Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 3: Prazer... Morte!

Após se despedir de Marie, seguiu pela rua ainda banhada pela luz suave e impregnada pelo perfume doce das uvas. O ar da noite era suave, quase reconfortante enquanto ele caminhava em direção ao centro da vila.

— Ora, ora… olha só quem apareceu. Quem é vivo sempre dá as caras, hein? — disse uma voz repentina, carregada de sarcasmo. — Não me diga que você realmente caiu nessa história das uvas, Mavet…

Kant virou-se lentamente, sem demonstrar surpresa.

Ao seu lado, um esqueleto vivo se movia com uma leveza desconcertante, os ossos rangiam a cada passo. Seu crânio era parcialmente coberto por um capuz branco que quase caía de tão puído. A ausência de pele deixava as órbitas vazias e a mandíbula pendendo como um sorriso cínico.

Mesmo sem carne, havia algo inquietante na naturalidade com que ela falava.

— Conheço muitos produtores de uva na região — respondeu ele, sem diminuir o passo, com uma risada sutil — Mas com tão pouca roupa? Aquela ali não era um deles.

— E eu já falei pra não me chamar de Mavet!

A caveira riu, dando um tapa amigável nas costas dele, como se os anos não tivessem passado.

— Tá, tá… também é bom te ver, velho amigo.

O rapaz lançou um olhar de canto, a expressão um pouco mais tranquila.

— Bom te ver, Ducare. — continuou. — E então… o que tá fazendo aqui? Sabe que não é uma boa ideia ser visto comigo, né?

— Ah, deixa disso! — retrucou cutucando o ombro dele, como quem tenta quebrar o gelo.  — Olha só pra você… tá com uma cara ótima. Andou matando muito, hein? 

O que o arrancou um sorriso quase imperceptível.

— É… Já você parece só o osso.

— Oho! Piada de esqueleto. Gosto disso. — riu a caveira enquanto balançava a cabeça.

Andaram lado a lado por alguns metros, até chegarem a ruas mais apertadas, onde as casas começavam a se amontoar.

— E então... como vão as coisas na superfície? — perguntou Ducare, tentando soar casual.

— Me virando. Caçando recompensas, dormindo onde dá... vivendo como posso.

— Ah, claro. Vida emocionante — respondeu sem saber muito bem o que dizer.

— E no vazio? — devolveu, lançando-lhe um olhar de canto.

— Maravilhoso. Um paraíso, como sempre — disse abrindo os braços como se apresentasse um palco vazio. — Ceifeiros pra todo lado, ecos que fazem a sanidade escorrer pelos cantos... o nada sussurrando nos corredores do próprio nada. Você sabe como é.

Kant soltou um som baixo pela garganta — algo entre um riso abafado e um suspiro seco — e apenas assentiu. O silêncio entre eles permaneceu por mais alguns passos, tranquilo, quase confortável. 

O som ritmado das botas ecoava pelo calçamento irregular da rua estreita, ladeada por casas antigas de madeira e pedra. Videiras cobriam cercas e muros, balançando suavemente com a brisa fria da noite.

A luz esmaecida de um lampião os envolveu por um instante quando passaram sob seu arco. As sombras dançaram brevemente sobre seus rostos antes de voltarem à penumbra.

— Você não veio só pra conversar… nem só pelas piadas, certo? — perguntou o rapaz.

Ducare apenas assentiu. Ficou calado por um tempo, acompanhando-o pelas sombras da rua.

— Já fazia tempo que você não pisava no Umbral… — disse, por fim, com a voz mais baixa. — E no segundo em que voltou, o Vazio sentiu sua presença. Não tenho ideia do que você e aquela garota estavam fazendo lá, mas devia tomar mais cuidado.

Enquanto falava, puxou do bolso uma moeda prateada com o relevo de uma caveira corroída, fazendo-a dançar entre os dedos ossudos, distraidamente.

— Desde que você abandonou seu dever, os que te seguiam passaram a te odiar… e os que já te odiavam agora querem você morto. Eu sei que não foi fácil o que aconteceu com as su—

Foi interrompido com violência.

Duas faces femininas surgiram por um instante na mente de Kant. Ele então agarrou o companheiro pela cervical exposta e o lançou contra a parede de pedra. A moeda caiu no chão e rolou até sumir na escuridão.

— Você não sabe de nada! — rosnou, os olhos acesos de fúria. — Só sabe o que ouviu falar! Se acha que pode simplesmente aparecer aqui e me convencer a voltar atrás, depois de tudo... está perdendo seu tempo!

Soltou o saco dos ombros no chão, o tecido levantando poeira. Em um só movimento, puxou o sobretudo para o lado, revelando uma das foices presas à cintura.

— Mas se quiser... — sua voz agora fria como a lâmina. — Pode avisar aos outros que estou esperando quem tiver coragem de vir me desafiar.

Ele inspirou profundamente antes de soltar o amigo. Em um gesto firme, apanhou o saco no chão e o jogou sobre o ombro.

— Que droga, cara! — explodiu Ducare, endireitando-se com dificuldade. — Você sabe que estou do seu lado, merda!

Sua mandíbula tremia, não de medo, mas de frustração.

— Aliás… sou o único do seu lado.

— Então era isso? — rebateu, o tom seco. — Veio até aqui só pra me mandar tomar cuidado?

Continuaram andando até se aproximarem de um bar no fim da calçada, iluminado por uma luz amarelada e trêmula.

— Vai nessa. Você está entre os mais procurados pelos demônios.

Ele parou por um instante e virou levemente o crânio na direção do rapaz, as sombras do capuz acentuando ainda mais o vazio nas órbitas.

— E eu te conheço... Sei que já percebeu isso.

— O que talvez ainda não saiba é... — continuou — eles não querem só te caçar. Querem te substituir.

Kant o encarou com seriedade.

— Eu já deixei esse cargo. — ficou em silêncio por um segundo, como se pesasse cada palavra.

— Acha mesmo que é assim que funciona? — perguntou cruzando os braços. — Não dá pra simplesmente abdicar de algo assim.

Fez uma pausa curta, e então prosseguiu.

— Dizer pra tomar cuidado seria avisar sobre algo que pode acontecer... Mas isso aqui? Vai acontecer.

Inclinou a cabeça devagar, e os ossos do pescoço estalaram como madeira velha se partindo.

— Mais cedo ou mais tarde... eles vão vir com tudo, parceiro.

— E eles já tem algum sucessor em mente? — perguntou.

Ducare soltou uma risada seca.

— E eu lá sei? Sou só um ceifeiro. Isso tá correndo por todo o vazio, só tô te passando o que ouvi.

Kant apenas ouvia atentamente.

— Demônios… — repetiu em voz baixa. — E por que não me avisou antes?

O esqueleto balançou a cabeça, como se a resposta fosse óbvia.

— Ah, claro… porque é tão fácil te achar, né não? Você se esconde até de si mesmo…

— DEMÔNIO.

O grito ecoou de dentro do bar, abafando até o farfalhar das videiras ao vento.

Ducare ergueu os olhos para o céu noturno, soltando uma última risada rouca enquanto tirava outra moeda do bolso e a lançava ao ar com um gesto preguiçoso.

— Olha só que beleza... bem na hora de ir.

Mas antes que ela pudesse começar a cair, Kant estendeu a mão e a pegou no ar, sem tirar o foco do amigo.

— Você sabe por que eu não posso voltar, não sabe?

O Ducare assentiu, o olhar ficando mais sério conforme o tom de brincadeira se dissolvia.

— Sempre achei esse um fardo grande demais para um humano... não te culpo por ter largado.

Por um instante, os olhos do jovem cruzaram com o vazio no rosto da caveira, que inclinou a cabeça em direção ao bar — o capuz branco acompanhou o gesto.

— Vai lá e resolve isso... — disse ele, com um tom mais leve, quase brincalhão. — E, se puder, tenta não se enfiar no vazio de novo... pelo menos por enquanto.

Fez uma breve pausa e virou o rosto lentamente, encarando-o mais uma vez.

— Ah... e Mavet — completou, a voz agora mais baixa — não tive a chance de dizer antes, mas... sinto muito pelo que aconteceu. Se cuida parceiro.

Então deu um passo para trás. Um portal negro se abriu sob seus pés, como uma sombra viva que se espalhava silenciosa engolindo o chão.

Kant permaneceu ali por alguns instantes, quieto, digerindo aquelas palavras. O olhar ainda preso no ponto onde Ducare desaparecera.

Aos poucos, desceu a atenção até a moeda em sua mão. Girou-a entre os dedos, absorto, como se aquele pequeno objeto carregasse um peso que ia além do metal. Seus pensamentos pareciam distantes, presos a um passado que não queria nomear.

Com um gesto lento, a guardou em um dos bolsos do sobretudo. Então ergueu o rosto para o céu noturno e inspirou fundo.

O som de gritos o trouxe de volta.

— Demônio! Alguém chame os paladinos!

Kant virou-se lentamente em direção ao bar, onde a confusão crescia. Um lampejo de cansaço atravessou seu semblante.

— É… acho que minha única paz vai ser depois de pendurar as botas. — murmurou, com um sorriso torto. — E olhe lá...

Endireitou o corpo, ajustou o saco no ombro e dirigiu-se em direção à porta, como quem já sabia que não tinha escolha.

Ao entrar, deparou-se com uma cena peculiar.

Os clientes, armados com facas, garfos e garrafas quebradas, mantinham a mulher cercada perto do balcão. Seus chifres curvos e a longa cauda fina, terminando em uma ponta afiada como seta, denunciavam sua natureza.

Atrás do balcão, o barman tremia. Com mãos suadas, puxou um crucifixo escondido sob o tampo, o rosto tomado pelo terror.

— Demônio! — rosnaram alguns, cuspindo a palavra como se queimasse na boca.

Kant ergueu uma sobrancelha, mas não parou. Caminhou até o balcão, puxou uma cadeira e se sentou ao lado da suposta ameaça. Com um baque seco, jogou o saco que carregava sobre a madeira polida em direção ao barman.

O som fez o barman estremecer. Ele engasgou no próprio fôlego.

 — Ei, garoto! Saia daí! — gritou, com a voz trêmula. — Essa coisa... ela é um demônio!

A mulher, alheia ao caos ao redor, girava calmamente uma taça entre os dedos, observando o vinho escarlate dançar sob a luz do bar. Levou-a aos lábios, tomou um gole e franziu o rosto com leve repulsa.

— Argh... tão amargo. A bebida de vocês, humanos, não tem gosto algum.

O barman hesitou, ainda fixo no embrulho. Com as mãos trêmulas, deixou o crucifixo de lado e desamarrou.

Assim que o couro se abriu, o cheiro espesso e metálico de sangue preencheu o ar. Dentro, cabeças de monstros empilhadas, algumas com os olhos ainda arregalados, o horror congelado nas feições.

Seu rosto perdeu toda a cor. Cambaleou um passo para trás, com a voz presa na garganta.

— C-Como...? Você fez isso sozinho!?

Ele se virou, analisando a parede às suas costas, onde vários cartazes de recompensa estavam pregados. Parou diante de um em especial — mostrava as grotescas feições de três criaturas com aparência de porcos. As mesmas que agora jaziam empilhadas na sacola ensanguentada.

Soltou um suspiro de alívio, quase desabando sobre o balcão.

— Graças a Deus… você é um caçador de demônios. Ótimo. Estamos salvos.

Kant soltou uma risada baixa, sem nem ao menos olhar para o barman.

— Caçador de demônios? — repetiu com desdém. — Só estou aqui pela recompensa.

O homem congelou, o alívio anterior sumindo de seu rosto. Seus olhos o vasculharam de cima a baixo, como se ainda buscassem alguma esperança.

— Então você… você não é um usuário de magia sagrada...? — perguntou com a voz trêmula, como se implorasse por outra resposta.

O rapaz apenas negou com a cabeça enquanto encarava o barman, um leve sorriso surgindo nos lábios — calmo, quase provocador.

O barman recuou lentamente, a mão trêmula apontando em direção ao jovem.

— Demônio... — gaguejou — Ele também é um... são dois demônios!

O bar mergulhou no caos. Cadeiras foram arrastadas, copos caíram ao chão, e clientes tropeçavam uns nos outros tentando alcançar a saída.

Kant soltou um suspiro, como se o alvoroço ao redor não passasse de um leve incômodo. Sem pressa, serviu sua própria bebida, o líquido tilintando suavemente no copo.

— Então era você quem estava me seguindo? — disse, com o olhar fixo no copo. — Se tivesse a intenção de me atacar, teria feito isso enquanto eu enfrentava aqueles monstros.

Levantou o rosto, finalmente virando-se para a mulher sentada ao lado.

— Mas como não é o caso... o que você quer?

Ela sorriu de leve, apoiando o queixo na mão, ainda fixa nele. 

Sua pele carregava um tom vermelho acinzentado, contrastando com os longos cabelos volumosos que escorriam por entre seus dedos — prateados nas pontas, como fumaça sob a lua. Pequenas garras, delicadas mas afiadas, repousavam sobre o balcão. Seus olhos, de um laranja vívido, ardiam como brasas vivas na penumbra do bar.

— Estava observando... avaliando. Queria saber se você era mesmo quem eu procurava.

Kant não respondeu de imediato. Apenas levou o copo aos lábios, bebendo lentamente.

— E então? — murmurou, colocando o copo de volta sobre a madeira. — Chegou a alguma conclusão?

A mulher se inclinou sutilmente para frente, o movimento fazendo suas orelhas pontudas, adornadas por pequenos piercings metálicos, balançarem levemente. 

Os olhos brilharam ao notar as marcas estranhas nas mãos dele, percorrendo cada símbolo com um interesse quase íntimo. Um sorriso afiado desenhou-se em seus lábios.

— Mavet… É hebraico, não é?

Ele recolheu a mão de imediato, sem dizer uma palavra.

O sorriso dela se ampliou.

— Pela sua reação… agora tenho certeza.

O bar mergulhou em silêncio. O som das garrafas, dos copos, até mesmo da respiração pesada dos clientes, tudo pareceu cessar. 

O ar ficou denso, como se algo estivesse prestes a desabar.

— É você... não é? — sussurrou ela. — A Morte.

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