As Faces do Abismo Brasileira

Autor(a): O Corvo


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: Aqueles que Rastejam Pelas Sombras

Eu e Cintia corremos pelas ruas e becos da cidade, brincando e, às vezes, pregando algumas de nossas peças por aí, e eram as melhores possíveis. Certa vez, trancamos Harlam do lado de fora da taverna. Não preciso nem dizer que obviamente minha mãe ficou furiosa. Já meu pai, achou graça de toda a situação e riu do bigodudo por deixar duas crianças o prenderem do lado de fora do próprio estabelecimento. No fim, passei duas longas e entediantes semanas sem poder brincar com Cintia.

Naquele dia, brincamos por horas a fio. Foi um dos típicos dias perfeitos que rechearam minha infância. Se não fosse pelo fato de que, ao entardecer, para o meu profundo desespero, perdi Cintia de vista durante uma partida de pega-pega.

A procurei por todos os seus esconderijos favoritos, perguntei para todos que conhecia. Nada.

— Cintia! Cadê você?! — Minha cabeça doía e eu começava a me preocupar. Aquele era um lugar pacífico? Sim. Os poucos casos de furtos e sequestros de que se tinham relatos pela cidade eram rapidamente resolvidos por meus pais e pela guilda. Entretanto, as palavras de Eltan martelavam incessantemente em minha mente. 

“O Barão do Norte está vindo”. E eu sabia muito bem qual tipo de perigo viria com ele.

"Mercenários", pensei. 

Continuei procurando por Cintia. Cogitei pedir ajuda a meus pais, mas Eltan jamais me perdoaria. Já havia passado por tanto, e agora só o que restava para ele era sua filha. Filha essa que eu havia perdido. 

Meu estômago deu um nó, e por um instante, jurei que fosse vomitar. Continuei correndo e chamando por ela. Até que, para o meu mais profundo alívio, a encontrei de frente aos portões, sentada sobre um degrau de uma escadaria de pedra.

E tenho certeza que foi nesse dia que percebi pela primeira vez o quão linda ela era, e o quão linda se tornaria um dia. Ela abraçava os joelhos dobrados, seus cabelos castanhos cobriam seu rosto. Se virou para mim com os olhos verdes marejados e vermelhos, parecia ter chorado. 

— Cintia? Está tudo bem?

— Tudo — ela me respondeu. Sua voz saiu chorosa.

Sentei-me ao seu lado. O Sol do entardecer iluminava os portões, o que o fazia brilhar feito as armaduras de meus pais. Perguntei-me várias vezes como algo tão bonito e aparentemente comum trouxe tantas coisas ruins para tantas pessoas.

— Você sumiu, te procurei por toda a cidade. Tive que perguntar até para senhora Clotilde, e você sabe como aquela bruxa velha me assusta com aquela bengala assustadora. 

— Eu me distraí com uma borboleta, era tão bonita. A segui até aqui… — Cintia começou a chorar, as lágrimas brotavam de seus olhos e corriam por seu rosto. — Sinto tanta falta dela, Lucian. 

Ela, eu sabia, não chorava pela borboleta, mas sim por sua mãe. Fazia quatro anos desde que ela se fora. Morta nas profundezas do Abismo, assim como muitos antes dela. Cintia tinha nove anos na época, desde então, ela e seu pai nunca mais foram os mesmos.

Nunca soube como reagir a essas situações. Então fiz o que achei melhor. Fiquei ali, ao seu lado. Até o momento em que o Sol parou de reluzir nos portões e Cintia rompeu o silêncio da noite que começava a cair.

— Você quer mesmo entrar lá? — ela me perguntou.

— Como?

— Digo, você quer mesmo entrar no Abismo?

— Você sabe que sim.

— Mas, é tão perigoso, e se você não voltar? Eu tenho tanto medo. — Olhei para suas mãos e vi que elas tremiam.

Levantei-me bruscamente e fiquei de pé diante dela.

— Pois saiba que eu não tenho medo algum. Um dia serei um dos Ceifeiros e entrarei por aqueles portões, e juro que voltarei.

— Promete? 

— Prometo. — Ali, diante dos portões prateados do Abismo, firmamos nossa promessa. Promessa essa que, por mais que eu não soubesse, levaria longos anos para cumprir.

A lua começava a despontar no horizonte, estrelas brilhantes enfeitavam o céu, iluminando o caminho pelo qual eu e Cintia andávamos. Conversamos sobre várias coisas, algumas banais e outras importantes demais, do tipo que crianças da nossa idade não teriam de ter que se importar. 

E quando o silêncio ousou se espreitar entre nós, Cintia o interrompeu rapidamente com uma cantiga doce e suave que eu nunca tinha escutado até então.

Os desejos daqueles que se foram estão sempre no céu.

A brilhar, a brilhar.

Eles nos observam enquanto aguardam.

A brilhar, sempre a brilhar.

Até o dia em que eles poderão romper os céus feito um cometa.

A brilhar, continuem a brilhar.

Agora descanse estrelinha, sua vontade foi cumprida.

A brilhar, a brilhar.

O próximo desejo virá.

Quando perguntei a Cintia sobre essa canção que eu não conhecia. Ela se virou para mim e perguntou: — Lucian. De onde você acha que vieram as estrelas? 

— Reinhoild me disse que elas são esferas formadas por plasma aquecido a milhares de-

— Errado! — Ela me interrompeu.

— Que?

— Reinhoild está errado. As estrelas vieram dos desejos.

— Desejos?

— Sim. Dos desejos das pessoas. Minha mãe me disse que a cada vez que alguém faz um desejo, uma nova estrela nasce no céu. E esses desejos permanecem lá até que alguém o realize. Então mesmo que uma pessoa se vá, seu desejo continuará a brilhar nessa imensidão sem fim.

Olhei para o céu, maravilhado. Meus olhos cintilaram diante de tantas estrelas, tantos desejos. Tantos sonhos e esperanças. 

— Isso é incrível, Cintia.

Então, feito a criança tola e sonhadora que era, eu me permiti sonhar e fazer um pedido.

"Quero me tornar forte como meu pai e minha mãe, forte o suficiente para ir ao Abismo ao lado dos dois”.

Continuamos a andar, até que Cintia estacou em pleno movimento.

 — Lucian, quem são aqueles? — perguntou, apontando para o fim do beco.

Ao longe, vi dois homens altos trajados de roupas pretas e chapéus iguais. Imóveis, seus rostos escondidos nas sombras.

— Olá? — Dei dois passos na direção deles.

Cintia segurou meu braço. Ela tremia e sua voz vacilava. 

— L-lucian, cuidado.

Ao tentar dar mais um passo, congelei como um animal encurralado, pequeno e fraco. Meu coração batia rápido e alto no peito, feito um tambor.

Lá estava ele diante de mim, como num passe de mágica, um dos homens de chapéu. Agora de perto, conseguia ver seus olhos. Não eram os olhos do tipo que você vê por aí normalmente, não encontraria neles o branco da esclera mesmo se procurasse. Muito menos tons de azul, verde ou marrom. Eram olhos assustadores, tomados quase em sua totalidade por uma cor obsidiana, se não fossem por suas pupilas amarelas que seguiam meu olhar, duas em cada olho.

O homem deu um sorriso macabro por detrás da sombra do chapéu que cobria seu rosto, seus dentes eram amarelos e afiados, um bigode fino se estendia por sua boca, marcando seu sorriso demoníaco.

— Olá, pequeno leão branco — ele disse, sua voz era cortante feito caco de vidro. Senti-me prestes a vomitar, e então o mundo girou, minhas pernas cederam e tudo se apagou.

Meus pensamentos estavam confusos, tudo o que acontecia ao meu redor não passava de um borrão turvo e emaranhado.

Lembro-me de Cintia gritando. Lembro de alguém, me carregando em seus braços, mas tudo que eu podia ver em sua forma era um borrão e nada mais. Ele parecia chamar por alguém desesperadamente, sua voz abafada era um misto de raiva e preocupação. Preso em alguma parte da minha própria mente, conseguia ouvir alguém chorar baixinho. 

O borrão me carregou por um tempo, atravessou correndo o que pareceu ser uma porta e me colocou sobre um lugar macio. Vozes abafadas e mais borrões corriam para lá e para cá, ecoando de todos os cantos, algumas pareciam preocupadas, outras enraivecidas, e alguém ainda chorava.

De repente, uma dor aguda tomou conta do meu braço esquerdo e tudo voltou a ganhar forma. Vi os borrões se transformarem em rostos conhecidos, vi Reinhold, Daskin, meus pais e Cinthia, coberta de lágrimas. Debruçada sobre mim, estava Aurora, tinha algo em uma das mãos e um sorriso aliviado no rosto suado.

— Ele ficará bem. 

Tentei dizer algo ou me mover, mas as palavras se recusaram a sair e meu corpo pesou. 

E então, o mundo ao meu redor ficou turvo e se apagou novamente.

Quando acordei, minha cabeça doía e meus pensamentos ainda se embaralham, tropeçando uns nos outros. Com dificuldade, abri os olhos e me coloquei de pé.

Já era de manhã, os raios de Sol entravam pelas janelas da Mercador Sussurrante e repousavam nas diversas garrafas de vidro empilhadas atrás da bancada do bar.

Pude ouvir vozes ao longe e as segui. Demorei a reconhecer a voz de meu pai. Ele tinha um tom furioso, um que eu nunca ouvi antes.

— Os malditos quase mataram o nosso filho, Aurora! O nosso filho! — meu pai exclamou.

— Nós ainda não sabemos se foram eles. — Minha mãe, por sua vez, tinha um tom triste em sua voz, parecia preocupada.

— Cintia disse que eles o chamaram de Pequeno Leão Branco. Você sabe o que isso significa. Foi um ataque direto a mim! A nós. E tudo isso depois que o Barão do Norte dá as caras.

Meu pai estava de pé, minha mãe sentada. Seus olhos estavam profundos e escuros, pareciam exaustos. Ao me ver, os dois correram em minha direção. Ele me abraçou firmemente e ela me deu vários longos e demorados beijos pelo rosto.

— Como é bom te ver de pé, meu garoto — disse meu pai, com um sorriso no rosto.

— Estávamos tão preocupados — falou minha mãe, me abraçando forte. — Como você se sente? Está bem? — Seus olhos estavam marejados.

— Estou bem, mãe — respondi, me desvencilhando de seu abraço. — E Cintia? Ela está bem?

Os dois fizeram que sim com a cabeça.

— Ela está com o pai. Ele ficou furioso feito um cão com tudo que aconteceu — Meu pai massageou as têmporas —, nunca o vi daquele jeito.

— Que bom. — Respirei aliviado e me joguei sobre uma das cadeiras da taverna.

Os dois me contaram tudo o que aconteceu depois que eu apaguei. Segundo eles, Aurora disse que eu fui colocado sobre o efeito de uma categoria de veneno paralisante raro induzido por alguma marca poderosa. Depois disso, eu fiquei desacordado por três dias seguidos.

Perguntei sobre os dois homens no beco e eles me disseram que a busca por eles foi em vão, os dois haviam desaparecido completamente da cidade. 

— Não se preocupe, espalhamos alerta por todos os cantos e Reinhold, Úrsula e Daskin estão em patrulha procurando por eles — explicou meu pai.

Corri o máximo que minhas pernas poderiam aguentar e mesmo assim o beco tomado por escuridão parecia não ter um fim. Gritei e clamei por ajuda, por quem quer que fosse, mas minha voz não saia, presa de uma forma sufocante no fundo da minha garganta.

Continuei com esse percurso torturante até que uma voz chamou por mim.

— Lucian! — clamou a voz conhecida, se tornando um ponto de luz na escuridão sufocante.

Então segui a voz até que ela se tornasse mais alta e próxima dos meus ouvidos. Estaquei quando uma silhueta ganhou forma nas sombras. Uma garota, vestida de branco, com olhos verdes marejados que eu conhecia muito bem. 

— Cintia? É você?

Ela sorriu, não o sorriso doce e inocente de sempre. Era um sorriso largo, macabro e amarelo, que não se parecia nem um pouco com o dela, mas com…

O mundo ao meu redor pareceu tremer e então diversos olhos pretos com pupilas duplas e amarelas surgiram de todos os lados, me cercando por onde quer que eu olhasse.

— Olá, pequeno Leão Branco — disse uma voz que não era de Cintia, arranhada feito vidro. 

Subitamente, acordei com um pulo, me sentia assustado e trêmulo. Suor frio escorria pelo meu rosto e encharcava minhas roupas.

Naquela noite, e nas que vieram a seguir, não consegui voltar a dormir. 



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