Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade

Capítulo 48: Luz

“A gente vai morrer aqui…? É isso mesmo…?”

Sombras a rodeavam de todos lugares, surgidas detrás de móveis, pequenos buracos na parede e qualquer outro tipo de fresta.

As infinitas garras se prendiam em cada ponto da estrutura, solidificadas a partir da pura escuridão.

Cada uma se acumulava em uma massa única, unida com a intenção de mantê-la presa. O contato, frio e sem vida, trazia à tona a verdadeira natureza sobrenatural de suas amarras. 

Seja o que fossem ou de onde houvessem vindo, a única sensação que deixavam era a de que não veria a luz lá fora mais uma vez.

“Então vai acontecer comigo também…? Eu só…”

De repente, a chegada daquele estranho rapaz em sua vida pintava os mistérios da cidade em uma nova luz. Sua mente imaginativa nunca teve muitas dificuldades com entender histórias fantasiosas, por isso, podia afirmar não se sentir tão surpresa ao saber da verdade.

Contudo, metade de si tinha plena consciência de que uma fração de seu comportamento vinha da ficha não ter caído ainda.

Eram coisas demais para qualquer mente acumular, mesmo que se tratasse de uma tão aberta à aceitação de qualquer bizarrice, como a dela.

“Eu só quero que…”

Presa contra a parede, os pulsos congelavam, diante da sensação quase gelatinosa das sombras, lhe roubando o calor mais rapidamente do que podia calcular. Já não sentia mais as pontas dos dedos ou as mãos, em torpor absoluto.

“Só quero que elas não venham…”

E mesmo assim, seus pensamentos não repousavam em si mesma e muito menos em sua próxima segurança. Ao invés disso, seus olhos verdes pintavam, no meio das sombras dançantes, três formas femininas.

Suas risadas imaginadas e relembradas coloriam as trevas, trazendo a luz que ali não existia, todos os momentos que viveram juntas cruzando suas lembranças. 

Lembrava-se de cada livro, de cada poesia recitada, de todos os estilos de escrita e gostos tão diferentes das melhores três pessoas que já teve a oportunidade de conhecer.

Não tinha medo de seu próprio destino, e se tivesse que ser honesta, diria até não se importar com o que tivesse de acontecer. 

Se fosse para ser morta ou pior, de certo modo já entrava em relativo conforto com a realidade.

“Eu só quero que elas não cometam o mesmo erro… De vir para cá…”

Era egoísta de pensar, mas não se importava. Desejou que parassem — que deixassem de perseguir seus sonhos e aspirações, que não mais tentassem aprender sobre os incontáveis mistérios por trás dos assassinatos, e que, se possível, renegassem suas vidas a um trabalho chato como contadoras de algum escritório na cidade grande —, tudo para se manterem vivas e bem, distantes desse pesadelo.

“Não venham… Não venham atrás de mim… Por favor, não venham…”

Não suportava o mero pensamento dessas coisas tão sujas corrompendo os corpos daquelas com as quais se importava tanto, esperançosamente rezando para que não entendessem que ela escolheu vir sozinha e decidissem investigar seu paradeiro por conta própria, sendo conduzidas inevitavelmente para esse lugar tão amaldiçoado quanto o restante da cidade inteira.

No final, como eles diziam: “a curiosidade matou o gato”.

“Elas estão se reagrupando…”

Assistir as sombras dançarem em um ritmo perfeito demais para ser verdadeiro a fazia enxergar a verdade por trás de si com ainda mais intensidade. Essas criaturas não tinham como ser coisas vivas.

“Ryan… Em que tipo de conspiração você está envolvido…?”

Não queria acreditar plenamente nas palavras dele. As coisas ainda lhe eram enevoadas e confusas, mas, a cada segundo passado, novas evidências apareciam, de coisas grandes e muito além da imaginação humana, ocorrendo não apenas na pequena cidade.

“Ataques terroristas… Uma infecção estranha atingindo os países da Europa… E esse nome… Savoia… Ele… Esse nome me lembra de alguma coisa…”

Tentou puxar a corda no fundo de sua memória. A informação estava pronta para sair, justo tão próxima de ser relembrada…

Esforço… Talvez só precisasse se esforçar… Se conseguisse lembrar de ao menos um pouco a mais, então ela…

HAAAAAAAAAAAAAH!

A exclamação do outro lado da porta a puxou como um peixe fisgado, trazido para fora da água, arrancando sua consciência de sua busca sem frutos, chamando atenção para o novo padrão no movimento das sombras.

— Toma essa…! — Foi o que seus ouvidos captaram, antes da porta do quarto ser arruinada.

A queda da madeira ao chão trouxe a luz que cintilou fundo nos seus olhos verdes. Diante de si, ali estava sua forma, erguida e mais vívida do que nunca.

As sombras reagiram violentamente à chegada dele, todas se agrupando para um ataque conjunto.

 Depressa, conjuntos de escuridão amorfa se uniam na forma de garras múltiplas, deslizando sobre o chão facilmente, semelhantes a barras de sabão molhadas.

— Eu não vou deixar… A mesma história se repetir de novo…!

Todas as garras se projetaram em sua direção, esticadas como línguas de sapo. Em conjunto, miraram individualmente em cada trecho de seu corpo, visando arranhá-lo.

Em movimentos graciosos, ele desviou de cada uma.

A sobrenatural luz púrpura nos olhos dele quase a hipnotizava, e mesmerizada pelo espetáculo, esquecia de tudo para assisti-lo, tão fluidamente, se movimentar pelas paredes e chão do segundo andar.

Desviou de duas garras ao saltar para a parede à direita. O impulso de sua perna esquerda o enviou a todo ritmo para a frente.

Mais uma garra, pronta para agarrar sua perna, surgiu logo abaixo… Sem problemas, já que o giro no chão em torno de seu próprio eixo o mandou para longe de sua área de alcance.

— Eu tô chegando, Emily…! Segura um pouco aí! — disse, agarrado em uma das tábuas de madeira na janela.

Com tal gesto, usou toda a grande resistência dos pregos enormes que sustentavam a janela fechada para tornar uma força, até então antagonista, em uma aliada. 

Confiante em sua resistência, tirou os pés do chão para evitar outra garra.

— Não vão me pegar…! Eu não tô me dando todo esse trabalho por nada…! Minhas pernas doem como nunca na vida…!

A alma de Emily quase saltou para fora ao ver o passo extremo que ele tomou, ao simplesmente fazer o impossível. Ryan, ainda sustentado apenas por seu braço, encaixou as pernas contra a parede de maneira que somente um acrobata profissional faria.

— Por favor, que isso dê certo…! — Mostrou os dentes. — Eu preciso que funcione…!

Ela não viu, mas o rapaz tomou para si quase todo o ar da sala, entrando em um estado de foco máximo. Seus olhos cintilavam mais do que nunca, uma linha de sangue escapando de sua narina direita, caindo pelo queixo.

— Salto da fé…!

Joelhos e quadril se esticaram, impulsionando-o em direção ao outro lado do corredor. Em uma explosão de força, seu pé direito se conectou à outra parede.

Foi ali que ficou clara a intenção de seu gesto, no segundo em que prontamente retornou, carregado com a energia cinética e o momento acumulado, se jogando de corpo inteiro contra a janela fechada.

— YEEEEAH…! 

Um baque único na forma de um chute voador, contra a estrutura presa por pregos. As portinholas não tiveram outra escolha senão cederem. 

Por muito pouco, o Savoia não encontrou queda livre do segundo andar, segurado por seu próprio reflexo de sobrevivência, que o fez agarrar por sua vida na estrutura apodrecida.

Seu coração congelou ao se deparar com a queda que vivenciaria em alma e carne, até ir de cara com o chão molhado, senão por pura sorte.

— SHIIIIIIIIEEEEEEEEEEKKKKK!

O fulgor luminoso prontamente eliminou parte das sombras, incluindo as grandes garras, enquanto as outras, mais próximas de uma forma sólida, buscaram por refúgio.

O mesmo foi válido para as densas sombras em seus braços. Com a incidência direta da luz acinzentada, viram-se obrigadas a retornarem para as profundezas ainda por demais escuras da estrutura.

O foco de Emily foi outra vez puxado para o mundo real; desta vez, para a sensação de curta queda livre até o chão.

— Haah… Haah… — Se arrastando pelas paredes, o exausto Ryan parecia a um passo de colapsar em si mesmo. — Emily… A gente… Tem que… Sair… Não… Acabou… Ainda…

Um passo a mais e caiu de joelhos, hiperventilando no chão. Uma única gota de sangue o acompanhou, mirando direto na madeira podre abaixo.

A entrada luminosa exibia o quão sujo estava o ar lá dentro, onde cada pequena partícula de poeira quase o tornava em si visível, ao se somar às suas várias semelhantes.

— Ryan?! — Emily se ajoelhou diante dele. — Vamos! Você não pode morrer ainda! Não antes de me tirar daqui e me contar toda a verdade, pelo menos!

Em um inferno de diferentes tipos de dor — de cabeça, nos cortes em suas costas e em cada músculo das pernas — a única coisa que o rapaz teve condição de fornecer foi a mostra de seus dentes frontais, em um gesto amargo.

— Eu acabo de… Me… Arruinar… Todo… E é assim… Que você… Me agradece…?

— Hehe! — Ela sorriu. — Eu já tive tempo o suficiente para ficar impressionada, e descobrir de repente que você é um acrobata é meio que a coisa mais normal que me aconteceu hoje. Já não estou mais tão sensível às loucuras.

— Entendi… — Se deixou largar por completo. — Só me dá… Uns dois… Minutinhos… De ar…

— Claro.

[...]

— E então, vai me explicar como você fez aquilo mais cedo? Tava escondendo os seus talentos de mim, é? Isso não é nada legal! — Fingindo raiva, afundou o dedo em sua bochecha esquerda. — Hmph! Por isso que eu detesto segredos!

Quando as circunstâncias forçaram um segredo revelado, não imaginou que seria daquele jeito.

— É aí que tá… Eu não sabia. E, se for para olhar bem tecnicamente… Eu não sei.

A destruição da janela podia até ter trazido luz para o andar de cima, mas nem mesmo de longe foi uma medida perfeita. A irradiação que entrava não bastava após alguns metros, e o movimento das sombras adiante era a prova.

— Mas, hein? — Levantou a sobrancelha em dúvida. — Mas como assim não sabe?! Ah, você e os seus mistérios…!

— É memória muscular… — Ele disse, simplista e direto. — Um tipo de memória de procedimento, associada com a maestria em uma atividade por meio de repetição.

Repetiu o pequeno trecho que lembrava do resumo no artigo científico enviado por Lira, orgulhoso por dentro dessa pequena conquista.

— Aaah! — Suas pupilas expandiram em entendimento e empolgação, para murchar depois. — Mas isso ainda não explica nada.

— Olha… Só é muito complicado transcrever a ideia em palavras… — tirou o celular com a película quebrada do bolso, ativando a lanterna. — Só pensa que é tipo você simular algo na sua própria cabeça e colocar uma quantidade desordenada de energia em tentar imitar isso.

Durante todo o processo de desviar das sombras, a mente de Ryan lembrava dos absurdos movimentos atléticos de Mark ao atacar ou desviar. 

A meta estabelecida foi forçar uma conexão neural entre cérebro e músculos para tornar algo próximo daquilo fisicamente possível para alguém como ele.

“Mas eu não tenho o treino que o Mark tem, e memória muscular se ganha justamente por repetição… E foi também por isso que o efeito não foi duradouro.”

Enquanto tentava resgatá-la, seu corpo respondia fluidamente a cada comando, com os respectivos músculos contraindo nos momentos certos e com a intensidade precisa.

Em seu estado atual, porém, o melhor que atingiria seria sua cara no chão sujo, se tentasse dar o menor salto.

E isso vinha antes mesmo de se mencionar o pior ônus de todos.

— Cada pedaço do meu corpo se sente absurdamente cansado agora…

Sentia-se à beira do colapso muscular absoluto, com dores terríveis vindas de cada ponto de sua carne.

— Nesse caso você pode se considerar com sorte, mio buon signore! — elevou a voz em otimismo. — A Rota da Serragem é uma descida agora. Deve dar para você descansar.

Exausto demais para responder qualquer coisa, acenou com um leve “Hmm.”

— Mas antes a gente tem que sair vivos daqui… Alguma grande ideia, super herói?

Vendo ser obrigado a falar, Ryan apontou para o alto, em direção ao teto.

— Se criarmos um pilar de luz, vai ser fácil sair. Eu ilumino em direção ao teto enquanto você fica com o chão. Coordenando os nossos passos, deve ser um caminho simples...

— Tá, mas e se eu quiser iluminar o teto?

A provocação não falhou em tirar outra gesticulação azeda de sua face, logo respondida com um aperto na bochecha.

— Hehe! Zombar de ti sempre dá as melhores reações…! — Emily brincava, afundando o dedo na carne macia do lado direito de seu rosto.

— Isso… Dói.

Ver o sorriso dela o trouxe conforto, e não se lembrava de qualquer ocasião em que sentiu tal manifestação tão específica de apreço por outra pessoa. 

Certamente, ele gostava muito de sua irmã Hannah, porém, embora similar, o elemento de disparidade entre isso e o que sentia ao lado de Emily era o que mais lhe saltava.

Seria o que eles chamavam de “amizade”?

— Vamos! O meu cabelo vai ficar arruinado no meio desse monte de poeira e mofo… Ugh… E vou precisar de um longo banho para tirar esse cheiro de madeira podre! Não quero ficar aqui mais nem um segundo, seja com ou sem luz!

Sua naturalidade diante de todas as circunstâncias o impressionava, e o modo como abraçava o mundo, mesmo após uma série tão bombástica de revelações e alguns vários episódios de quase morte, se traduziam em uma pergunta:

“Será que eu posso mesmo confiar nela?”

… … …

— Ei…! Vamos! Seja um cavaleiro e guie o caminho! — O chamou. — Não espera que eu, a fraca porém bela, dama sem poderes faça isso, né?!

— Ah — puxado para a superfície de sua cabeça, assentiu. — Certo…

O cansaço extremo em cada canto do corpo o fez andar devagar, consciente de que ainda haveria sombras por cada pequena brecha.

— Eu sinceramente te carregaria nas costas por causa desse seu estado, mas tá bem claro que não vai rolar, então ao invés disso, eu e minha grande fofura iremos te motivar a continuar andando a todo vapor!

Iluminando parte do caminho adiante, a estudante de olhos verdes se achegou a ele, capturando seu braço direito e prendendo-o próximo ao centro de seu peito. 

E sentindo-se permitida o suficiente para fazer de tudo, completou o pacote ao reclinar sua cabeça sorridente sobre o ombro dele.

— E por isso eu vou te permitir, dessa vez e apenas desta vez, usufruir de um pouquinho do que eu tenho a oferecer. Seu braço direito está agora entre os seios da garota mais bonita e desejada da cidade, então sinta-se energizado a seguir em frente!

— Emily…

— O que foi? Ah, não precisa se sentir envergonhado! Pode aproveitar à vontade… Eu deixo! Eu deixo!

— Emily… Isso dói — enfatizou a última frase. — Mas isso dói para caramba

Breves cinco segundos sem passos ou respostas se fizeram entre os dois, até que a atitude tão orgulhosa da garota encolhesse gradualmente, reduzida a risinhos desconcertados.

— Ah… — Sua voz saiu sem graça alguma. — Foi mal aí…



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