Volume 1
Capítulo 2: Meu Nome?
"Senhor, ouça meu clamor! Não me deixe cair nas mãos do mal... envolva-me com sua luz, eu imploro."
Ela apertava a bíblia com as mãos trêmulas contra o peito, como se fosse a única coisa capaz de protegê-la naquele momento enquanto lágrimas escorriam por seu rosto.
Ao abrir os olhos, o viu ali — parado à sua frente, com o capuz caído para trás e um enorme saco ao lado.
— Está tudo bem! — afirmou, apoiando-se sobre um dos joelhos e estendendo a mão em direção à moça.
Ela recuou rapidamente, engatinhando para trás com o rosto pálido e horrorizado enquanto tentava controlar as lágrimas.
— Eu entendo — completou, puxando a mão de volta devagar, ao perceber que a proximidade só aumentava o medo. — É... isso tudo deve ser demais para você, não é? — acrescentou enquanto olhava para o cenário de destruição que os cercava.
A garota o encarava, os olhos marejados, ainda em choque, sem saber como reagir.
Mesmo tão fechada em suas reações, ele insistia.
— Consegue ficar de pé?
Nenhuma resposta. O silêncio pairava entre eles, quebrado apenas pelo vento quente, espalhando as cinzas. Ao fundo, o crepitar das chamas e os estalos das madeiras deixavam a vila em ruínas.
— Sinto muito pelo que aconteceu com você e com sua vila... mas não podemos ficar aqui.
Ele lançou um olhar atento à floresta ao redor, como se esperasse algo surgir das sombras.
— Já está anoitecendo... e a próxima vila fica a mais de uma hora de caminhada — completou, levantando-se.
Ela o escutava em silêncio, enxugando as lágrimas enquanto seus olhos, ainda hesitantes, se fixavam nas foices sujas de sangue presas à cintura do rapaz.
Ao notar a atenção da jovem, puxou o sobretudo, escondendo-as.
— Sei que sou um estranho mas não estou aqui para te machucar. — sussurrou, tentando aliviar o peso do momento.
Ela respirou fundo, fechando os olhos por um instante.
Com um movimento hesitante se ergueu com o corpo tremendo, seus cabelos sujos caíam
sobre o rosto enquanto se apoiava no braço esquerdo com sua mão direita, em uma tentativa de se firmar
Ele então esboçou um sorriso de canto, jogou o saco nas costas e, em seguida, ambos seguiram em direção a um caminho na borda da floresta.
Após alguns instantes, o caminho estreito se perdia na floresta envolta pela escuridão. A brisa fria tocava seus rostos, e apenas os grilos rompiam o silêncio enquanto os passos afundavam na terra fria, sumindo sob o olhar imóvel das árvores imponentes.
— Marie! — exclamou a jovem. — Meu nome é Marie!
O rapaz arqueou uma sobrancelha de maneira espontânea.
— Bom, é um prazer, Marie — respondeu, encerrando rapidamente o assunto.
— E o seu? Qual é o seu nome?
— Meu nome? — indagou. — Depois de tudo o que aconteceu, não imaginei que essa seria sua primeira pergunta.
— Claro, tenho muitas outras perguntas, por exemplo, o que você está levando nesse saco fedido! Mas preciso começar por saber quem você é, se quiser tentar entender toda essa loucura.
O jovem soltou uma risada de canto.
— Meu nome não importa... e, sinceramente, quanto menos você souber sobre mim, melhor. E quanto ao saco? Acho que não vai querer saber.
— Não, não vem com essa — retrucou Marie, a voz embargada. — Aquelas criaturas... elas mataram todos... — completou, apertando a bíblia contra o peito, sentindo o peso da dor.
— Sim… eu sinto muito pela vila. Não cheguei a tempo…
— Não! Quer dizer… não era minha vila, eu só estava de passagem, mas todas aquelas pessoas… — Marie parou por um instante, os olhos marejados. — Por isso eu quero que me diga quem você é!
— Aquelas coisas… eram demônios, não eram? — mal conseguia respirar entre as palavras.
— E aquele lugar...? Pra onde você me levou? — as palavras saíam emboladas. — A gente... sumiu! Tudo escuro... cheio de gente... — um soluço escapou, entrecortando a fala enquanto levava as mãos à cabeça. — E depois, do nada, voltamos, em outro lugar!
— Isso… não é normal! — gaguejou.
— Ei, calma... respira — o rapaz parou à sua frente, tirou o saco do ombro e apoiou suavemente as mãos nos ombros dela, com uma expressão serena, tentando acalmá-la.
— Estamos bem e isso é o que importa. Mas agora, precisamos focar em chegar à próxima vila o quanto antes, tudo bem?
Marie assentiu com a cabeça, enxugando as lágrimas com as próprias mãos.
Caminharam em silêncio por alguns minutos.
— E essa bíblia aí? É religiosa? — perguntou, tentando suavizar o ambiente, sem olhar para trás.
Marie deu um sorriso ao voltar a atenção para a bíblia em sua mão.
— É importante para mim, gosto de manter por perto. Mas sim… venho de uma família religiosa.
— Família religiosa, é? — sua curiosidade foi atiçada. — Te obrigam a ir à igreja e essas coisas?
— O quê? Não! Eu vou porque é lá que eu realmente me sinto em paz... É como se, por um momento, o mundo ficasse mais claro, sabe? Como se eu pudesse sentir que estou conectada com algo maior… e, de algum jeito, protegida.
O rapaz levantou uma sobrancelha.
— Protegida? Bom, as pessoas da vila provavelmente não compartilhariam dessa visão.
Percebendo o sarcasmo na fala o questionou:
— É curioso você dizer isso, porque, pensando bem... Para fazer tudo o que fez, você seria um usuário de magia da fé, não?
O jovem ouviu em silêncio, sem reagir, como se já soubesse que aquela pergunta viria uma hora.
Enquanto caminhava, refletiu consigo mesmo:
“Magia... essa seria a explicação mais simples. Existem duas formas: a da fé, que vem da devoção e conexão com o divino, ou até mesmo por meio de artefatos sagrados... e a das trevas, alimentada pela dor, medo e corrupção, geralmente despertada por pactos com demônios. Ambas têm um preço, mas a última consome a alma de quem a usa.”
— E então? — Marie insistiu após seu silêncio, olhando para ele com expectativa.
— É complicado… — respondeu, hesitante.
— Complicado?
Ela desviou o olhar por um instante, antes de mudar de assunto.
— Falando em complicado... quando sumimos e reaparecemos perto daquela árvore, você olhou pra mim como se tivesse visto um fantasma. O que aconteceu?
O jovem parou ao ouvir as palavras, fechando os olhos por um momento enquanto respirava fundo.
— Achei que fosse outra pessoa... alguém que conheci. Só isso. — sua voz saiu baixa, quase como se quisesse encerrar o assunto ali.
A garota apenas assentiu em silêncio, respeitando o fim da conversa sem insistir.
Depois de mais algum tempo de caminhada avistaram uma placa com o nome da vila: “Satigny”.
A cidade estava cercada por vinhedos e o ar noturno estava repleto do doce cheiro das uvas maduras. As lamparinas ao longo do caminho lançavam uma luz suave, que iluminava o terreno até um campo de uvas logo ali perto, criando uma atmosfera acolhedora e tranquila.
Enquanto passavam pelo campo, avistaram uma bela dama sendo ajudada por um homem a descer de sua carroça.
De imediato, Marie parou e estreitou o olhar, reconhecendo algo à distância.
— Padre Louis? — chamou, a voz carregada de surpresa.
O homem, ao ouvir a voz familiar, girou ao redor até que seus olhos finalmente se fixaram em Marie.
— Marie? — ele perguntou, o rosto corando instantaneamente.
— Padre! Que alegria vê-lo por aqui! Já faz tanto tempo! — exclamou, sorrindo de orelha a orelha.
Ela correu até ele e o abraçou com um impulso, quase como se não quisesse mais soltá-lo.
— Marie, o que aconteceu com você? Está toda suada e suja! — exclamou o padre, preocupado, segurando suavemente o rosto dela, como se tentasse analisar os sinais de cansaço e sujeira.
— Ah, não se preocupe com isso, eu estou bem! Só me perdi enquanto procurava o caminho para Genebra… — respondeu rapidamente, tentando desviar o foco. — E o senhor está aqui para comprar uvas de novo, não é? Sei que ama!
O padre, ainda surpreso, retribuiu o abraço.
— Sim, minha querida, uvas — confirmou, coçando a nuca com um sorriso tímido.
— Falando nisso, aqui está o dinheiro.
Louis se virou para a dama, entregando-lhe uma quantia em moedas. Que, sem hesitar, guardou o dinheiro com cuidado em uma bolsa de veludo.
— Foi ótimo fazer negócios novamente com o senhor… padre — disse a dama com um leve sorriso. Ela então lançou um rápido olhar ao jovem antes de virar-se e seguir seu caminho, com passos elegantes.
— Ah, padre! Quero que conheça o... hã… — Marie começou, puxando o rapaz suavemente pelo braço até aproximá-lo.
O mesmo não hesitou e estendeu a mão com naturalidade.
— Sou um amigo da Marie. Ela se perdeu na floresta, e eu apenas a ajudei a encontrar o caminho até aqui — acrescentou, cumprimentando-o.
— Ah, sim... então eu lhe agradeço, de coração — respondeu, retribuindo o cumprimento — Eu estava aqui fechando negócio com a fazendeira e, como pode ver... — apontou com a cabeça para os sacos na carroça — acabei levando alguns bons cachos de uva.
— Sim. Consigo ver — sussurrou. — Aliás, que sorte a nossa encontrá-lo por aqui…
— De fato — afirmou, com um sorriso de canto. — Aqui, sem dúvidas, estão as melhores uvas de toda a Europa, arrisco dizer. E o melhor: fica a apenas trinta minutos de nossa cidade, se formos de carroça.
Fez uma breve pausa, então puxou um pequeno relógio de bolso e conferiu as horas.
— E por falar nisso… — continuou, guardando o relógio — precisamos ir, Marie. Já está bem tarde. Mais uma vez, agradeço a ajuda.
Tocou gentilmente o ombro do rapaz, com um aceno de cabeça cordial, antes de começar a se dirigir até a carroça.
O jovem se aproximou de Marie, ainda observando o padre subir na carroça.
— Então… é isso. — disse, deixando o saco que carregava cair ao chão com um leve baque abafado.
— É, acho que é. — respondeu. — Ei… acho que ainda não te agradeci de verdade. Obrigada por me salvar.
Os olhos dela brilharam com lágrimas contidas, mas rapidamente os enxugou com a manga da blusa, tentando manter a compostura.
— Não precisa agradecer. — sussurrou em resposta — Não sou muito bom com despedidas.
Estendeu a mão, ajudando-a a subir na carroça com cuidado.
— Cuide-se no caminho até a cidade, tá?
Havia firmeza na voz dele, mas o olhar era suave e quase protetor.
Marie apenas assentiu e se acomodou ao lado dos sacos de uva.
Quando o padre deu o sinal para partir, o jovem deu um passo para trás, ergueu o saco de volta ao ombro e completou:
— Aliás… meu nome é Kant.
Marie ergueu o rosto, surpresa, e abriu um sorriso sincero. Acenando para ele uma última vez antes da carroça começar a se mover lentamente.
Kant permaneceu onde estava, em silêncio, observando enquanto a silhueta dela se afastava cada vez mais até desaparecer na estrada.
“Ela parece ser uma pessoa gentil…” pensou, esboçando um sorriso discreto, quase melancólico.
— Espero que tenha um destino melhor que o meu. — murmurou em voz baixa, como se falasse mais para o vento do que para si mesmo.
Suspirou profundamente, como quem solta algo preso no peito, e então virou-se, caminhando sozinho por uma rua de paralelepípedos úmida e silenciosa, as lamparinas lançando sombras suaves ao seu redor.
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