As Faces do Abismo Brasileira

Autor(a): O Corvo


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: As Lâminas Cegas da Fraqueza

Uma completa e total escuridão, sombria e silenciosa.  

Por horas foi tudo que tive ao meu alcance. Até o momento em que uma voz conhecida me tirou de minha concentração.

— Me responda, meu aluno. Por que você supõe que ainda não despertou sua marca? — Reinhold indagou.

— Daskin diz que é porque eu não tenho talento o suficiente.

— Daskin é um tolo, e você sabe disso.

— Mas você e meu pai tinham menos da minha idade quando despertaram.

— Seu pai e eu vivíamos em um mundo diferente. Naquela época, era lutar ou morrer. Pessoas que não eram Marcados se tornavam corpos enfileirados no campo de batalha. Então não tenha pressa, o mundo já tem guerreiros sanguinários com marcas o suficiente. Na hora certa, ela virá até você. 

Eu senti o suor correr pela venda que cobria meus olhos, escorrer pela ponta do meu nariz e pingar no chão. 

— Mas como? Eu já tentei chamar por ela, mas eu não sinto nada…

Eu havia passado tempo o suficiente ali, sentado e de joelhos dobrados. Tentando em vão ouvir ao menos um sussurro ou um chamado.

— Isso é porque você tenta chamá-la usando palavras. Lembre-se, as marcas não falam a língua dos homens. 

— Então como diabos devo chamá-la?! — perguntei, impaciente.

— Isso é algo que você deve descobrir por si próprio, garoto. Alguns aprendem a língua de suas marcas em um momento de fúria ou de extrema alegria, já alguns morrem sem nunca arranhar a superfície do conhecimento. O que posso fazer é somente te mostrar o caminho. Mas já que você está tão impaciente assim, levante-se. Afiaremos um pouco suas garras.

Durante meu crescimento, Reinhold foi o responsável pela minha educação. Como ainda não havia instituições oficiais de ensino na Cidade Dos Começos, ele me dava aulas sobre física, matemática, português e história. Além das aulas de combate que, para ser franco, eram as minhas favoritas.

E lá estava eu, diante do meu professor robusto, que tinha o dobro do meu tamanho. 

— O que será hoje? Armas ou punhos? Escolha — Reinhold me perguntou. O que me pegou de surpresa, já que normalmente era ele que escolhia com que meios lutaríamos.

— Definitivamente armas — respondi, confiante e esperto o suficiente para escolher armas ao invés de punhos. No último treino, escolhi punhos e ainda tinha marcas roxas o suficiente pelo corpo para me arrepender daquela decisão. 

Reinhold estreitou os olhos e vi um sorriso se repuxar no canto de sua boca.

— Muito bem. Agora escolha sua arma. — Ele fez sinal com a cabeça para a mesa disposta atrás dele. 

Nela havia toda categoria de armas que se pode imaginar, desde espadas reluzentes de tamanhos variados a adagas afiadas feito dentes de dragão, organizadas e separadas por tamanho e peso. Apenas digamos que Reinhoild era um pouco metódico demais quando se tratava de organização e limpeza. 

Um sorriso confiante pairou sobre meu rosto quando fechei minhas mãos sobre os punhos de duas adagas gêmeas que estavam sobre a mesa. As duas tinham cabos pretos incrustados e detalhados por jóias vermelhas. Analisei o peso, o fio e o corte das armas, coisas essas que aprendi a fazer desde cedo. Já que a menor diferença entre uma arma boa e uma arma razoável é o suficiente para levar alguém à morte.

Se existe algo que aprendi lutando contra meu professor, foi enxergar as mínimas nuances na forma com que meu adversário luta. Era ver o balançar de uma espada e enxergar uma fissura em sua lâmina, pequena o suficiente para fazer a arma se partir em mil pedaços. Pequena o suficiente para vencer.

E eu enxergava uma fissura na arma mortal e afiada que era Reinhold, sua falta de velocidade. Extremamente habilidoso e experiente, de fato, mas lento se comparado a um jovem franzino de treze anos. Algo que se dava por sua altura e peso é claro, e que normalmente ele compensava com sua marca, mas não contra mim. 

Afinal, uma das regras dos nossos treinos era clara. Nada de marcas, não que eu tivesse uma para usar, mas ainda assim, era uma regra. E eu a usaria a meu favor. Não seria uma tarefa fácil, mas se eu quisesse ter alguma chance nesse treino, teria que ser veloz.

Vi meu sorriso animado se alargar pelo reflexo das lâminas em minhas mãos. Adagas são armas velozes, e velocidade era o que eu precisava.

Após passar duas semanas sem treinar, eu sentia a necessidade de extravasar de alguma forma, esquecer um pouco sobre o homem misterioso de olhos obsidiana. Meus ossos pareciam clamar por ação, por uma forma de gastar minha energia.

Devo admitir também que a outra parte do ânimo para o treinamento se vinha de uma ideia que eu havia nutrido em minha cabeça desde o momento em que acordei.

— Pronto, Lucian? — Reinhold perguntou, se aproximando de mim. — Oh… Adagas, hein? — Seus olhos se estreitaram e ele abriu um sorriso provocador. — Escolha interesse, meu aluno.

— Antes de começarmos, eu tenho uma proposta — eu disse.

Meu professor se pôs diante de mim, cruzou os braços e me fitou com um olhar curioso.

 — Pois me diga qual é sua proposta. 

— Se eu vencer, você falará com meus pais sobre me levar ao Abismo — respondi, meu tom de voz firme e confiante.

Eu esperava uma bronca como de costume ou um “não” seco como resposta. Mas o que recebi foi uma risada, alta e a plenos pulmões. 

— Você não desiste mesmo, garoto! — De repente, sua risada se interrompeu, substituída por um olhar sério, do tipo que só pais, mestres e sábios possuem. — Nós já conversamos sobre isso, Lucian. O Abismo é perigoso demais para você, perigoso demais para qualquer um.

— Eu sei. Mas eu já farei quatorze anos logo logo. Estou pronto.

— Ninguém nunca está pronto para um lugar como aquele. Muito menos um garoto de quase quatorze anos.

— Mas eu sou bom com as armas, e você sabe disso.

— Eu sei. Você é um dos melhores que já treinei com sua idade. Se não o melhor. Mas… — Ele deixou que as palavras morressem em sua boca.

— Então isso é um sim? 

Reinhoild respirou fundo e cruzou os braços sobre o peito.

— Primeiro, se concentre em tentar me derrotar. — Estendeu uma mão em direção a mesa de armas. Um martelo pendurado sobre ela tremeu e saiu voando de encontro com sua enorme mão. — Outra hora falamos sobre isso. 

"Exibido".

— Lembre-se, não usaremos nossas armas para cortar e ferir, mas sim para se defender e desarmar o adversário. O primeiro a desarmar o adversário vence. Pronto?

— Pronto! — respondi do outro lado da pequena arena em que estávamos. Usávamos o lugar para treinar, já que ele era protegido e a prova de sons, um arranjo mágico e poderoso feito por Aurora.

Reinhold me encarava com seus olhos pretos pensativos, rígidos feito pedra. Como de costume, ele não me atacaria enquanto eu não me movesse. O primeiro movimento sempre tinha de ser meu.

Respirei fundo e me concentrei. O ar de repente pareceu ficar mais denso. Eu conhecia a maioria dos movimentos de Reinhold, sabia do seu estilo de luta. Mas ele também sabia tudo isso e muito mais ao meu respeito, além de ter a experiência de anos a seu favor. O que fazia meu coração bater mais acelerado.

Todavia, não fazia sentido me preocupar com aquilo, não naquele momento. Meu adversário estava à minha frente, esperando meu ataque. Então eu teria de agir. Teria de atacar. Fazer o primeiro movimento.

Apertei firme as adagas em minhas mãos e comecei a correr em uma linha reta, e os olhos arregalados de Reinhold me diziam que ele não esperava por isso.

Então arremessei uma de minhas adagas. E por alguns segundos o mundo pareceu desacelerar.

Vi a arma se aproximar do peito de Reinhold, antes dele a rebater facilmente com um movimento de seu martelo. Entretanto, eu já contava com isso, o que me interessava era o buraco que se abriria em sua defesa no momento em que ele repelisse meu ataque.

Foi nesse momento que o mundo voltou a entrar em foco. A abertura estava ali, ao meu alcance. Minha lâmina a centímetros do lado esquerdo do corpo do meu professor. Ele não conseguiria desviar a tempo e teria que ativar sua marca para evitar o golpe. 

"Uma vitória fácil".

— Lento — Reinhold disse, antes de desviar da minha adaga como quem desvia do soco de uma criança fraca e me pôr ao chão com um simples chute em minha perna de apoio. 

Antes que eu pudesse me recuperar, ele já estava diante de mim. Seu martelo apontado para minha cabeça.

— Você perdeu.

“Merda!”. Soquei o chão, frustrado.

— Agora me diga. Quais foram os seus principais erros? — Ele estendeu sua enorme mão para mim.

— Acreditar que eu teria alguma chance de vitória contra você? — respondi, enquanto me agarrava à sua mão e me levantava do chão.

— Não. Acreditar que uma fraqueza era de fato uma fraqueza. Você tentou usar o fato de você supor que eu era mais lento do que você contra mim, certo?

Fiz que sim com a cabeça.

— Pois bem, o que te faz pensar que eu também não sei dessa “fraqueza”? — Reinhold tocou com a ponta de um dos dedos na têmpora. 

A compreensão me fez xingar mais ainda mentalmente.

— Você vê? Ao ter consciência de suas falhas e treinar para superá - las, você vence aquele que pensa que uma fraqueza é uma fraqueza. Não tema aquele que faz brilhar ainda mais a lâmina das habilidades em que se tem domínio, mas sim aquele que afia diariamente as lâminas cegas de sua própria fraqueza. Agora volte a treinar, o Abismo não fugirá de você.

Naquele dia, voltei para casa com um mau humor tremendo, uma dor de cabeça e com meu corpo inteiramente dolorido.



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