — disse Akira.

— Eu pensei que estávamos tentando dormir — respondi.

— Bem, é... mas você não costuma mexer um pouco no seu celular antes de realmente conseguir dormir? Porque eu com certeza faço isso.

— Hum, mas você não pode fazer isso? Você tem as baterias, não tem?

— É... Acho que não estou muito afim disso agora.

Eu podia ver que essa conversa não estava indo a lugar algum.

— Bem, desculpa, Iguma-san — disse, abafando um bocejo. — Mas acho que vou acabar desmaiando bem rápido aqui. Espero que você encontre algo para manter sua mente ocupada.

— Sabe, na verdade eu estava querendo falar sobre isso há um tempo, mas...

Meus ouvidos se alertaram quando o tom de Akira de repente se tornou sério. Eu assumi que o que quer que fosse tinha que ser algo bastante importante, então me preparei mentalmente para o pior.

— Eu meio que odeio meu sobrenome, para ser honesta — disse ela.

— Como assim? Você quer dizer Iguma?

— Sim, não é feio? Quero dizer, tem o kanji de urso nele.

Oh, é só isso? Ufa. Fiquei aliviado em saber que era algo trivial — sem ofensa — e não algo realmente pesado.

— Sério? Eu acho ele bem legal — respondi. — É único, pelo menos.

— Não, é muito grosseiro e masculino. Não que eu ame meu primeiro nome também. Ele é bem tomboy também... Mas pelo menos é melhor que Iguma!

— Certo, é... Não, eu entendo.

Eu estava tão cansado nesse ponto que estava lutando para responder com algo substancial, então apenas concordei com ela por padrão. Mesmo assim, passei a mão nos olhos, esperando conseguir adiar o sono até que ela terminasse de fazer seu ponto.

— Então, tipo, o que estou querendo dizer é...

Quando eu puxei minhas mãos para baixo do meu rosto, vi que a Akira tinha virado o corpo todo na cama para me encarar. O cobertor estava puxado até o queixo, e ela tinha uma expressão ligeiramente pensativa no rosto. Ah, não… O que será agora?

— Se você quiser me chamar só de Akira, tudo bem por mim.

Eu não sabia o que dizer. Essa sugestão casual, jogada assim, foi tão inesperada — e, pelo menos para mim, sem precedentes — que fiquei genuinamente sem saber como reagir. Certamente, ela sabia tão bem quanto eu que pessoas da nossa idade normalmente não se chamam pelo primeiro nome, a menos que sejam muito íntimas, especialmente quando se trata de membros do sexo oposto. O que isso significava? Que a Akira já nos considerava mais próximos do que eu imaginava — e que me via como alguém em quem podia confiar de verdade.

Eu senti uma sensação estranha e reconfortante no peito, mas sabia imediatamente que não era a sensação habitual. Não era uma sensação ruim. Nada de sufocamento ou arritmia, mas uma emoção quente e reconfortante, que se espalhava em ondas, vindo do centro do meu coração até envolver meu corpo inteiro, como se eu fosse envolvido em um cobertor mais acolhedor do que até as roupas de cama luxuosas — e mais macio também. Não consegui evitar de apertar os dedos dos pés debaixo das cobertas.

— Ah... Ok — disse eu. — Então... Eu acho que vou tentar te chamar assim a partir de agora?

Akira deu uma risadinha brincalhona com isso. Toda vez que eu via aqueles dentes caninos saindo debaixo do lábio superior dela, meu humor se elevava como se eu tivesse ganhado um prêmio. Decidi aproveitar esse momento e tentar chamá-la pelo primeiro nome em voz alta. Fiquei um pouco ansioso, mas umedecei a boca com a língua e disse.

— Akira.

Imediatamente, ouvi um gole descer pela garganta da Akira. Depois, veio um murmúrio indistinto e gutural que eu não consegui entender enquanto ela virava a cabeça para o lado — mas eu ainda podia ver as orelhas dela, que estavam corando de tão vermelhas, saindo pelos fios de cabelo. Ela definitivamente teve alguma reação ao eu ter dito o nome dela, mas não consegui nem sequer entender se era boa ou ruim.

— O que foi? — perguntei cautelosamente.

— A…-san — ela disse.

— Como?

— Isso é Akira-SAN pra você! — ela gritou, depois puxou as cobertas até a cabeça. — N-Não importa, esquece! Me chama pelo sobrenome mesmo! Vou dormir!

Bem, então foi por água abaixo. Puxa vida. Não que eu me importasse — eu já estava bastante acostumado a chamá-la de "Iguma-san" até aquele momento. Se ela se sentia mais confortável com isso também, então, para mim, era só menos trabalho. Eu também puxei as cobertas sobre os meus olhos para bloquear a luz forte do teto, então adormeci com o som do meu próprio coração batendo.

*

 

Depois de passar por Sendai, continuamos seguindo pela Linha Tohoku para o sul, fazendo paradas em cidades como Natori, Iwanuma, Shibata e outras cidades de porte médio que eu tinha certeza de já ter ouvido pelo menos uma ou duas vezes. Todas essas cidades eram pequenas o suficiente para serem classificadas como rurais, mas ainda assim tinham todas as comodidades que precisávamos. Isso nos permitiu chegar até Fukushima sem enfrentar os mesmos obstáculos que encontramos nas primeiras partes da nossa viagem.

Já fazia mais de um mês (provavelmente) que estávamos nessa jornada juntos.

Perdi a conta exata dos dias desde que a Akira desmaiou na chuva, o que definitivamente bagunçou minha noção de tempo — mas eu sabia que já devia fazer mais de três semanas, no mínimo. Eu já estava bastante acostumado com esse estilo de vida nômade; até comecei a sentir uma estranha sensação de satisfação a cada nova cidade que chegávamos, explorávamos e depois deixávamos para trás. Ainda não era um cruzeiro de prazer, mas eu já tinha me acostumado com o ritmo e a sintonia dessa aventura com a Akira.

O que me fazia parar para pensar de vez em quando: E depois que chegássemos a Tóquio? E se encontrássemos uma maneira de fazer o tempo seguir novamente? Ou, então, e se não encontrássemos? Qual seria nosso próximo objetivo, nesse caso? Sempre que começava a pensar tão à frente, não conseguia evitar um certo nervosismo.

— O que você tá olhando de jeito meio angustiado e apreensivo? — perguntou Akira enquanto caminhávamos pela rua. Ela estava com um pãozinho de carne na mão, que pegou em um mini-mercado próximo e agora estava comendo enquanto andávamos pela cidade.

— Nada — respondi. — Não se preocupe com isso.

— Espera, eu entendi… Você queria pegar um pãozinho de carne também, né? Pois é, azar o seu, porque esse aqui é meu!

— Não queria nenhum.

— Ah é? E por que não? Acha que é muito bom para comer minhas sobras, é isso? Agora você está sendo rude.

— Eu nunca disse isso...

Akira deu um sorriso provocador para mim enquanto dava outra mordida grande no pãozinho. Ela claramente estava tentando me provocar, o que era um pouco irritante, mas foi o suficiente para me tirar do meu pensamento negativo, então agradeci a ela por isso, ao menos.

Era um pouco impressionante o quanto nós dois já tínhamos nos aberto um para o outro com o tempo, especialmente considerando que nossas primeiras impressões tinham sido... nada positivas, para dizer o mínimo. Aquela rigidez e o constrangimento que pairavam sobre cada conversa nossa naquela época pareciam agora tão distantes, como uma discussão boba que tivemos há muito tempo. Na verdade, eu até diria que, de todas as pessoas que conheci na vida, ela provavelmente era minha amiga mais próxima.

Amiga. Sim, essa parecia a palavra certa para descrever isso. Obviamente, eu não sabia se a Akira também me considerava amigo dela, mas tinha a impressão de que provavelmente sim... Depois que o tempo seguisse em frente, será que ela ainda interagiria e me trataria da mesma forma que fazia agora?

Mas, justo quando eu estava pensando nisso, Akira parou bruscamente. Vi o pãozinho de carne escorregar e cair de sua mão — ficando suspenso no ar a poucos centímetros de atingir o chão.

— Ei, desastrada — falei. — Você deixou o pão cair.

— Olha.

A voz dela soou surpresa e vazia enquanto ela levantava um dedo trêmulo para o céu. Eu virei o olhar na direção em que ela estava apontando, e meus olhos imediatamente se arregalaram, assim como os dela.

Havia uma pessoa flutuando bem acima da rua, logo sobre o beiral de um dos telhados próximos. Era uma mulher com um terno de negócios, seu corpo suspenso de maneira levitante contra o céu de outono, como se estivesse deitada de bruços em uma piscina. Quase como se o tempo tivesse parado no exato momento em que ela saltou do prédio para—

Quase como se? Não, era exatamente isso que estávamos presenciando. Era a única explicação que fazia sentido. Havíamos acabado de nos deparar com a cena de uma tentativa de suicídio.

— C-Caramba, a gente tem que ir salvar ela! — disse Akira, voltando à realidade e correndo em direção ao prédio de escritórios de onde a mulher estava pulando. Eu a segui até o lobby, e subimos pela escada estreita até o último andar, então abrimos a porta que dava para o telhado. Imediatamente, avistei o longo rabo de cavalo da mulher, esvoaçando sobre a proteção da grade, subindo como se seu cabelo tivesse vontade própria e estivesse tentando salvá-la.  

Corremos até a borda. Mesmo sabendo que não havia risco de ela cair mais do que já havia caído, era difícil não sentir que o tempo era crucial. A mulher estava perto o suficiente para que provavelmente pudéssemos alcançá-la se saltássemos a grade.  

— Aqui, eu a puxo de volta! — disse Akira, frenética.  

— Espera, não! — gritei. — Deixa que eu faço isso.

— Não, eu faço! Você não pode tocar nas outras pessoas, né?

— É, mas isso é muito perigoso...

— Eu vou ficar bem, confia em mim. Não sou tão inútil quanto você pensa.

Eu cerrava os dentes, irritado. Realisticamente, eu deveria ser o responsável por fazer isso, já que tinha mais força na parte superior do corpo. Mas Akira também tinha razão ao dizer que eu poderia ter alguma reação involuntária negativa e perder o controle, então eu deveria deixar isso com ela. Eu só teria que encontrar outra forma de ajudar.  

— Tá bom — disse eu. — Eu te seguro pela mochila para você não cair.

— Legal, beleza — disse Akira, escalando a grade.  

Assim que ela estava do outro lado, segurei sua mochila com as duas mãos. A rua parecia bem distante de lá de cima; um movimento errado e ela cairia para uma morte quase certa. Eu segurei o mais forte que pude enquanto Akira se inclinava sobre a borda e segurava a mulher pela gola do paletó.  

— Hnnngh...!

Ela puxava o máximo que conseguia, e o corpo da mulher lentamente foi voltando para o prédio. Podia parecer que ela estava flutuando sem peso, mas, na verdade, todo o peso dela — ou inércia, ou o que fosse — ainda estava em ação, então era necessário um esforço considerável para puxá-la de volta. Ouvi o estalo de um dos botões do paletó da mulher se soltando enquanto gotas de suor escorriam pelo pescoço de Akira. Eu me sentia bem inútil por não conseguir fazer nada além de apoiá-la de trás. Mas, depois de muito esforço, puxando a mulher de uma maneira desajeitada e instável, Akira finalmente conseguiu puxar o corpo superior dela de volta para cima da grade de proteção. De lá, Akira pulou por cima da grade e, então, arrastou a mulher até o topo, segurando-a pelas axilas para deitá-la no telhado.  

— Ufa… Estou exausta — disse Akira, sentando-se no concreto.  

— É, bom trabalho — disse eu. — Pode descansar.

Agora que tive a chance, olhei mais de perto para a mulher. Ela parecia estar na casa dos vinte e poucos anos, talvez. Seus olhos estavam bem fechados, e suas mãos estavam unidas diante do peito como se estivesse em oração.  

— Na verdade, desculpa, Iguma-san — disse eu. — Você se importaria de verificar os bolsos dela pra mim, rapidinho?

— Bem, eu não me importo... Mas por quê?

— Acho que só tô curioso pra saber o que fez ela querer morrer.

Akira não parecia muito convencida, mas fez o que eu pedi. Ela revirou os bolsos da jaqueta e da saia da mulher e tirou tudo o que encontrou: um celular, pastilhas para tosse, uma caneta, um lenço e alguns comprimidos. Só isso. Nada que nos ajudasse a identificar quem ela era, muito menos uma razão para ela ter tentado o suicídio.  

— Pois é, nada. Não dá nem pra ver o celular dela, olha — tem senha — disse Akira, me mostrando a tela de entrada com os números. — Agora, podemos deixar isso pra lá e ir embora? Odiaria dizer isso, mas não tem mais nada que possamos fazer por essa mulher.

— Não acha que isso é um pouco irresponsável, não? — disse eu.  

— O quê?

— Bem, tipo... A gente não sabe nada sobre essa pessoa, ou o que ela estava passando... E mesmo assim, a gente se meteu pra impedir ela, apesar de não podermos fazer nada para melhorar a vida dela daqui pra frente... Então, acho que estou só me perguntando se realmente fizemos a coisa certa. Tipo, pelo que sabemos, isso poderia ter sido o último recurso dela pra escapar da dor, sabe o que quero dizer? E se tudo o que fizemos foi piorar as coisas pra ela? Não sei. Acho que tô só me sentindo inseguro. 

— Então, o que — você tá dizendo que a gente não deveria ter salvo ela, então? Deixado ela lá pra cair pra morte? Você acha que isso era o certo a se fazer? — Perguntou Akira, com o tom ficando mais cortante enquanto ela me olhava com um leve brilho de indignação nos olhos.  

— Não, não é isso que tô tentando dizer... É só...  

— Só o quê?

As palavras que eu tentava dizer não saíam. Ao invés disso, apenas abaixei a cabeça.  

— Desculpa. Esquece o que eu disse. Acho que não estava pensando direito. 

— É, nem pareceu. Olha só pra ela — disse Akira, olhando para a mulher. — Ela obviamente devia estar trabalhando ou algo assim, né? Tipo, ela tá de terno. Provavelmente aconteceu algo muito ruim com ela no começo do dia, e ela só subiu pro telhado e se jogou no calor do momento. Não tinha como ela estar pensando direito, eu garanto. Só olha a bagunça que ela tinha nos bolsos. Se ela realmente estivesse sofrendo e a gente visse que ela planejou tudo isso há muito tempo, talvez fosse outra coisa... Mas se foi só um impulso de momento, então a gente fez um grande favor em impedir ela. Quer dizer, caramba — acabamos de salvar a vida dela.

— Você tá completamente certa, é.

Ela não me deixou espaço nem para tentar argumentar. Eu fiquei até surpreso, sinceramente; não sabia que ela era capaz de me rebater tão racionalmente quando se tratava de dilemas morais, por mais rude que isso parecesse.  

— Agora, vamos embora — disse ela, indo em direção à porta do telhado.  

Enquanto ela caminhava, eu dei uma última olhada para a mulher. Nem eu sabia por que estava tão determinado a saber mais sobre ela, nem por que ela despertava uma sensação confusa de emoções conflitantes no fundo do meu peito. Mas já estava na hora de ir, então eu supunha que nunca saberia a verdadeira resposta sobre isso.  

Justo quando eu estava prestes a me virar para ir embora, percebi algo.  

— Ei, espera! — gritei.  

— Ah, o que foi dessa vez? — disse Akira.  

Enquanto minha companheira se virava relutantemente, eu me agachei ao lado da mulher para olhar mais de perto. E lá estava, um pequeno pedaço de papel saindo de entre as mãos dela, que estavam unidas.  

— Ela está segurando algo — disse eu.  

— E quer que eu dê uma olhada? — disse Akira.  

— Ah. Bem, eu... sim, se você não se importar.

Akira deu um suspiro pesado de desapontamento e voltou até lá.  

— Tá bom — disse ela. — Mas depois disso, a gente vai embora de verdade, entendeu?

Ela segurou as mãos da mulher — que pareciam estar bem apertadas, dado o esforço necessário para separá-las. Eventualmente, Akira conseguiu abrir as mãos dela, revelando um pedaço rasgado de papel de caderno com uma única frase escrita à caneta.

Me leve para um mundo sem mentiras ou dor.

A oração dessa mulher era: ser levada para algum refúgio seguro, algum santuário que ela sem dúvida estava imaginando enquanto saltava, pintado em suaves tons nas costas de suas pálpebras bem fechadas. Não foi o desespero nem a esperança que a fez pular — apenas um pequeno e humilde desejo por um lugar um pouco melhor do que aquele.  

— Hmph. — Akira fez um som de desdém, depois rasgou o papel em pedaços.  

— Ei, o que—?! — Eu fiquei boquiaberto.

— Continue sonhando, senhora. Não existe esse lugar. 

Akira jogou os pedaços de lado e desceu as escadas. Relutantemente, eu corri atrás dela — deixando a mulher lá, deitada no telhado, com suas orações sem resposta.

*

 

Acabamos nos acomodando em um pequeno café simples para dormir naquela noite. Atendeu aos três principais critérios para hospedagem que tínhamos: não havia muitas pessoas dentro; algo onde pudéssemos deitar (neste caso, um sofá); e, o melhor de tudo, estava fracamente iluminado.  

Akira colocou suas coisas e logo se jogou no sofá mais próximo, soltando um grande bocejo enquanto pegava uma das almofadas decorativas para usar de travesseiro. Eu me sentei em uma poltrona próxima e comecei a folhear o menu do café. Não é que estivesse com fome ou com sede, na verdade. Só queria algo para fazer, para passar o tempo até me sentir mais preparado para dormir. Segundo meu relógio de pulso, já eram 22h — bastante perto da hora em que normalmente começava a adormecer. Mas, por algum motivo, o sono estava estranhamente fugindo de mim naquela noite.  

— Você ainda tá pensando naquela mulher de antes, né? — disse Akira, ainda deitada no sofá. Eu percebi pelo tom dela que ela estava tentando ser cuidadosa, apesar da impaciência implícita na maneira como falou. Quem sabe — talvez ela estivesse realmente um pouco preocupada com a forma como eu estava agindo. Nesse caso, achei que seria melhor ser honesto e não tentar esconder.  

— É... meio que sim — falei. — Tô me sentindo um pouco abalado, pra ser sincero.  

— Isso não acontece todo dia lá em Tóquio? Ouvi dizer que sempre têm que parar os trens por causa disso.  

— Deve ser bem mais comum lá do que em outras prefeituras, sim. Mas eu não diria que é algo que aconteça todo dia ou uma inconveniência constante, sei lá. Não que eu saiba, já que não pego o trem, mas enfim...

— Ah, sim, é verdade. Mas você e o pessoal não costumam andar a pé, a não ser que seja mais de duas estações ou algo do tipo?  

— Bem, muita gente faz isso, sim. Mas no meu caso, é só porque... Bom... tem muita gente no trem, sabe?

— Ah... Entendi...  

Talvez não existisse nada mais aterrorizante para mim do que a ideia de estar preso em um trem lotado durante a hora do rush, apertado como sardinha com todos os outros passageiros. Eu tinha cem por cento de certeza de que, se algum dia pegasse o trem e visse um grupo de estudantes ou trabalhadores embarcando, teria uma crise de pânico.  

— Nossa, isso deve ser um saco — disse Akira.  

— Acredite, é — falei, soltando um suspiro. — Eu realmente queria que tivesse alguma cura milagrosa pra eu poder superar isso logo...  

Me senti mal por deixar a conversa tomar esse rumo um pouco deprimente, especialmente porque Akira claramente só estava tentando ver como eu estava lidando com a situação. Eu precisava calar a boca e parar de falar antes que piorasse, então me levantei da cadeira e fui até um dos sofás próximos.  

— Desculpa, acho que deveria tentar dormir um pouco — falei.  

— Tá bom — disse Akira. — Boa noite.  

Ela disse essa última parte com uma voz tão suave que quase não consegui ouvir, mas sabia que não tinha me confundido. Era a primeira vez que ela me desejava boa noite — e, para ser sincero, foi uma sensação muito boa ouvir isso. Rebati o gesto, deitei e fechei os olhos, já bastante certo de que o sono me encontraria em breve.  

*

 

— Peça o que você quiser, meu filho.  

Pela primeira vez em muito tempo, meu tio Kurehiko me convidou para jantar com ele em um izakaya de rede. Ainda estava relativamente cedo, mas o restaurante já estava lotado de gente. Assim que nos sentamos, pedimos nossas bebidas — um chá oolong para mim e uma cerveja para meu tio — e também alguns petiscos para começar. Pouco depois, a garçonete trouxe duas canecas geladas, e começamos a tomar nossas respectivas bebidas sem nem ao menos bater as canecas.  

— Você ainda não me contou qual é a ocasião — falei. As únicas vezes em que saí para comer com meu tio no passado foram no meu aniversário ou quando meus pais estavam fora de casa. Mas hoje não era aniversário de ninguém, pelo que eu sabia, e meus pais estavam em casa.  

— Ora, estamos comemorando você ter entrado no ensino médio, é claro — disse meu tio.  

— Mas isso foi há meses.  

— Eu pedi demissão do meu trabalho de professor — ele disse, bebendo um gole de cerveja. — Considere isso como a minha festa de despedida.  

— Não é com seus colegas de trabalho que você normalmente faz esse tipo de coisa?  

— Eu quero é aproveitar a comida, muito obrigado.  

Essa piada foi suficiente para me dar uma boa ideia do tipo de relações de trabalho que meu tio cultivava no emprego.  

— Então você está desempregado agora, é? — falei.  

— Cuide da sua língua — meu tio disse, com um tom irritado. — Eu sou um pintor profissional.  

— Mas não dá para pagar as contas com isso, dá?  

— Renda não é tudo, rapaz. Tudo depende do estilo de vida.  

— Como você quiser...  

A garçonete trouxe nossos petiscos numa bandeja e os arrumou na mesa: um pouco de edamame, omeletes enroladas com dashi e um prato de shishamo grelhado.  

— E, no fim das contas, eu só preciso ganhar o suficiente para manter as luzes acesas enquanto pinto — meu tio disse, dando mais um grande gole. — Foi assim que o Gauguin fez.  

Meu tio, um homem solteiro de quase quarenta anos, oficialmente havia decidido abrir mão de ter um emprego fixo. Isso parecia ser o fim de suas perspectivas de vida, mas o tio Kurehiko parecia bem otimista quanto a essa mudança de estilo de vida. Ele estava até mais animado.  

Talvez ele realmente tivesse tomado a decisão certa ao pedir demissão.  

— Não há virtude em simplesmente ter um emprego, eu te digo — isso é suicídio da alma. E todo mundo sabe disso, lá no fundo. Como conseguimos deixar que trabalhar cinco dias por semana se tornasse a norma? Não é um pouco absurdo quando você realmente para para pensar nisso? Que utilidade tem o ganho financeiro se você tem tão pouca vida para aproveitar? Não faz sentido. Aqueles idiotas que glorificam um dia de trabalho duro acima de tudo precisam perceber que estão defendendo a própria escravidão que os desumaniza.  

O discurso dele começou forte...  

— Se envolver com outros seres humanos é apenas uma receita para problemas atrás de problemas atrás de problemas. Então, por que todo mundo parece tão desesperado para se conectar com os outros? Será que são tão incapazes de ver o próprio valor sem outra pessoa para validá-los? Eu nunca serei assim. Nunca, te digo. Vou viver sozinho até o dia em que eu morrer.  

...até que o fervor dele começou a desaparecer...  

— Tem sido bem legal, na verdade. Posso dormir quando quiser, acordar quando quiser, ir até a loja de conveniência quando me der fome e pintar o que meu coração desejar quando me der vontade. Isso, para mim, é a verdadeira felicidade. Enquanto eu puder ganhar o suficiente para sustentar esse estilo de vida, nunca vou querer mais nada.  

...e a desesperança finalmente o dominou, não mais de uma hora depois.

— Ah, maldição... que desperdício. Que desperdício patético e miserável. Tudo o que eu fiz, todos os ideais elevados pelos quais lutei... Foi tudo em vão. Completamente e absolutamente sem sentido. O apocalipse não chega logo o suficiente para este mundo amaldiçoado, te digo. Não há luz no fim do túnel aqui, nenhum futuro brilhante nos esperando. A população vai continuar diminuindo enquanto nosso governo miserável fica cada vez mais decadente, e calamidades, tanto naturais quanto causadas pelo homem, destroem a pouca infraestrutura que conseguimos construir. As crianças vão ter que se virar sozinhas, esmagadas pelo peso de todas as expectativas absurdas e responsabilidades que nossa sociedade disfuncional colocou sobre seus ombros, enquanto os idosos morrem um por um. Esse é o mundo em que vivemos, meu filho. Não sei como alguém consegue manter a sanidade vivendo nele.

(SLAG: O tio já tá coringando. | Shisuii: Simplesmente brutal.)

O entusiasmo recém-descoberto do meu tio pela vida era apenas a sua vaidade de sempre disfarçada de uma atitude mais gentil.

Ele realmente ainda é o mesmo tio Kurehiko, depois de tudo, pensei, balançando a cabeça. Ao mesmo tempo, havia uma espécie de conforto nesse conhecimento. Era assim que eu sempre quis que ele permanecesse — meu tio rabugento com uma visão de mundo extremamente pessimista. Eu queria ouvir mais e mais de suas pequenas reclamações teimosas e excêntricas. Nunca, jamais, queria que ele se tornasse uma pessoa normal, respeitável e me deixasse para trás.

— Me diga, Kayato — ele disse, dirigindo-se a mim de repente enquanto eu tomava meu chá oolong em silêncio. — Você está desiludido com este mundo, não está?

— Não sei se chegaria a esse ponto — respondi.

— Não minta para mim, garoto. Eu sei que você sente isso também.

— Não, sério. Eu tenho... me divertido muito mais ultimamente.

— Você realmente pensa assim? — Perguntou meu tio, olhando para mim com os olhos avermelhados.

— Bem, — disse eu, abaixando a cabeça — acho que a maior coisa é que minha escola é uma escola de ensino médio e ensino fundamental combinados. Então, para cada aluno como eu que passou no teste, há pelo menos dois que já estavam lá há vários anos e ganharam uma vaga de graça no sistema de escada. O que não me incomodaria tanto se não fosse como eles já formaram essas panelinhas bem estabelecidas e tal... tão fechados para o resto de nós…

— Oh? E por que isso te incomoda?

— Bem, acho que só parece um pouco injusto para pessoas como eu, que realmente se esforçaram para estudar e entrar na escola, apenas para serem tratadas como excluídas.

— Ah, entendi! Sim, nepotismo em sua melhor forma — e desde tão cedo!

— É como, ótimo, faz eu me sentir como se não pertencesse antes mesmo de eu ter uma chance de me mostrar... Deus me livre de algum deles ter que sair de suas zonas de conforto. Eu adoraria ver o que aconteceria se eles tivessem que se virar sem seus pequenos círculos sociais e grupos de amigos para contar...

— É isso aí, garoto! Fale para eles!

— Quase queria que um meteorito caísse diretamente em cima da minha escola. Apenas transformaria tudo em uma grande cratera.

— Um meteorito! Ha! Isso sim mostraria para esses ingratos o que é!

Meu tio Kurehiko soltou uma gargalhada divertida. Eu podia sentir meu humor ficando mais leve enquanto desabafava minhas frustrações também. Mas antes que tivéssemos a chance de escolher sobre o que reclamar em seguida, um jovem, que parecia ter a idade de um universitário, se aproximou de uma das mesas próximas.

— Com licença, você se importaria de abaixar um pouco o volume? — ele disse. — Tem outras pessoas aqui tentando aproveitar também, sabe?

Meu tio Kurehiko fez uma expressão surpresa — então rapidamente levantou um canto da boca em um sorriso sem jeito enquanto se curvava apologeticamente.

— Ah, sim... Peço desculpas. Vamos tentar manter o volume baixo…

Enquanto meu tio murmurava essa desculpa, eu me vi estranhamente surpreso; essa era a primeira vez que o via ser tão dócil e submisso com outra pessoa assim. O jovem voltou para sua mesa e se juntou a outros três amigos, todos com estilos de cabelo e roupas semelhantes, parecendo também universitários.

— Caramba — disse um deles. — Quem é que traz o filho para o bar, afinal?

— Pais tóxicos, esses — disse outro. — Dá pena de quem tem que ficar ouvindo o pai vagabundo se queixando e reclamando assim.

— Nem me fale — disse o terceiro. — Se eu acabar assim, espero que algum de vocês me bata na cabeça com uma pá quando eu não estiver olhando e me coloque para descansar.

Uma gargalhada irrompeu na mesa deles enquanto os jovens se divertiam à nossa custa. Eu fingi não ter ouvido, e o tio Kurehiko também. Mas eu percebi pela expressão dele e por alguns pequenos gestos que ele estava se sentindo um pouco desconfortável agora. A partir daquele momento, ele baixou o tom de voz em cerca de dois níveis e começou a falar sobre assuntos totalmente inofensivos pelo resto da noite. Eu sabia, lá no fundo, que esse não era o tipo de conversa que ele queria ter comigo, mas eu concordei com a cabeça de qualquer forma.

Depois que pagamos a conta e saímos, eu vi que as primeiras estrelas da noite começaram a aparecer por trás das nuvens.

Pessoas de negócios indo para casa de trabalho apressavam-se pelas calçadas. Meu tio Kurehiko e eu caminhamos juntos até a estação — eu para pegar minha bicicleta no bicicletário e ele para pegar o trem de volta para casa. Durante todo o tempo, um silêncio desconfortável pairava sobre nós.

— Que droga, esses universitários acabaram com o clima — eu disse.

— Hmph — meu tio resmungou. — Só uns adolescentes desordeiros bebendo com a grana dos pais, com certeza. É assim que os filhos de famílias ricas sempre acabam quando crescem — tão rápidos para zombar dos outros porque nunca passaram por isso. São, sem dúvida, as pessoas menos compassivas do planeta.

— Você poderia ter se levantado e dito algo, sabia?

Eu disse isso como se estivesse o repreendendo — e estava, mas não porque estivesse chateado com ele. Eu só estava triste de ver meu tio se deixar abater assim. Sim, era natural pedir desculpas quando alguém te pede educadamente para não fazer algo, e sim, era boa educação abaixar o tom de voz em um lugar público. Mas essa não era a pessoa que eu queria que meu tio fosse — não era sua etiqueta social que eu gostava nele.

— Não, garoto. Eu realmente não poderia — disse o tio Kurehiko.

— Por quê? — eu perguntei.

— Porque eu percebi que era uma briga que eu não poderia ganhar. Nem com palavras, nem com meus punhos, se realmente fosse necessário. Então eu simplesmente fugi.

— Covarde.

— Sim, eu sou, acho.

Ouvi-lo admitir isso tão prontamente me deixou sem palavras — e, para ser bem honesto, me fez sentir uma indignação surpreendente. Talvez uma parte de mim tivesse esperado que ele negasse, pois eu sabia, lá no fundo, o quão parecidos nós realmente éramos.  

— Então, acho que vou ter que ficar mais forte se não quiser acabar sendo um covarde fraco como você — disse, zombando, tentando ao máximo provocar uma reação dele. Mas, para minha decepção, nem isso conseguiu fazer com que ele respondesse como eu esperava.  

— Agora você entendeu, meu garoto — disse o tio Kurehiko. — Sim, nenhuma quantidade de simpatia ou compaixão entre os fracos pode jamais derrotar o irrefutável argumento de que "o poder é que faz o certo"... Mas ouça-me, Kayato.  

Chegamos à estação e ficamos ali, de frente um para o outro, por um momento.  

— Se não há lugar neste mundo para ninguém além dos fortes sobreviver — disse ele —, então isso não indica falha alguma em mim, mas sim que algo está podre no mundo em si. Eu posso ser um fraco — mas isso, por si só, não me torna errado.  

Com isso, o tio Kurehiko virou-se rapidamente e passou pela catraca, sua figura torta desaparecendo rapidamente na multidão de trabalhadores de escritório com postura ereta.

*

 

Esta era a terceira vez desde que o timefreeze começou que eu sonhava com o passado. O que parecia muito, pelo menos para mim — especialmente porque eram sonhos vívidos, recriações quase exatas de eventos reais exatamente como eu me lembrava, ao contrário dos sonhos comuns, mais confusos e incoerentes. Fiquei me perguntando se isso tinha algo a ver com os tipos de camas nas quais eu estava dormindo, como a da enfermaria da escola primária ou este sofá de café, por exemplo. Eu ouvira dizer que era mais comum ter sonhos lúcidos nas fases mais superficiais do sono, afinal. Ou poderia haver outra explicação para isso? Não fazia ideia, mas não parecia ser apenas uma coincidência — se algo, parecia quase como se meu subconsciente estivesse tentando me dizer algo. Algo vital.  

— Nngh…  

Enquanto estava ali perdido em pensamentos por um tempo, ouvi Akira gemendo enquanto dormia. Sentei-me e olhei para o sofá onde ela se revirava. Seus olhos estavam bem fechados e contraídos, e ela pressionava uma das mãos contra o peito, como se estivesse tendo dificuldade para respirar.  

Gotas de suor também formavam-se em sua testa. Algo claramente não estava certo com ela.  

— Iguma-san?  

Sem poder tocá-la para acordá-la, só pude chamar seu nome.  

Quando ela não respondeu visivelmente, tentei novamente, desta vez com uma voz mais alta. Finalmente, após algumas tentativas, seus olhos se abriram de repente, aterrorizados.  

— Você está bem? — perguntei.  

Os olhos de Akira deslizaram para mim. Então ela soltou um suspiro, relaxando lentamente.  

— Ah, é você, Mugino… Sim, estou bem. Só estava tendo um pesadelo ruim, só isso.  

— Tem certeza? — perguntei. — Parecia que você estava sentindo muita dor...  

— Nah, está tranquilo. Já estou acostumada com isso. Não é a primeira vez nem nada.  

Isso não me tranquilizou muito. Mas pelo menos ela não parecia estar fisicamente mal ou sentindo dor de verdade, então acreditei nela.  

— Bem, ok — disse. — Vou voltar a dormir então.  

— Espera, é... Mugino? — disse Akira, chamando-me enquanto eu estava prestes a voltar para meu sofá.  

Ela se sentou para me impedir de ir, então me virei para olhá-la. Ela me encarava com os lábios entreabertos e tremendo — como se tivesse estado prestes a me contar algo, mas tivesse ficado com medo no último minuto.  

— Quer conversar um pouco? — Perguntei, tentando chegar ao meio-termo.  

Eu pensei que ela provavelmente ainda estava um pouco abalada com o pesadelo, e que não conseguiria voltar a dormir tão cedo. Mas aparentemente eu estava errado, pois ela abaixou a cabeça em resignação e balançou negativamente.  

— Na verdade, não. Está tudo bem — disse ela. — Não acho que esteja pronta para falar sobre isso ainda.  

— Você... não acha que está pronta? — disse, confuso.  

— Ah, quero dizer, é... não é um grande problema nem nada!  

Ela estava sendo incomumente evasiva, recuando de qualquer coisa que tivesse pensado em me contar. Tive que admitir que isso só me deixou mais curioso.  

— Enfim, desculpa — disse ela. — Acho que também devo dormir. Te conto outra hora.  

— Er, sim, ok... Parece bom.  

Akira colocou uma mão na testa e se deitou novamente.  

Não foi uma sensação boa ir dormir com uma grande interrogação na minha cabeça, mas não iria pressioná-la sobre isso. Enfiar o nariz nos negócios um do outro não nos faria bem a nenhum dos dois, e eu estava muito cansado para ter discussões mais profundas naquele momento. Então voltei para o meu sofá e me deitei de novo para dormir.

*

 

Depois de atravessarmos o centro de Fukushima, pegamos a estrada secundária para o sul (ainda a pé, obviamente). Estávamos caminhando pela Rota Nacional 4, desde Morioka. De acordo com um guia de viagens que eu havia folheado em uma livraria, ela era a estrada mais longa do Japão, indo de Aomori a Tóquio. Isso significava que, enquanto continuássemos seguindo a rodovia, eventualmente chegaríamos ao nosso destino final, sem risco de nos perdermos.  

Dito isso, podia ficar bem entediante andar pela mesma estrada por tanto tempo. Fizemos alguns desvios sempre que precisávamos de uma pausa ou uma mudança de cenário. E foi exatamente o que fizemos agora: depois de nos cansarmos rapidamente da paisagem monótona ao longo da estrada secundária, paramos para conferir um pequeno parque ao longo da rodovia. Ele ficava ao lado de um templo antigo e, talvez para reforçar essa conexão, havia vários prédios antigos espalhados pelo parque, incluindo uma pagoda de cinco andares e recriações de residências de camponeses e samurais. O parque inteiro parecia ter um tema de reaproximação com a história local.  

— Quer dar uma olhada dentro de alguns desses? — Perguntei.  

Akira balançou a cabeça.  

— Nah, não ligo muito para história e essas coisas. Quer dizer, não me importo de dar uma olhada se você quiser, mas é isso.  

— Humm... Nah, acho que estou bem por agora. Meus pés estão um pouco cansados mesmo. 

— Vamos procurar um lugar para sentar, então — disse Akira, caminhando à frente.

Depois de passar por algumas instalações do parque, chegamos a uma grande área aberta com um gramado vasto, alguns brinquedos de playground e um lago. Caminhamos até a beira da água e decidimos fazer uma pausa ali. Me agachei, sentando com as pernas cruzadas na grama, abri a mochila e tirei um bolinho de feijão vermelho que havia comprado mais cedo. Massageando minhas panturrilhas com a mão livre, comecei a comer. Eu tinha ganhado um pouco de músculo desde que comecei a caminhar todo dia — e sentia que meus abdominais estavam mais definidos também.

Enquanto eu estava ocupado enchendo a barriga, Akira estava jogando pedras no lago — ou tentando, pelo menos, já que cada pedrinha que ela jogava ficava suspensa no ar bem antes de tocar a superfície da água. Mas depois ela jogava outra pedrinha sobre a primeira, e depois mais outra, até que eventualmente formava um pequeno agrupamento de pedras flutuantes, como um planetinha em miniatura no ar.

Era um joguinho que Akira gostava de brincar sozinha de vez em quando; não parecia tão divertido para mim, mas era bom o suficiente para passar o tempo, eu supus.

— Você tem boa mira — eu disse.

— Ah, não muito — respondeu Akira. — Acho que é bem mediana.

Curiosamente, a pedra que ela jogou exatamente quando disse isso foi a única que errou o alvo. Fiquei com pena de tê-la distraído e estragado sua sequência.

— Já fez algum esporte ou algo assim? — perguntei.

— Sim — respondeu ela. — Joguei basquete por um tempo.

— Uau! Isso é legal.

Isso me surpreendeu, por algum motivo. Talvez fosse difícil para mim imaginar Akira participando de alguma atividade em equipe.

— É, eu curtia bastante quando estava no ensino fundamental — explicou ela. — Mas larguei depois do primeiro mês no ensino médio.

— Por que? — perguntei.

— Não sei te dizer, honestamente. Acho que só perdi o interesse de repente. Não era como se meus colegas ou treinadores fossem ruins ou algo assim. Não tenho certeza do que aconteceu...

Akira puxou o braço para trás e lançou outra pedra — que então colidiu com as outras em sua criação, fazendo um som de estalo se espalhar pelo conjunto de pedras do tamanho de uma bola de vôlei.

— Vai saber — disse ela. — Talvez eu estivesse curtindo mais o ensino médio agora se tivesse continuado um pouco mais com isso.

Akira parou de jogar pedras nesse momento e veio sentar ao meu lado. Sua tristeza latente era evidente quando a vi de perfil.

— Bem, eu nunca fiz esportes... — disse. — Mas posso totalmente me identificar com essa coisa de ficar obcecado por algo em um minuto e, no seguinte, perder completamente o interesse. Não consigo contar quantas vezes perdi o interesse em continuar com um mangá que eu estava acompanhando e esperando toda semana...

— Isso não é geralmente culpa da história? — disse Akira. — Tipo, o enredo ficou monótono, ou as coisas estavam muito lentas, ou qualquer coisa assim?

— Não, acho que não é bem isso, ou será? — respondi.

— Não me pergunte. Não sei da sua vida.

Agora eu não tinha tanta certeza. Mas estava razoavelmente certo de que poderia pensar em outros exemplos de como de repente perdi todo o entusiasmo por algo, sem nenhuma razão particular, mesmo que nenhum estivesse vindo à mente naquele momento. Para cada vez em que você se apaixona por algo tão intensamente que parece que alimenta o fogo do seu ser, haverá outra vez em que essa chama simplesmente se apaga por um motivo pequeno, relacionado ou não.

As pessoas não conseguiam controlar o que amavam.

— Bem, acontece. Às vezes você só se cansa de algo — disse. — Só precisa encontrar outra coisa pela qual você seja apaixonado para substituir.

— É, se fosse assim tão fácil — disse Akira, jogando a frase de maneira desinteressada, e então deitou-se de costas na grama.

*

 

Passamos uns vinte minutos descansando ali, e depois saímos do parque e voltamos para a estrada indo para o sul. Parecia que estávamos nos aproximando de uma área metropolitana, então o número de prédios altos e comércios ao longo da estrada aumentou ainda mais.

— Quanto tempo falta para chegarmos a Tóquio, mesmo? — perguntou Akira enquanto caminhávamos.

Fiz rapidamente alguns cálculos na minha cabeça para dar uma estimativa.

— Acho que deveríamos chegar em mais duas semanas, mais ou menos — respondi.

— Caramba — disse Akira. — Ainda está mais distante do que eu pensei.

— Mas provavelmente não vai parecer tão longo, já que estaremos em áreas urbanas o tempo todo. Nada de estradas rurais longas ou túneis de cinquenta quilômetros como na primeira parte da viagem.

— Aquele túnel maldito, cara... Parecia que a gente passou uma semana inteira atravessando aquilo. Nunca quero passar por lá de novo.

— É, foi bem difícil mesmo — eu disse com uma risada forçada, tentando ao menos me conectar um pouco com o olhar de lembrança amarga que agora tomava conta do rosto dela. Mas, para ser sincero, eu ainda não tinha esquecido a onda de euforia que senti ao chegar pela primeira vez na estação no fundo do mar — aquela sensação de ter bugado o jogo e ido parar numa área que os desenvolvedores nunca pretendiam que alguém visse. Eu sabia que ia guardar aquele momento para o resto da vida. Digo, quantas pessoas têm a chance de viver algo assim?

— E o que você vai fazer quando o tempo começar a andar de novo, Mugino? — perguntou Akira, casualmente, como se estivesse perguntando sobre meus planos para o fim de semana.

Na verdade, não tínhamos garantia de que o tempo fosse realmente retomar. Toda essa nossa odisséia poderia ser completamente em vão, e Akira sabia disso também — mas eu imaginei que ela estivesse só jogando a pergunta para puxar conversa, então não havia necessidade de eu ficar pensando demais nisso. Ainda assim, tive dificuldades para encontrar uma resposta.

O engraçado era que eu já tinha pensado bastante em algumas coisas nesse sentido — como os trabalhadores e clientes dos diversos hotéis, restaurantes e lojas de conveniência dos quais tínhamos roubado reagiriam ou seriam afetados pelas nossas ações quando o tempo congelado acabasse. Mas quanto ao que eu mesmo faria depois disso, não tinha pensado nem um pouco sobre o assunto. Não tinha planos, nem algo que estivesse esperando ansiosamente para fazer de novo. Se tivesse que adivinhar, provavelmente haveria um pouco de drama relacionado ao fato de eu ter desistido da viagem escolar sem permissão, mas depois eu voltaria à minha vida monótona de sempre.

— Provavelmente nada demais — disse. — Não pensei muito sobre isso.

— Eu também — respondeu Akira. — Não tenho planos nenhum. Não sei o que diabos eu vou fazer.

Eu me senti estranhamente aliviado em saber que ela e eu estávamos na mesma situação — como se tivesse chegado despreparado para a aula no dia de uma grande prova, só para descobrir que não era o único que não havia estudado para ela. Era aquele tipo de sensação de camaradagem.

— Mas eu vou te dizer… Eu meio que não quero voltar para Hokkaido.

— Ah… É, entendo.

Pelo pouco que ela compartilhou sobre a situação familiar dela, eu consegui entender por que ela se sentia assim. Mas o que ela faria nesse caso? Onde moraria, e para qual escola iria? Ela estava planejando ficar no sul e tentar arranjar um emprego de meio período, ou algo assim? Talvez ela não soubesse o quanto custa viver em Tóquio. Não era o tipo de lugar onde um adolescente poderia se sustentar sozinho sem uma rede de segurança. Nem que isso fosse diferente em qualquer cidade grande.

— Isso é uma droga. Por que eu não posso simplesmente encontrar cem milhões de ienes caídos por aí no chão, sabe? — Akira lamentou, brincando, mas eu podia ouvir um tom de sinceridade neste pedido absurdo.

Afinal, não era como se acabar com a pausa no tempo fosse resolver os problemas da Akira. Se algo, só ia forçá-la a enfrentá-los. E não havia garantia de que conversar com a família dela ia melhorar a situação. Na verdade, podia até piorar. Não importava como as coisas se desenrolassem, a dura realidade era que o único destino aguardando-a quando o tempo começasse a seguir novamente eram mais estresse e sofrimento. Nesse caso, talvez fosse melhor se o mundo simplesmente...

— Então, ei, o que você acha que vai acontecer com todos os banheiros que a gente usou e tal? — Akira perguntou de repente, interrompendo meu monólogo interno.

— O-que você quer dizer com isso? — Perguntei, meio confuso.

— Bem, eu só andei pensando nisso por um tempo, sabe? Porque eu imagino que você também tenha puxado a descarga depois de usar, certo? Então, você acha que todos esses banheiros, em todos esses lugares, vão dar descarga de uma vez só quando isso acabar ou o quê?

— Ahhh, entendi o que você está dizendo...

Fiquei meio perdido com a lógica do banheiro de repente, mas fiquei aliviado em ouvir que a voz da Akira tinha voltado ao seu tom despreocupado de sempre. Talvez eu realmente precisasse parar de pensar tanto — não era como se eu me preocupar com os problemas dela fosse resolver alguma coisa. Soltei um pouco os ombros.

— Sim, você deve estar certa — disse. — Acho que todos vão dar descarga ao mesmo tempo quando a pausa no tempo acabar.

— Caramba, aposto que isso vai assustar bastante gente que ainda estava usando esses banheiros. Imagina ouvir uma descarga de repente de uma cabine vazia quando você acha que está sozinho lá dentro.

— Hahaha, sim, isso definitivamente seria... — Eu ia dizer "assustador", mas a palavra ficou presa na minha garganta.

Algo parecia estranho de repente. Eu não sabia explicar o que, mas era uma sensação parecida com déjàvu — quase como se eu já tivesse tido essa mesma conversa antes. Sobre banheiros, né? Não, com certeza não. Eu estava quase certo de que o assunto não tinha nada a ver com isso. Depois de refletir um pouco mais, percebi que duas frases em particular se destacaram para mim: "em todos esses lugares diferentes" e "ao mesmo tempo." Por algum motivo, essas palavras específicas começaram a me incomodar, como uma pedrinha dentro do sapato que eu não conseguia ignorar, e se recusavam a sair até que eu finalmente lembrasse o que estava tentando resgatar da memória.

— Falando em assustar as pessoas, — Akira continuou enquanto eu tentava lembrar, — aposto que os outros caras do seu grupo vão ficar bem assustados também, porque você sumiu de repente, né?

— Nah, duvido muito — disse. — Eu estava bem atrás deles desde o começo, então acho que eles não vão perceber minha falta por um tempo. E não é como se eu tivesse realmente lá, para eles se importarem...

— Ei, nada de ficar se martirizando. Ninguém gosta de lidar com pessoas que não param de reclamar que todo mundo as odeia. — Akira me olhou de forma desaprovadora. Mas eu não estava pedindo simpatia — era só a realidade.

— Desculpa, não estava reclamando — disse. — Até que é meio bom ser tratado como se você nem existisse, para ser sincero. Você não vai causar problemas para ninguém, e ninguém vai se sentir obrigado a tentar te incluir quando você só quer ficar sozinho.

Fica mais difícil ser zoado quando você é invisível também, pensei internamente.

Mas, imediatamente após esse pequeno pensamento não dito, uma epifania me atingiu como um raio, e eu finalmente entendi a verdadeira natureza daquela sensação estranha que eu estava tentando entender. Deus... como eu não percebi isso antes?

— Uh, Mugino? — disse Akira. — O que aconteceu?

Foi só então que percebi que tinha parado completamente. Akira se aproximou e me olhou com uma expressão confusa.

— Quer dar uma pausa rápida? — perguntou.

— Não, não estou cansado nem nada — disse. — Eu só... tive uma pequena realização, só isso.

— Ah não... Parece que é algo bem importante.

Eu acenei com a cabeça, e a expressão da Akira ficou séria.

— Bem, o que você está esperando? Me conta logo.

— Tá, ok.

Para ser honesto, eu realmente não estava ansioso para desenterrar essas velhas memórias novamente. Mas se estava relacionado à nossa situação atual, como eu suspeitava, ela tinha o direito de saber. Enquanto tentava organizar meus pensamentos, comecei a andar novamente, e Akira me seguiu — acompanhando meu ritmo enquanto andávamos lado a lado pela estrada.

— Então, a questão é... essa talvez não seja minha primeira pausa no tempo.

*

 

A história que estou prestes a contar aconteceu quando eu estava no oitavo ano — e desculpe se alguns detalhes estiverem meio confusos. Eu não tenho muitas memórias boas do meu tempo no ensino fundamental, para ser honesto, então acho que acabei bloqueando toda essa fase. Talvez por isso tenha demorado tanto para perceber isso, mas enfim...

Basicamente, havia dois colegas de classe naquela época que eu realmente, genuinamente desejava que morressem ou desaparecessem. Mesmo agora, não consigo olhar para essa parte da minha vida sem sentir bastante raiva desses dois, e isso me faz perceber que eu ainda não superei toda a situação, no fundo. Você já percebeu isso? Como as emoções positivas sempre parecem tão passageiras, mas coisas como raiva, depressão, vergonha ou arrependimento ficam vividamente na sua mente por muito tempo? E não importa o quanto você tente, você simplesmente não consegue esquecer ou seguir em frente? Meio assim que eu me sinto em relação a isso.

Enfim, houve um dia, depois da escola, em que aqueles dois me empurraram para o armário de vassouras da sala de aula e fecharam a porta. Me avisaram para não sair até que me dessem permissão, então, como um idiota, eu simplesmente fiz o que disseram e fiquei lá no escuro. Não pensei nem em tentar quebrar a porta, porque já sabia, por experiência anterior com eles, que eles fariam algo muito pior se eu desobedecesse. Então eu apenas desliguei minha mente por um tempo e tentei esperar, mas obviamente, todo mundo tem seus limites. E eventualmente, eu não aguentei mais ficar preso no escuro, então abri a porta com cuidado.

Não havia mais ninguém na sala. Era só eu e a luz do sol poente entrando pela janela. Lembro-me claramente do brilho da noite naquele dia; provavelmente foi o sol mais vermelho de sangue que já vi. E também lembro que a primeira coisa que fiz foi soltar um suspiro de alívio. Eu estava tão feliz por ver que eles não estavam esperando que eu saísse o tempo todo. Mas assim que fui até minha mesa para pegar minhas coisas e ir embora, senti uma dor repentina no peito.

Uma dor tão forte que eu não consegui ficar em pé, então caí de joelhos no chão da sala.

...E não, eu não estava fisicamente doente nem nada disso.

Eu estava furioso. Completamente angustiado. Não era nem por causa deles — isso não chegava nem perto das piores coisas que eles haviam feito comigo. Não, acima de tudo, eu estava furioso comigo mesmo por ter me sentido aliviado. Como se eu tivesse escapado fácil por ter sido deixado ali, tremendo de medo no armário de vassouras por mais de uma hora, e não tivesse sido torturado de forma pior do que aquilo.

Não me entenda mal, eu ainda detestava aqueles dois. Maldizia seus nomes e desejava que nunca tivessem nascido. Mas, conforme comecei a perceber o quanto eu era patético e inútil em comparação, meu auto-ódio cresceu e passou a superar o meu ódio por eles. Comecei a desejar ser eu quem desaparecesse — porque que diferença faria se eu os tirasse do caminho, se eu era o único que não tinha a força ou coragem para tentar mudar minha realidade? Eu me sentia quebrado, esmagado pelo peso da minha própria inutilidade.

Mas então, a próxima coisa que eu sabia...

Eu estava de volta ao meu quarto, segurando um bastão de metal com uma das mãos. E o sol vermelho de sangue pela janela ainda estava apenas começando a se pôr.

— Hã? — Akira se virou para me encarar, como se tivesse certeza de ter ouvido errado essa última parte. Mas minha história ainda não tinha acabado.

— Então, é isso — continuei. — Como você pode imaginar, eu entrei em pânico. Quero dizer, eu estava na escola um minuto, e no minuto seguinte já estava no meu quarto. E eu nem sabia de onde tinha tirado aquele bastão de metal. Comecei a ficar bastante assustado, então corri para fora e joguei o bastão em um dumpster próximo, depois corri de volta para minha casa. No dia seguinte, na aula, o professor anunciou que os dois meninos haviam sofrido ferimentos graves nas pernas — ambos ao mesmo tempo, mas em lugares completamente diferentes. Aparentemente, havia sinais de que ambos haviam sido espancados repetidamente com um objeto contundente, com um deles tendo até múltiplas fraturas... Bem, de acordo com os rumores que ouvi pela turma, pelo menos.

— Então, o que você está dizendo é... — Akira começou, engolindo em seco.

Mantive meus olhos fixos na estrada à frente e disse: — Sim. Tenho quase certeza de que fui eu quem fez isso.

Por um tempo, o silêncio reinou.

— Mas... Mas, tipo... — Akira gaguejou, aparentemente relutante em aceitar essa explicação. — Você não tem certeza de nada, né?

— Bem, é, não me lembro — disse. — Não tenho nenhuma lembrança do que aconteceu entre eu caindo de joelhos na sala de aula e, de repente, estar de volta em casa.

A única razão pela qual eu conseguia especular com tanta calma sobre a possibilidade de ter espancado as pernas dos meus colegas era porque não me lembrava disso, e era bem difícil sentir culpa por algo que você não lembrava de ter feito. Mas, pensando logicamente sobre a situação, eu estava 80 a 90 por cento certo de que fui eu quem balançou o bastão.

— Bem, então não há uma prova definitiva de que foi você! — Akira afirmou.

— Se você conseguir pensar em outra explicação que faça sentido, estou ouvindo. Sempre demorava mais de trinta minutos para voltar para casa da escola. Não tem como o sol não ter se posto um pouco nesse tempo.

— Mmmm... Bom, é definitivamente estranho, isso eu admito... Mas não acho que dá pra afirmar com certeza uma coisa ou outra só com base nisso.

Ela ainda não estava satisfeita com a minha hipótese. Que outras evidências eu poderia lhe dar? Será que foi outro timefreeze? Ou só aquele e o da escola primária? E o que aconteceu quando eu estava no ensino fundamental? Será que já havia tido alguma experiência inexplicável na época? Momentos em que eu senti que havia sido teleportado de um lugar para outro, ou—

— Ah, espera — falei.

Será que aquilo também foi um timefreeze?

— O que foi? — Akira perguntou. — Lembrou de mais alguma coisa?

— S-Sim, acho que tem outro, até antes disso, quando eu estava no ensino fundamental...

Enquanto Akira e eu caminhávamos sob um viaduto, eu senti o menor pressentimento de inverno em sua sombra.

— Acho que devia estar no terceiro ou quarto ano, provavelmente... Mas sim, eu lembro especificamente que meus pais tiveram uma briga em um dia em particular — disse, tentando recordar a ordem exata dos acontecimentos enquanto os contava. — Foi uma briga bem feia, e eu não queria ouvir, então fiquei trancado no meu quarto, me sentindo um pouco abalado. Mas então, no momento seguinte, eu estava bem na porta do apartamento do meu tio Kurehiko. Quase como se tivesse aparecido lá num piscar de olhos...

Naquela época, eu ainda era bem novo, então lembro de ter me sentido mais aliviado por estar longe da briga dos meus pais do que assustado e confuso com o fato de como eu tinha chegado lá. O que provavelmente foi o motivo pelo qual nunca questionei isso até agora.

— E como isso tem a ver com o timefreeze? — perguntou Akira.

– Bem, é bem parecido com o que aconteceu quando eu estava no ensino fundamental, em que é mais um caso de eu estar em um lugar por um minuto, e no seguinte, estar em um lugar completamente diferente. Então, sei lá, talvez eu tenha ido a pé para a casa do meu tio enquanto o tempo estava congelado. Tipo, do jeito que nós dois estamos fazendo agora.  

Interessante é que eu tive sonhos que correspondiam a essas duas experiências recentemente também, justamente durante a nossa viagem. Não tinha certeza se era apenas uma coincidência ou se o timefreeze estava de alguma forma trazendo essas memórias à tona, mas não teria me surpreendido nem um pouco se estivessem ocorrendo alguns poderes estranhos dentro da minha psique, como resultado dessa experiência sobrenatural.  

Akira ainda não parecia muito convencida.

— Não sei. Se o que você está dizendo for verdade, como é que, em ambos os casos, você não se lembra de nada que aconteceu durante o timefreeze? Tipo, isso é a parte mais importante.  

— É, eu sei… Também não faz muito sentido para mim.  

— Além disso, por que você nunca mencionou nada disso antes? Não estou muito certa de como me sinto sobre você esconder esse tipo de informação de mim.  

— Olha, eu não estava escondendo nada, tá? Eu só não fiz a conexão até agora porque não estava super-analisando essas coisas. Se você não percebeu, eu realmente não gosto de pensar no passado muito, se eu puder evitar…  

— Ah. Entendi.  

A expressão desconfiada de Akira agora estava visivelmente desconfortável. Talvez eu tivesse feito um trabalho ruim ao explicar tudo isso; eu me senti mal por sobrecarregá-la com todas essas informações de uma vez. Ou então, simplesmente não parecia um argumento muito confiável para ela desde o início. Ela estava certa ao dizer que provavelmente seria muito mais convincente se eu conseguisse lembrar de qualquer coisa que aconteceu durante o fenômeno em si.  

— Desculpa. – disse Akira. – Foi mal.  

— Hã? Espera, por que? – perguntei.  

— Não sei… Só por te fazer trazer à tona essas memórias antigas e tal.  

— Ah… Não, tudo bem. Quero dizer, a gente teria que falar sobre isso uma hora, né.  

Ela não tinha nada para se desculpar. Se tivesse que ser alguém se desculpando, seria eu, por ter feito tudo isso vir à tona. Na verdade, eu até me senti grato por ela estar preocupada comigo. Aliás, percebi que ela vinha sendo bem mais atenta aos meus sentimentos ultimamente. Quando refletia sobre o quanto nossa relação havia evoluído desde a primeira vez que nos conhecemos, quase me sentia emocionado.  

— Mas, se você estiver certo sobre tudo isso, — disse Akira, — então significa que o timefreeze tem que acabar uma hora ou outra, né?  

— É, exatamente, – respondi. – Era basicamente isso que eu estava tentando dizer.  

Mais do que qualquer teoria sobre a mecânica do timefreeze ou o que o causava, essa era a lição mais importante: eles aconteciam — ou pelo menos poderiam — chegar ao fim. Claro, ainda não sabíamos como fazer as coisas voltarem a se mover, mas o simples fato de sabermos que não precisaríamos ficar presos em um mundo fora do tempo para sempre já era o suficiente para me fazer sentir como se um peso imenso tivesse sido retirado dos meus ombros. Eu imaginei que essa revelação seria um grande alívio para Akira também — mas talvez eu estivesse errado.  

— Entendi… — ela disse. — Acho que era só uma questão de tempo, né…?  

Ela não parecia nada animada com isso.  

Essa não era a reação que eu esperava. Na verdade, eu achava que ela poderia literalmente pular de alegria, ou pelo menos soltar um suspiro profundo de alívio. Mas, pensando bem, ela começou a pergunta dela com um "se" eu estivesse certo sobre tudo isso, não foi? Então talvez ela só não estivesse completamente convencida. O que talvez fosse a maneira mais responsável de lidar com isso, para ser bem honesto. Melhor para ela continuar cética caso minha teoria estivesse errada do que criar expectativas só para vê-las serem destruídas ainda mais no futuro. Eu até conseguia entender a vontade de ser emocionalmente cautelosa nesse sentido. E ainda assim, pelo olhar sério em seu rosto, parecia que havia algo mais por trás disso…  

— Então… você foi nas pernas, né? — ela murmurou, com o olhar fixo no chão. Ela diminuiu um pouco o ritmo da caminhada. — Você não foi na cabeça, nem no peito… Você escolheu bater nas pernas, né?  

— Be-bem, sim, quer dizer… assumindo que realmente fui eu, claro, – respondi hesitante, sem saber como interpretar o tom de voz dela.  

Akira não disse mais nada. Seu rosto ficou frio e sem expressão, mas de uma forma claramente diferente de apatia ou ressentimento. Eu não sabia exatamente o que ela queria confirmar me perguntando isso — talvez fosse só curiosidade mesmo. Se fosse isso, eu poderia tentar adivinhar, mesmo sem ter nenhuma lembrança de realmente ter feito aquilo.  

— Mas, ah… Eu não sei, – disse. — Acho que provavelmente estava tentando encontrar uma maneira de causar algum dano sem ir longe demais, por mais ruim que isso soe. Porque não importa o quanto eu odiava aqueles dois, eu nunca realmente desejaria matar outra pessoa. E, obviamente, bater no peito ou nas costelas poderia facilmente ser fatal… Então, é, acho que foi por isso que fui nas pernas.  

Tentei abordar a situação do ponto de vista de que eu ainda estava pensando um pouco de forma racional na época. Uma grande suposição, é verdade. Eu imaginei que provavelmente tivesse quebrado ossos no primeiro, e depois me contido no segundo. Ou então, fiquei com o pé atrás pela primeira vez, mas depois a raiva venceu. De qualquer forma, ainda era um ato indefensável. Só o fato de que eu poderia ter a ferocidade e a malícia para bater em dois colegas desarmados com um bastão de metal me dava um arrepio de terror. E ainda assim, havia uma parte de mim que queria acreditar que eles simplesmente tinham o que mereciam depois de toda a tortura implacável que fizeram comigo.  

— É, já imaginava, – Akira disse secamente, e depois deu uma risada de escárnio. Eu não fazia ideia do que se passava pela cabeça dela naquele momento; me perguntei se talvez eu tivesse dito algo que a irritou ou ofendeu acidentalmente. Ela esticou as costas enquanto andava, olhando para o horizonte. — Ah, olha! Tem um mini-mercado ali. Que tal a gente ir pegar um almoço?  

— Ah, claro. Parece bom para mim.  

Akira saiu em uma corrida rápida. Não havia mais nenhuma tristeza em seu tom ou em sua postura. Ela parecia completamente normal de novo — mas eu não pude deixar de sentir que algo estava errado. Qual era aquela sensação desconfortável que eu percebi nela agora há pouco? E por que parecia que ela tinha simplesmente ignorado tudo o que acabamos de discutir sobre o timefreeze? Ela me deixou com várias perguntas e preocupações, e eu não estava me sentindo bem com isso.

*

 

Depois de viajar por Fukushima, seguimos para Tochigi. Finalmente, estávamos em Kanto — o último trecho da nossa jornada estava agora diante de nós. Estávamos agora atravessando a cidade de Nasu, bem na fronteira com Fukushima. Uma estrada sem fim através de campos e terras agrícolas se estendia além de nossa vista.  

Três dias se passaram desde nossa conversa sobre o timefreeze, e durante esse tempo, eu estava tentando organizar mentalmente tudo o que sabíamos (ou achávamos que sabíamos) sobre o fenômeno. Até agora, eu tinha resumido tudo em três pontos principais.  

Ponto #1: Eu provavelmente experimentei pelo menos dois outros timefreezes no passado — o primeiro quando eu estava no ensino fundamental e o segundo no ensino médio.  

Ponto #2: Eu não me lembro de nada que aconteceu enquanto o tempo estava parado durante esses dois casos. Eu tinha bastante certeza de que não tinha simplesmente bloqueado tudo isso.  

Ponto #3: Muito provavelmente, esse timefreeze eventualmente vai acabar. Isso se baseia na suposição de que eu estava certo sobre o Ponto #1. Obviamente, eu não sabia quanto tempo duraram os dois anteriores, ou se isso variava, e não havia garantia de que este fosse acabar só porque os outros dois acabaram, mas ele não deveria durar para sempre.  

E a partir desses três pontos, eu poderia tirar uma única conclusão.

Sempre que um timefreeze acabava, eu perdia toda a memória do que havia acontecido.

Isso explicaria porque parecia que minha mente simplesmente pulava de um lugar para outro após os dois primeiros episódios. Embora, para ser honesto, eu ainda não estivesse totalmente convencido dessa teoria. Era totalmente possível que eu estivesse completamente errado aqui. Mas, se eu estivesse certo, e se eu realmente perdesse minhas memórias do período em que o tempo estava congelado, isso significaria que eu esqueceria completamente de Akira e nossa jornada juntos. Quando eu disse isso a ela, seus olhos se arregalaram em espanto.

— Espera, você vai simplesmente esquecer tudo?!

— Se o padrão for correto, sim.

— Cara, sério…? Mas isso é tão—

Akira começou a falar, mas então se conteve. Ela engoliu a palavra que estava prestes a sair de sua boca, e então soltou um suspiro pensativo.

— Acho que isso significa que eu provavelmente vou esquecer tudo sobre você também, né…?

— Quer dizer, não sabemos disso com certeza. Tipo, se for um fenômeno especificamente centrado em mim e você só foi sugada para isso de algum jeito, então pode ser diferente para você, hipoteticamente. Difícil de dizer, já que é seu primeiro timefreeze e tal.

— Bem, pelo que me lembro, sim.

— Certo — eu disse — acho que é possível que você tenha apenas esquecido, assim como eu. Você se lembra de ter tido alguma experiência estranha, como a que eu descrevi, quando era mais jovem, Iguma-san?

— Eu pensei nisso, sim. Mas tenho quase certeza de que a resposta é não. Tipo, posso lembrar de algumas experiências estranhas ou assustadoras, talvez, mas definitivamente nada que fizesse você achar que havia alguma coisa com o tempo envolvida.

— Entendi…

Mordi levemente o lábio enquanto ignorávamos o sinal de pare e atravessávamos a faixa de pedestres. Quando passamos por trás de um grande caminhão, o cheiro forte de fumaça de escapamento preencheu minhas narinas. Eu comecei a ser mais cauteloso ao atravessar a rua agora, já que me preocupava que o timefreeze pudesse terminar a qualquer momento.

— Acho que talvez eu tenha realmente te arrastado para isso de algum jeito, então — eu disse.

— Hã? O que te faz dizer isso? — perguntou Akira.

— Quero dizer, faz sentido. Eu já passei por pelo menos três desses fenômenos, e não acho que seja coincidência que você tenha tido o seu primeiro no exato mesmo dia que eu estava visitando sua cidade natal. Não tenho dúvidas de que tudo isso é minha culpa. — Minhas unhas se cravaram nas palmas das mãos enquanto eu abaixava a cabeça de culpa. — Me desculpa mesmo, Iguma-san. Se eu não tivesse aceitado ir naquela viagem de classe estúpida, nada disso teria acontecido...

— E-Ei, para com isso. Eu já te disse que não consigo lidar com todo esse drama... — Akira se mexeu desconfortavelmente com sua franja. — Olha, não importa de quem foi a culpa, tá? O que passou, passou. Temos que seguir em frente.

— Você é muito doce, obrigado.

— Não. Isso não tem nada a ver com isso.

Akira virou a cabeça para longe, tentando manter a postura.

— Mas vou te falar uma coisa — ela disse em voz baixa enquanto abaixava o olhar. — Você não é o único culpado aqui. Tenho quase certeza de que sou parcialmente responsável também.

Eu não sabia se ela estava dizendo isso para me fazer sentir melhor ou se havia algo mais por trás disso. Mas não tive coragem de perguntar naquele momento, então ambos deixamos a conversa morrer ali.

*

 

Depois de andar um pouco mais, encontramos um pequeno karaokê sozinho na beira da estrada. Isso aconteceu logo depois que começamos a procurar por um lugar para dormir, então discutimos e decidimos ficar ali para a noite. Provavelmente poderíamos ter encontrado uma pousada tradicional ou um hotel, mas nem Akira nem eu estávamos com vontade de andar mais naquele dia.

Entramos no prédio e começamos a procurar uma sala desocupada. Apesar de estarmos bem longe de áreas urbanas, o lugar estava lotado de clientes — embora todos fossem bem idosos. Fiquei me perguntando se estavam fazendo algum tipo de evento para a sociedade de idosos local. Infelizmente, isso significou que só conseguimos encontrar uma única sala vaga — embora, tecnicamente, ainda houvesse espaço suficiente para nós dois dormirmos separados.

— Ah, bem. Vai ter que ser isso mesmo — disse Akira. Ela entrou na sala sem hesitar, nem pensou em dormir em um espaço tão pequeno e fechado comigo. Tive que admitir que sua ousadia nesse aspecto ainda me parecia um pouco desconcertante às vezes. Não que ela tivesse qualquer motivo para se preocupar comigo, obviamente, mas não achava que a maioria das garotas da minha idade estaria tão disposta.

Talvez fosse só um sinal de quanto ela confiava em mim, especificamente.

Coloquei minha mochila no chão e me sentei em um dos sofás de couro desgastado.

— Vou ali usar o banheiro rapidinho — disse Akira, então saiu pela porta.

Olhei ao redor da sala. Essa era, na verdade, a primeira vez que eu estava dentro de um karaokê. Eu me sentia bem desconfortável em cantar na frente de outras pessoas, e não era muito fã de música, para começar. Quando tive algumas oportunidades de ir em eventos do tipo no passado (como em uma festa de fim de ano da turma, por exemplo), sempre recusei.

Pouco depois, Akira voltou para a sala carregando uma verdadeira cornucópia de doces nos braços, que ela começou a colocar empolgada na mesa.

— Fui lá e peguei um pouco de cada um dos outros quartos — disse ela. — Fique à vontade para pegar o que quiser.

E eu ali, me perguntando o que poderia ter levado ela tanto tempo... Eu até considerei reclamar um pouco, mas era difícil me convencer a fazer isso quando vi a alegria infantil e animada em seu rosto. Bem, desde que ela só tenha pegado um pouquinho de cada coisa, acho que tudo bem.

— Cara, faz tanto tempo que não faço karaokê — disse Akira, sentando-se no outro longo sofá de couro. — Você tá afim de cantar alguma coisa?

— Hã?! — eu disse. — Ah, não. Não, não, não — estou tranquilo. Não gosto de cantar na frente das pessoas.

— Caramba, você já descartou isso rapidinho. Tudo bem. Eu também não estou muito afim, então tá tranquilo. Nem que a máquina funcionasse direito agora, né?

Com isso, ela pegou uma caixa de Pocky da mesa. Eu cedi à minha fome e rasguei um pacote de mistura de amendoim apimentado. Enquanto mastigava, as especiarias familiares fazia cócegas nas minhas papilas gustativas.

— Tenho que dizer, não tenho muitas boas lembranças de fazer karaokê — disse Akira, mordendo um pedaço de Pocky.

— Sério? Já teve alguma experiência ruim antes ou algo assim? — perguntei.

— Só uma, na verdade — disse Akira, com uma expressão sombria. — Fui convidada para uma festa de karaokê por uma amiga no ensino fundamental, mas quando chegamos lá, só tinha adolescente do ensino médio. Eram os piores tipos de pessoas que você já viu. Todos cheiravam a cigarro.

— Oof, sim. Dá pra entender porque isso teria sido uma péssima experiência.

— Eu percebi na hora que eles eram super esquisitos, então fingi que precisava ir ao banheiro e simplesmente fugi. Desde então, sempre recuso qualquer convite para karaokê.

Fiquei aliviado ao ouvir que a história não havia ido mais longe do que isso, e que ela havia saído dali sem problemas.

— Bom, obrigado por não ter fugido de mim agora — falei, brincando.

— Ah, por favor — disse Akira. — Você poderia se clonar cem vezes e eu ainda não teria medo de você.

Ela riu, então rasgou um novo pacote de chocolates. Já tinha acabado toda a caixa de Pocky e não é que havíamos pulado o jantar ou algo assim. Talvez ela só tivesse um estômago extra para doces.

— Já pensou em pintar o cabelo e furar as orelhas, Mugino? Sabe, dar uma "bagunçada" no visual? Acho que isso mudaria completamente o seu estilo.

Bagunçada? Ah, espere... isso é gíria de Hokkaido para algo como "desleixado" ou "descontraído", não é?

Toda vez que ouvia Akira usar seu dialeto regional, não conseguia deixar de me sentir um pouco aquecido e confortável, assim como quando via os caninos dela se destacarem quando sorria. Era uma daquelas coisas que me faziam sentir que estava começando a conhecer a verdadeira Akira de uma maneira mais íntima... Ok, talvez isso tenha soado meio estranho, mas basicamente, eu estava feliz por ela se sentir confortável o suficiente para baixar a guarda comigo agora. Na verdade, até queria que ela falasse mais em seu dialeto, mas tinha a impressão de que ela se sentia insegura sobre isso, então eu estava me segurando de apontar para isso. Esperava que, com o tempo, ela usasse mais naturalmente. Isso seria bem legal, pensei.

— Eu realmente não acho que isso ficaria bem em mim — disse. — Além disso, não dói pra caramba furar as orelhas?

— Bem, duh — Akira jogou uma porção de chocolates na boca. — Você está literalmente fazendo um furo na sua orelha.

— Por que você furou as orelhas, Iguma-san? Só achou que ficaria legal?

— Bem, que outra razão teria?

— Sei lá. Para assustar as pessoas e elas não mexerem com você?

— Ahhh, sim, acho que isso também é parte disso. Ou, se eu tivesse que dar outra razão... mmm... — Ela ficou pensando por um momento. — Talvez para aumentar minha defesa um pouco?

— Sua defesa?

— Sim, tipo... me faz sentir mais confiante na minha imagem, sabe? Como se eu pudesse lidar com qualquer coisa que a vida jogue em cima de mim. Toda vez que faço um novo piercing, penso: "É, ok. Eu ainda sou capaz". Sabe? ...Bem, não que eu tenha tantos piercings assim, obviamente.

— Interessante... Ok.

É o que? Aumentar a defesa equipando mais acessórios? Quase parecia que estávamos discutindo sobre Dragon Quest ou algo assim. Mas talvez a lógica por trás disso fosse a mesma, pensando bem.

Como se os acessórios em si não oferecessem nenhuma proteção ou bônus tangível para os membros do time, mas o jeito como os personagens se sentiam ao usá-los aumentava sua vida ou ataque... Era uma maneira interessante de ver as coisas, na verdade.

Enquanto estávamos lá, batendo papo e nos entupindo de lanches, senti o sono chegando aos poucos. Vi que Akira também estava começando a adormecer, então ambos nos acomodamos e nos preparamos para dormir no karaokê, tendo cantado exatamente zero músicas entre nós.

Depois de escovar os dentes e me trocar, adormeci rapidamente no sofá de couro. O problema era que o sofá era tão estreito e escorregadio que, sempre que eu me virava durante o sono, quase caía dos travesseiros. Isso significava que eu tinha que dormir com um olho aberto, mais ou menos, e passei boa parte da noite tendo uma série de cochilos rasos sem realmente cair num sono profundo.

Quando estava prestes a desistir e tentar dormir no chão, ouvi Akira gemendo enquanto dormia. Parecia que ela estava tendo dificuldades; talvez fosse outro daqueles "pesadelos" que ela mencionara outro dia. Se fosse o caso, não pude deixar de me perguntar sobre o que seriam esses pesadelos recorrentes.

*

 

— Akira! Onde você pensa que vai?!

Ignorei minha mãe, que tentou me impedir, e saí pela porta da frente. Meus passos ressoaram nas escadas de metal enquanto descia a escada externa do nosso prédio. Eu estava completamente irritada. Pronta para nunca mais voltar, ou melhor ainda — fazer algo estúpido e imprudente, só porque eu sabia que isso iria irritá-los.

Era oito horas da noite. Já estava escuro lá fora. Quando cheguei na calçada, só virei e comecei a andar. Não me importava para onde estava indo. Tudo o que eu sabia é que, se não continuasse andando agora, provavelmente iria desabar.

Deus, não suporto eles.

Eu nem me importaria com minha mãe gritando comigo normalmente. E conseguiria aguentar meu pai idiota me tratando como lixo. Mas a única coisa que eu simplesmente não aguentava era minha mãe tomando o lado dele, sendo que eu só estava tentando defendê-la. Por que ela ficaria brava comigo por ter gritado com ele? Ele era o único que sempre a tratava como uma escrava. Como ela tinha coragem de me dar um tapa por isso? Ela não estava cansada daquele idiota pisando nela também? Será que ela realmente se importava mais com aquele imbecil do que comigo?

Que porra, cara... Qual é o problema dela?

Enquanto caminhava pela estrada, esfregava a bochecha. Minha pele ainda estava levemente ardendo onde minha mãe me dera o tapa. Tudo ainda parecia tão cru, e quanto mais eu pensava nisso, mais eu sentia uma onda de raiva se formando atrás dos meus olhos.

Não. Não ouse chorar agora. Se você chorar, eles ganham. Fique com raiva, droga.

— Idiotas estúpidos...

Chutei um poste de luz próximo com toda a força, mas isso não me fez sentir melhor nem um pouco. Na verdade, só me fez sentir vergonha quando as pessoas começaram a me olhar como se eu fosse algum tipo de pessoa louca. E então percebi que ainda estava usando o uniforme da escola. Eu tinha caído na cama e tirado uma soneca assim que cheguei em casa naquela tarde. Depois me acordaram para o jantar, e eu estava planejando tomar um banho depois — mas então toda aquela confusão familiar aconteceu, e eu saí de casa sem trocar de roupa. Felizmente, ainda estava sã o suficiente para pegar minha jaqueta de beisebol antes de sair, mas não pensei em pegar minha carteira. A única coisa que eu tinha comigo agora era o celular.

Não sabia o que fazer agora.

Não tinha para onde ir, nenhum amigo que me deixaria ficar na casa deles durante a noite. Mas a única coisa que eu sabia que definitivamente não queria fazer era voltar para casa com o rabo entre as pernas e ter que lidar com toda aquela situação, então comecei a caminhar na direção da Estação Hakodate. Agora, eu só queria estar em algum lugar onde tivesse muita gente por perto. Talvez isso me ajudasse a me distrair de todas essas emoções negativas.

Uma rajada de vento vindo da baía passou assobiando, jogando meu cabelo em um emaranhado. Ugh. Isso era exatamente o que eu odiava em morar perto do mar. O sal no ar deixava a pele toda pegajosa, e se eu nunca mais tivesse que sentir o cheiro de água salgada pelo resto da minha vida, ainda seria cedo demais. Eu odiava tudo nesse lugar, aliás, para ser justa — fazendo parecer que era uma cidade grande e importante quando na verdade não passava de uma cidadezinha do interior disfarçada, perdida no meio do nada. E não só isso, mas como estava bem no extremo sul de Hokkaido, era longe o suficiente de cidades de verdade como Aomori e Sapporo, o que ainda fazia com que fosse necessário gastar bastante tempo e dinheiro para chegar lá. Claro, tínhamos algumas comidas e outras coisas pelas quais éramos famosos, mas eu nem gostava tanto de lula.

Eu só queria sair daqui — ir para algum lugar bem, bem longe.

A grande cidade seria legal. Algum lugar com coisas reais para fazer e ver, para tentar preencher o vazio de angústia e solidão que eu sabia que nunca conseguiria escapar enquanto estivesse presa vivendo em um lugar assim. Mas, embora Sapporo parecesse legal e tudo mais, eu preferiria escolher algum lugar que me permitisse sair dessa ilha de uma vez. Como Tóquio, por exemplo. Algum lugar mais quente, onde sempre teria muito mais acontecendo.

Com todos esses pensamentos sobre a agitação da grande cidade passando pela minha cabeça, passei algum tempo vagando pela área geral da Estação Hakodate, onde não havia nada acontecendo e nada para fazer. Mas, claro, não tinha nada — o que eu esperava?

Eventualmente, fiquei cansada de andar e me sentei em um banco na praça da estação. Eu não tinha dinheiro comigo, então não poderia ir a lugar algum para realmente fazer ou comprar alguma coisa. Mais uma vez, eu realmente queria ter tido a previsão de trazer minha carteira.

Coloquei minhas mãos nos bolsos do casaco e tentei entender para onde diabos minha vida iria agora. Mas pensar nisso de maneira realista só me fez ficar cada vez mais deprimida, à medida que minha raiva ia lentamente cedendo para a ansiedade. Era como se minha mente estivesse presa em um espiral pessimista, e eu não soubesse para onde ir ou o que fazer.

Felizmente, não estava tão frio esta noite, pelo menos para final de outubro. Mas meu coração ainda se sentia congelado enquanto eu checava meu celular pela enésima vez e via que já passava das dez horas. Tarde o suficiente para que uma estudante do ensino médio como eu provavelmente fosse escoltada para casa se fosse pega andando pela cidade por alguém com autoridade. E ainda passavam muitas pessoas pela praça. Talvez fosse mais inteligente encontrar um lugar mais isolado para ficar um tempo. Não que eu tivesse outro lugar em mente, mas—

— Ei, você — uma voz chamou. — O que você está fazendo aí?

Levantei os olhos e vi um homem de meia-idade com um terno velho olhando para mim. Por um instante, pensei que ele pudesse ser um professor da minha escola, e meus instintos defensivos entraram em ação. Mas, depois de um momento de reflexão, percebi que nunca tinha visto o rosto dele antes, e o tom dele não parecia hostil, então suponho que ele não estava tentando me meter em problemas.

— Nada demais… — disse eu, com desdém.

— Está esperando alguém, ou o quê? — disse o homem. — Já está um tempo aí sentada.

Ah, ótimo. Então esse cara estava me observando, né?

— É, e o que tem isso? Não é da sua conta.

— Você ainda está no ensino médio, não está? Não devia estar andando por aí tão tarde. Melhor voltar para casa logo. Ou tem algum motivo para não querer voltar para casa?

Ele acertou em cheio, mas eu não respondi. Não queria dar espaço para esse cara continuar fazendo perguntas. Então, ao invés disso, só afiei meu olhar e continuei encarando-o de forma despreocupada, mas ameaçadora, como se dissesse: Não mexa comigo, amigo.

— Ei, ei. Vamos lá, não precisa me olhar assim. Não é como se eu fosse te morder ou algo do tipo — disse ele, rindo sem jeito. — Olha, eu sei — eu estava indo pegar algo para o jantar. Por que você não vem comigo?

— Não estou com fome — respondi secamente.

— Bem, então que tal uma sobremesa? Eu conheço um izakaya aqui perto que faz umas sobremesas ótimas. Se você não tem para onde ir, pode vir comigo para comer de graça e bater um papo. Não me importo em ouvir, caso queira falar sobre isso.

Esse cara estava sendo bem insistente — mas não me parecia uma pessoa ruim, pelo menos. Parecia ter um bom senso, especialmente porque o único conselho que ele me deu antes foi que eu provavelmente deveria voltar para casa. E não era como se ele estivesse me convidando para ir para a casa dele ou algo estranho assim. Se tudo o que ele queria era me ouvir e me oferecer comida de graça porque ele se sentia estranhamente mal por mim, ou o que quer que fosse, eu supunha que não me importava em aceitar a oferta. Me dava uma desculpa para ficar fora de casa um pouco mais também.

E então eu assenti.

— Ótimo, então vamos lá — disse o homem. — É só ali na esquina.

Eu o segui. Não estava nem procurando simpatia barata nem nada disso. Eu só queria algo — qualquer coisa — para me distrair de como eu me sentia completamente sem esperança agora, mesmo que fosse só por um tempo. Eu podia pensar no que fazer depois enquanto comíamos.

Depois de andar pela calçada por uns dez minutos, chegamos a um izakaya bem no centro da cidade, onde fomos rapidamente sentados em uma mesa no fundo do restaurante. Enquanto o anfitrião nos levava até lá, percebi alguns dos outros clientes lançando olhares curiosos e julgadores na minha direção, mas ninguém falou nada.

O homem pediu uma cerveja junto com sashimi e tempura, e eu pedi um bolinho de castella coberto com creme de leite fresco. Quando trouxeram nossa comida, e o homem pegou o prato da garçonete, notei um anel de casamento em sua mão esquerda. Depois que a garçonete saiu, ele percebeu que eu estava olhando para ele.

— Ah, sim — disse ele, girando o anel no dedo. — Então, é que eu e minha esposa tivemos uma grande discussão outro dia. Agora as coisas ficam meio estranhas quando eu estou em casa — parece que eu não consigo fazer nada certo — então tenho ficado fora o máximo possível.

— Não me diga — respondi, desinteressada, mas divertida pela coincidência.

— E você? Brigou com seus pais ou algo assim?

— Não chamaria exatamente de briga, não...

— Quer me contar um pouco sobre isso? Talvez te ajude falar sobre isso com alguém. Pode considerar isso um pagamento pela comida, se isso ajudar.

Era difícil dizer não quando ele colocava dessa forma. E eu também não queria me dar mal enquanto estava ali com ele no restaurante. A ideia de mostrar qualquer sinal de fraqueza para esse cara aleatório que eu acabara de conhecer realmente não me agradava, mas pensei que por agora eu deveria apenas fazer o que ele dizia e me abrir um pouco. Então, dei um resumo de tudo o que tinha acontecido naquela noite até eu me sentar fora da estação. Ele ouviu atentamente tudo o que eu tinha a dizer, assentindo e tudo mais.

— Entendi, entendi — disse ele quando finalmente terminei. — Sim, isso deve ter sido bem difícil. Nada pior do que um pai que usa violência contra os próprios filhos.

Isso me irritou. Esse cara não sabia nada sobre minha mãe. Não que eu não achasse que fosse uma coisa horrível ela ter feito aquilo, óbvio — mas nosso relacionamento era mais complicado do que isso. Eu não queria a simpatia de um desconhecido.

— Eu também brigava muito com meus pais quando tinha a sua idade — disse o homem. — Acho que isso me fez ficar meio delinquente por um tempo. Eu ficava passando a noite na casa dos amigos... Comprei uma moto e comecei a rodar pela cidade só para irritá-los. Pensando bem agora, provavelmente foi só uma fase de rebeldia adolescente, mas, cara, aqueles foram alguns dos melhores anos da minha vida. A gente ia para a praia no verão e soltava um monte de foguetes, ou—

Deixei praticamente tudo isso entrar por um ouvido e sair pelo outro enquanto enfiei a colher na sobremesa à minha frente. Nesse ritmo, provavelmente já seria depois da meia-noite quando saíssemos do restaurante. No pior dos cenários, eu precisava me preparar mentalmente para dormir ao ar livre em algum lugar essa noite. Felizmente, não estava tão frio que eu não aguentaria. E amanhã eu...

...O que eu ia fazer amanhã, afinal?

Obviamente, eu precisava de dinheiro se quisesse fazer literalmente qualquer coisa. Será que eu poderia tentar encontrar um trabalho rápido em algum lugar que contratasse por dia, talvez? Mas eu realmente não tinha nenhuma habilidade ou experiência de trabalho que fizesse alguém querer me contratar, eu achava...

No fim, não consegui bolar nada que remotamente parecesse um plano de ação mais concreto enquanto comíamos. E, como eu já tinha previsto, já era depois da meia-noite quando saí do izakaya. Assim que o homem terminou de pagar nossa conta, ele saiu do restaurante e ficou parado na minha frente, com um sorriso bajulador no rosto.

— Que tal eu arranjar um lugar pra você passar a noite? — ele perguntou.

Havia uma doçura enjoativa e maliciosa na voz dele. Imediatamente, meu alerta de perigo disparou no máximo. Ele definitivamente não estava só sugerindo que reservasse um quarto de hotel e depois fosse embora. Ele sabia muito bem o que estava insinuando — e eu também, enquanto o via encarar minhas pernas. Então ele era mesmo um total nojento. Pfft. Já era de se esperar. Eu queria mais do que tudo começar a gritar a plenos pulmões, humilhar ele verbalmente e depois fugir o mais rápido que pudesse. E, em qualquer outro dia, eu com certeza teria feito isso. Mas o que fugir iria me adiantar agora? Só me deixaria exatamente onde eu estava no começo da noite — de volta às ruas, sem dinheiro e sem lugar para ir. Nesse caso, achei melhor me jogar de cabeça. Não é como se essa noite pudesse ficar ainda pior.

— Por mim, tudo bem — falei. — Mostre o caminho.

Os lábios dele se curvaram ainda mais assim que ouviu minhas palavras. Se ele estava tentando disfarçar a empolgação, estava fazendo um trabalho péssimo. Mas, enquanto o seguia por um beco sujo, comecei a traçar um plano na minha cabeça.

Como era de se esperar, ele me levou direto para o tipo de hotel que as pessoas geralmente usavam para uma única coisa. Ele comprou um quarto para nós, e subimos juntos. Eu mal conseguia esconder o quanto estava tremendo; nunca tinha pisado em nenhum tipo de estabelecimento sexual antes. Nunca.

Me sentei imediatamente no sofá da sala, e ele se acomodou bem ao meu lado. Meu coração parecia que ia explodir dentro do peito.

Mas, justo quando ele esticou a mão para colocá-la no meu joelho—

— Você não devia tomar um banho primeiro? — falei, usando cada grama da minha racionalidade para tentar parecer tranquila.

— Ah, é verdade — disse o homem. — Bem pensado, desculpa.

Ele se levantou e foi obedientemente para o vestiário.

Assim que ouvi a porta se fechar com um clique, coloquei meu plano em ação. Comecei a procurar pela carteira dele. Assim que eu conseguisse pegá-la — ou pelo menos o dinheiro dentro — escaparia do quarto e fugiria. Eu sabia que estaria cometendo um crime, obviamente. Mas ele também estava, tentando se aproveitar de mim, então não senti nem um pingo de culpa. Eu precisava do dinheiro mais do que ele, de qualquer forma.

Revirei a pasta dele de ponta-cabeça e revirei ambos os bolsos do casaco que ele pendurou na porta. Mas não consegui encontrar a carteira em lugar nenhum. Um suor frio escorreu pelas minhas têmporas enquanto o pânico começava a tomar conta. Mas eu não ia desistir e sair de mãos abanando. Já tinha chegado até ali — e precisava do dinheiro, custasse o que custasse.

Vamos, Akira. Pensa, sua idiota. Onde mais poderia estar?

E então me veio a ideia — no bolso da calça.

Me esgueirando o mais silenciosamente possível, entrei no pequeno vestiário anexo ao banheiro e comecei a vasculhar o bolso da calça dele. Aha! Achei! Exatamente como eu esperava, ele tinha deixado a carteira no bolso de trás da calça social. Beleza, agora só preciso sair daqui antes que—

A água de repente parou.

Logo depois, um clique suave — e a porta do banheiro se abriu de repente.

— Ei — disse o homem. — O que você está fazendo aqui?

Quase tive um ataque cardíaco. Meu corpo inteiro congelou na hora.

Meu Deus. Preciso sair daqui. Agora!

— Essa é a minha carteira que você está segurando? — ele perguntou. — Você não estava planejando roubá-la e fugir de mim, estava?

O que você está esperando, sua idiota?! Corre! Agora!

Corri para fora do cômodo, me chocando contra a parede oposta enquanto corria em direção à porta. Alcancei a maçaneta e puxei com toda a força.

Droga! Aquele filho da mãe tinha passado a tranca!

— Qual é — disse o homem. — Acha que vai fugir assim? Já chegamos até aqui, não seja assim.

Ele me agarrou com força pelo braço e me arrastou de volta para o fundo do quarto. Meu Deus. Não, não, não! Me debatia, me esforçando ao máximo para me soltar, mas não conseguia. Ele era muito mais forte do que eu. Isso era péssimo — desse jeito, eu ia... Eu ia... Não! Como isso aconteceu?! Por quê, caramba?! Me solta!

Pavor, medo e desespero rodopiavam pela minha mente enquanto eu afundava ainda mais na sensação de impotência — até que, por fim, atingi meu limite. E então explodi de raiva.

— Rrrgh... Não encosta em mim, seu nojento! — gritei. — Que tal manter essas mãos imundas longe de garotas com menos da metade da sua idade?!

Reunindo todas as forças que me restavam, empurrei o cara com tudo e finalmente consegui me soltar. Ele soltou um grito surpreso ao perder o equilíbrio e caiu de costas. A cabeça dele bateu violentamente na quina da enorme mesa de centro. E então o homem ficou rígido como um cadáver.

— Huff... huff...

Um líquido grosso e vermelho começou a escorrer pela perna da mesa, sangue vazando da parte de trás da cabeça dele. E então a realização aterrorizante me atingiu: talvez ele não estivesse apenas imóvel como um morto — talvez ele realmente estivesse morto.

O homem parecia morto. Eu podia ter literalmente matado alguém.

Meu Deus.

Um medo primitivo tomou conta de mim, e eu saí correndo o mais rápido que pude — sem nem me dar o trabalho de pegar a carteira no caminho. Desesperada, lutei para destrancar a porta e disparei pelo corredor até o elevador, onde apertei repetidamente os botões FECHAR PORTA e 1F como se fosse uma atriz em um filme antigo de terror. Mesmo depois de escapar do hotel, continuei correndo o mais rápido que consegui. Tudo que eu queria era deixar aquela cidade para trás e ir para algum lugar bem longe. Um lugar onde ninguém conhecesse meu nome.

Onde foi que eu errei?

Eu não sabia.

Eu queria poder começar todo aquele dia horrível de novo. Ou então queria que o mundo simplesmente acabasse, ali mesmo. Desde que o amanhã nunca chegasse, e eu nunca mais tivesse que lidar com nada daquilo.

Corri durante o que pareceu horas e horas. Até que cheguei a um semáforo fechado em um cruzamento. Mas parar não era uma opção.

Eu nunca poderia parar. Atravessei.

Faróis brilharam diante dos meus olhos.

Uma buzina soou a poucos centímetros de distância.

E então uma dor lancinante atravessou todo o meu corpo.

*

 

— Blegh...  

Esse foi o som que escapou dos lábios de Akira enquanto ela escorregava do sofá de couro e caía de cara no chão. Eu provavelmente deveria tê-la acordado quando vi que ela se revirava no sono, mas enfim. Observei enquanto ela tentava se sentar, só para bater a cabeça na mesa. Poxa. Falar em chutar cachorro morto...  

— Ai, droga... — resmungou ela, clicando a língua enquanto se levantava do chão como uma velhinha cheia de dores nas costas. — Ugh... Aquele maldito sonho de novo...  

— Você tá bem? — perguntei, mais do que um pouco preocupado com ela — e seus ombros se sobressaltaram de susto. Mas então ela se acalmou e soltou um longo suspiro.  

— Ah, então você também acordou, né...?  

— É, não consegui me ajeitar direito...  

— Mesma coisa. Acho que dormir num karaokê não foi a melhor ideia.  

Akira se recostou no assento de couro. Ela parecia ainda mais exausta agora do que quando fomos dormir.  

— Outro pesadelo? — perguntei.  

— É, pode-se dizer que sim — respondeu ela, puxando uma garrafa de água mineral da mochila e bebendo avidamente. Soltou um suspiro curto e satisfeito ao afastar a garrafa da boca. — Tenho tido o mesmo sonho direto ultimamente: começa comigo fugindo de casa, e... bom, nunca termina de forma agradável, digamos assim.  

Fugindo de casa. Isso parecia bater com a situação tensa da família que ela já havia me contado — aquela que aconteceu no dia anterior à parada no tempo.  

Akira cruzou os braços, quase se abraçando. Suas mãos tremiam um pouco enquanto ela olhava para mim, pálida e nervosa.  

— Você... se importa se eu falar sobre isso? — perguntou.  

— De jeito nenhum — respondi. — Estou mais do que disposto a ouvir.  

Akira abaixou o olhar, encarando a mesa entre nós. Então começou a me contar seu sonho em detalhes vívidos.

*

 

— E aí, literalmente no exato momento em que o carro ia me atropelar, eu acordei — disse Akira. — Sempre termina de um jeito diferente. Mas, bom, todo o resto realmente aconteceu.  

— Caramba... Isso é... bem pesado...  

Fiquei sem saber o que dizer. Era chocante saber que ela tinha passado por algo tão traumático no dia anterior ao nosso encontro. Akira soltou um longo suspiro, quase teatral, e se recostou na cadeira.  

— Se ao menos tudo isso fosse só um sonho, sabe?  

Acho que finalmente entendi por que ela estava tão ansiosa para ir a Tóquio. Não era exatamente o desejo de acabar com a parada no tempo que a impulsionava — era a vontade de fugir de Hakodate o mais rápido possível. Provavelmente ela teria feito a mesma coisa se meu tio morasse em Nagoya ou Osaka.  

— Então, é... O que aconteceu com aquele cara, afinal? — perguntei, meio hesitante.  

— Sei lá. Tentei voltar lá depois que o tempo parou e nós nos encontramos pela primeira vez, mas a porta estava trancada... Acho que ou levaram ele para o hospital, ou ele conseguiu sair sozinho — Akira balançou a cabeça e bufou. — Não que isso faça muita diferença. Ele cometeu um crime grave, esteja vivo ou morto.  

— E-Ei, você não fez nada de errado! Você só agiu em legítima defesa. Isso é cem por cento justificável!  

— Ok, mesmo que eu fosse inocentada dessa acusação, hipoteticamente, ainda tentei roubar a carteira dele quando podia simplesmente ter ido embora e nada disso teria acontecido. Não tem como apagar essa parte.  

Eu realmente queria que ela parasse de se culpar tanto por toda a situação. Tentei confortá-la de todas as formas que consegui — dizendo que não era culpa dela, que a culpa era do cara, que ela foi encurralada e acabou agindo no desespero — mas parecia que nenhuma das minhas palavras chegava até ela.  

Era como se ela já tivesse se condenado na própria cabeça.  

— Eu sei que você disse antes que acha que foi sua culpa o tempo ter parado e tudo — disse Akira. — Mas, como eu te falei naquela vez, tenho certeza de que parte da culpa também é minha.  

— Por quê...?  

— Quero dizer, você não tava ouvindo? Eu literalmente saí correndo pela cidade pensando que queria que o amanhã nunca chegasse. Então, mesmo que você seja o centro da parada no tempo, não acho que me arrastou junto. Tenho quase certeza que me joguei nisso inconscientemente — Akira franziu a testa, com uma expressão culpada. — Enfim, foi mal. Devia ter te contado tudo isso há muito tempo.  

— Que nada. Mas, tenho que dizer... Tô meio preocupado com você, com como você tá lidando com tudo isso.  

— E por que, hm? Não tô nem tão estressada assim, só pra você saber. Isso tudo aconteceu faz mais de um mês já.  

Eu tinha quase certeza de que ela só estava tentando parecer forte. Não estaria se remexendo tanto no sono e gemendo daquele jeito se realmente tivesse superado tudo. Algo ainda a atormentava, nem que fosse um pouquinho.  

— Além do mais! — disse Akira, elevando a voz de forma nitidamente forçada, tentando soar alegre. — Eu recebi uma mensagem no LINE da minha mãe, bem antes do tempo parar, pedindo desculpas e tudo. Então tenho certeza que ela se arrependeu do que fez comigo. E acho que, se eu voltasse pra casa e rolasse algum climão, ela ficaria do meu lado. Então não se preocupa comigo. Vou ficar bem.  

— Entendi... Bom, tá bom então.  

Se era assim que ela realmente se sentia, não era meu lugar para argumentar. E, no fundo, eu tinha mesmo passado a preferir essa versão forte da Akira — aquela que sorria diante das adversidades — em vez da versão melancólica e desesperançada (mesmo que a primeira fosse meio intimidadora às vezes). Ainda assim, sua expressão dolorida contrastava com o otimismo na sua voz — e, infelizmente, foi essa imagem que ficou comigo ao final da conversa.

— Bem, desculpa. Não queria estragar o clima e ficar sentimental desse jeito hoje. Melhor eu voltar a dormir — disse Akira, deitando novamente no sofá de couro antes mesmo que eu pudesse responder.  

Segui o exemplo dela e me deitei também. Mas mesmo depois de fechar os olhos, não consegui voltar a dormir. Minha mente fervilhava — principalmente pensando na Akira e em como eu poderia, de alguma forma, aliviar as ansiedades que a atormentavam. Eu sabia que, realisticamente, não havia muito que eu pudesse fazer por ela. Não podia apagar o que ela tinha feito, nem ajudar a resolver a situação com sua família. Mas talvez... houvesse pelo menos uma coisa que eu pudesse fazer.

*

 

Depois de dormir mais quatro ou cinco horas, nos vestimos e saímos do karaokê. Quando Akira girou as costas e se alongou de um lado para o outro, como se estivesse aquecendo para a longa caminhada que nos esperava, pude ouvir suas articulações estalando.  

— Ugh, odeio quando minhas costas estalam — disse ela. — Me faz sentir uma vovó.  

— Que nada — respondi. — Quer dizer que você tá saudável, só isso.  

— Ah, tá bom — ela respondeu, girando os pulsos e tornozelos em círculos lentos para terminar os alongamentos. — Certo. Vamos nessa.  

— Na verdade, espera um pouco — disse eu, interrompendo-a logo quando ela deu o primeiro passo firme na calçada. Ela se virou.  

— Que foi agora?  

— Eu queria te propor uma ideia.  

Tentei dizer isso com o tom mais sério que consegui. Akira percebeu, a julgar pela maneira como sua expressão ficou tensa, como se se preparasse para uma conversa difícil.  

— É mesmo? Que ideia?

Engoli em seco, completamente ciente de que sugerir aquilo era uma aposta arriscada. Eu não sabia se ela ficaria aliviada ao ouvir ou se se sentiria completamente ofendida. Imaginei que devia ser parecido com a sensação de convidar alguém para sair sem ter a menor ideia se seria rejeitado. Mas reuni toda a minha convicção e disse as palavras.

— Então, eu estava pensando... E se a gente simplesmente... deixasse o tempo continuar congelado?

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