As Faces do Abismo Brasileira

Autor(a): O Corvo


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Lobos na Coleira

Eu costumava me sentar sobre a mesa e assistir às reuniões estratégicas de meus pais na Mercador Sussurrante. Minha mãe insistia que eu o fizesse, na verdade. Dizia que me seria útil quando fosse mais velho, o que acabou se tornando mais verdade do que eu gostaria.

— O vale é território dos caninos brancos, querido. Sugiro que demos a volta. — Minha mãe apontou para o mapa disposto sobre a mesa, que havia sido desenhado a mão por Aurora.

— Não sei se é o melhor método. Perderíamos muito tempo, sem contar que teríamos que carregar o dobro de suprimentos para aguentarmos a viagem. Vocês sabem como as condições do Abismo são desfavoráveis para longas viagens.

— Concordo com ela, Apolo. É fato que levaria mais tempo e recursos, mas não podemos esquecer que não sabemos o que há depois desse vale. Investir em um ataque direto seria suicídio nessas condições — argumentou Reinhold.

Meu pai cruzou os braços e ponderou por alguns segundos.

— E o que você acha, Daskin? — indagou.

Daskin, que estava de cabeça baixa e provavelmente de ressaca, apenas deu de ombros e murmurou algo incompreensível.

Meu pai massageou as têmporas e disse: — O que conversamos sobre essas bebedeiras descontroladas de vocês dois? — Trocou olhares de descontentamento entre Daskin e Reinhold.

Reinhold deu de ombros. Como sempre, não havia nenhum sinal de que ele havia bebido tanto quando Daskin na noite anterior. Fato esse que sempre me deixou intrigado, não importava o quanto Reinhold ficasse bêbado, no dia seguinte ele sempre estava sóbrio feito um padre. Lamento não ter descoberto como ele fazia isso durante minha infância, por mais que eu não soubesse na época, me seria muito útil no futuro.

Daskin revirou os olhos.

— E lá vamos nós, A mesma ladainha de sempre. Blá, blá, blá Daskin não faça isso. Blá, blá, blá Daskin não faça aquilo. Eu sou um adulto, e pelo menos estou aqui, diferente da esquentadinha e da viciada em livros. Afinal, onde diabos estão essas duas?

Reinhold explicou que Úrsula estava dormindo. Havia batido na porta de seu quarto alguns minutos antes e ela ameaçou arrancar sua cabeça com os dentes.

— E você sabe como ela é. Mesmo que discutíssemos estratégias, na hora ela faria o que bem entendesse — completou minha mãe.

Todos balançaram a cabeça em concordância, conheciam muito bem o temperamento e personalidade de sua companheira.

— E sobre a Aurora, eu pedi pessoalmente que ela estudasse aquela substância misteriosa que Reinhold encontrou — disse meu pai.

De repente, a porta se abriu e um homem passou mancando por ela, apoiando o lado esquerdo do corpo em uma muleta de madeira. Um lado de seu rosto estava coberto de faixas e ataduras.

— Pelo amor dos Deuses, Eltan! Como é bom te ver! — exclamou meu pai, correndo para dar um abraço no amigo.

Eltan era alto, de cabelos pretos e barba por fazer. Normalmente, estampava um sorriso, mas dessa vez, além das faixas e ataduras que cobriam parte de seu rosto, ele tinha uma expressão cansada e parecia incomodado com algo.

Ele cumprimentou a todos antes de se sentar. Trocou acenos de cabeça com Daskin e Reinhold, abraçou a mim e minha mãe e perguntou sobre Aurora e Úrsula.

— E como você está, meu amigo? — Reinhold perguntou.

— Bem, os curandeiros do barão me disseram que em 3 semanas eu já consigo voltar a andar sem essa coisa. — Apontou com a cabeça para as muletas de madeira jogadas aos seus pés. — Já sobre o meu rosto… — O silêncio correu pelo salão, meu pai assumiu uma expressão sombria.

Quando perguntei à minha mãe o que havia acontecido, ela não quis me contar. Apenas disse que meu pai se culpava pelo ocorrido, e era melhor não falarmos sobre.

Daskin se levantou, foi até Eltan e colocou a mão sobre seu ombro. O que, devo admitir, me pegou de surpresa. Apenas digamos que a relação de Daskin e Eltan não era das melhores e que os dois viviam trocando farpas entre si.

— Mas veja pelo lado bom, você fica bem mais bonito com a metade do rosto escondi- — Um som de eletricidade correu pelo ar antes que Daskin pudesse terminar sua frase e ele caiu de bunda no chão. — Argh! Merda! Odeio isso. Eu nunca mais tento animar ninguém, ok? E pensei que não pudéssemos usar nossas marcas uns nos outros. — Seu cabelo estava chamuscado e cheirava a queimado.

Todos rimos, uma risada alta e em uníssono que preencheu o salão.

— Ei, Lucian. Por que você não vai atrás de Cintia? Ela andou perguntando por você. Deixei ela ajudando o Harlam na praça antes de vim para cá — disse Eltan, pondo a mão carinhosamente sobre minha cabeça.

Olhei para meus pais buscando aprovação, minha mãe fez que sim com a cabeça e meu pai um sinal positivo com o polegar. Saí pela porta mais rápido do que se pode contar até dez. Fazia semanas que eu não via minha amiga e sentia sua falta.

— O barão do Norte está voltando. — Escutei uma voz dizendo ao longe antes que eu pudesse virar a esquina. Não quero me gabar, mas sempre tive bons ouvidos, o que, detesto admitir, me meteu em mais problemas do que eu gostaria durante minha vida.

"Barão do Norte?”. Eu já havia escutado esse título várias vezes em minha vida. Sabia que ele pertencia a um dos barões mais poderosos e também mais gananciosos. Que Eltan tinha uma relação muito próxima com ele, afinal, ele havia vindo de um dos reinos ao Norte.

Também sabia que o Barão do Norte, assim como os outros barões, havia sido banido da Cidade dos Começos pelo próprio rei. O único barão com autoridade para conduzir explorações ao abismo na Cidade era o Glaylock. Saber de tudo isso e minha curiosidade infantil foi o que me levou a espreitar pelos fundos e escutar o restante da conversa.

Ao olhar por uma janela, vi ser justamente Eltan que falava.

— É só uma teoria por enquanto, ele só me convidou para um jantar formal em seu palácio no Norte, mas vocês sabem como os barões são. Sempre ardilosos e à espreita, esperando somente uma oportunidade de botarem as garras no Abismo novamente. 

— Quando? — indagou minha mãe, seu tom sério. Feito o que ela usava para me dar broncas.

— Em algumas semanas. Disse-lhe que me apresentaria o mais breve possível, assim que minhas condições físicas melhorarem — Eltan respondeu.

Meu pai andava em círculos com as mãos fechadas atrás do corpo, pensativo.

— Calma, Apolo. Como ele disse, é só uma teoria — argumentou Reinhold.

— Eu sei disso, mas todos esses malditos barões são iguais. Todos são lobos na coleira, prontos para atacar no primeiro tropeço do Rei. Avisarei o Glaylock quanto antes sobre isso, temos que ficar alerta.

Subitamente, a porta se abriu, rangendo e batendo forte contra a parede. Assustado, me abaixei com medo de ter sido visto por quem quer que tenha entrado na taverna.

— Vocês não vão acreditar no que eu desco- Interrompi algo? Vocês estão com umas caras péssimas.

Reconhecendo a voz, voltei para a janela e vi Aurora, segurando um frasco de vidro que continha um líquido preto e viscoso. Ela tinha um sorriso animado e esperto no rosto, sorriso esse que poucas vezes eu havia visto, mas todas às vezes significavam a mesma coisa.

“Ela fez uma de suas descobertas”.

Aurora era uma pessoa que mantinha sempre a calma. As raríssimas vezes em que a via extrapolar em seus sentimentos era obtinha sucesso em algum dos seus estudos, e dessa vez ela estava muito empolgada. Seus olhos castanhos estavam arregalados, seu cabelo azul bagunçado e ela respirava ofegante.

— Aurora, tente explicar novamente, dessa vez com mais calma. Respire — disse minha mãe.

— Tudo bem. — Ela se jogou em uma das cadeiras de madeira e colocou o frasco de vidro sobre a mesa. Olhando pela janela, o líquido preto no recipiente não parecia mais do que tinta. — Como todos aqui sabem, eu passei um bom tempo estudando essa substância desde que a encontramos no Abismo. A princípio, acreditei que não passava de alguma espécie de minério líquido, mas, após testes mais aprofundados, descobri que- Ei, idiota! Nem pense nisso. 

Aurora fez uma cara feia para Daskin, que esticava a mão para o frasco, porém parou em pleno movimento e ergueu às duas mãos. — Bem, continuando, após testes mais aprofundados, descobri que a substância reage às marcas. Ainda não sei como e porquê, mas sei que é perigoso.

Minha mãe ergueu uma sobrancelha.

Aurora tirou os óculos trincados e massageou a têmpora, parecia exausta. — Após conduzir alguns testes especiais. Constatei que a substância pode aumentar em várias vezes a força das marcas.

— Mas isso é ótimo! Me dê um litro disso e eu- — disse Daskin.

— Entretanto — interrompeu Aurora —, ela é instável demais, enquanto dá poder, consome força vital na mesma proporção. 

Enquanto ouvia escondido e de olhos arregalados, algo cutucou meu ombro. Meu coração bateu mais rápido e me virei assustado. Era Cintia, com a mesma cara que fazia sempre que me pegava fazendo algo de errado. Soltei o ar, aliviado.

— Bisbilhotando de novo, Lucian?

— Shh! Fala baixo. Sente-se aqui.

Ela revirou os olhos e se sentou. 

— O que foi dessa vez?

Ignorando a pergunta, me ergui novamente para observar pela janela, mas, para minha tristeza, a Mercador Sussurrante estava vazia. 

“Merda!”, me virei e sentei de costas para a parede.

— Ei! Estou falando com você.

— O que foi, Cintia? 

— Por que você estava bisbilhotando de novo?

— Eu não estava bisbilhotando. Um dia serei um membro oficial. Digamos que eu estava apenas participando da conversa, mas sem ser visto.

— Sei. — Cintia estreitou os olhos. — Veremos então se o grande Lucian Haraz, futuro membro dos Ceifadores da luz e fofoqueiro profissional pode me acompanhar. Tá com você! 

E então ela saiu correndo em disparada.

 



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