Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade

Capítulo 47: Mentiras

— Ghhh…! Haack…!

As luzes não funcionavam contra essa manifestação em específico e presenciar isso foi uma experiência aterrorizante. Com dois celulares ligados, não havia como o cômodo estar melhor iluminado.

E esse era justo o problema.

“As luzes…!”

Ryan, paralisado, assistia aos olhos suplicantes de sua companhia, clamando por ajuda. Os braços de Emily se espalhavam por todos os lados em gestos desesperados, unhas tentando o máximo para se livrar da escuridão a se envolver em torno de seu pescoço, tal qual os tentáculos de um polvo.

A figura a elevava no ar, surgida de sua própria sombra, esboçando o puro instinto assassino colocado ali por aquele que o trouxe ao mundo. 

A essa altura, já não havia mais dúvida acerca de ser o trabalho de mais uma pessoa super poderosa.

“O quarto tem muitas luzes…!”

Forçou seu próprio corpo ao movimento com qualquer pedaço de ímpeto restante. A potência de seu gesto foi intensa ao ponto de trazer à frente o brilho púrpura de seus olhos.

O princípio de que sombras se intensificavam com potência da luz a incidir sobre o objeto de origem era algo que qualquer criança de cinco anos deveria saber, mas ainda assim sentiu-se traído por seu cérebro ao demorar tanto para se lembrar de algo tão fundamental.

Explodiu em um salto, e ao invés de diretamente salvar Emily, pegou do chão o celular cuja lanterna incidia diretamente para cima, atirando-o com toda a força sem nem mesmo pensar para o lado de fora do quarto, tapando aceleradamente a luz do seu próprio com o dedo indicador.

— Agora você não está mais restrito à sombra dela…!

Retirou o dedo, expondo a sombra de Emily à luz, o que mais uma vez provocou a reação adversa de dor. A massa amorfa a soltou, deixando-a livremente colidir com o chão.

SHIIIIIEEEK…!

— Eu vou conseguir te destruir…! 

Continuou mirando a luz no foco da sombra, o espaço do chão de onde vinha, descobrindo ser uma estratégia muito mais efetiva. 

“Essa coisa… Ela não surge das sombras ou se compõe delas… É outra coisa…!”

A monstruosidade aos poucos se desfazia, perdendo pedaços de si mesma conforme o Savoia apontava violentamente o flash em sua região de origem. Sem qualquer lugar para ir, foi incapaz de saltar para algum outro ponto mais escuro, seu corpo ausente de conexão.

— É, eu descobri qual é o seu segredo… — Murmurou em voz baixa. — O seu criador sabe que você não pode viver sem sombra… Você contamina as sombras das coisas.

Não havia modo possível para a criatura ter surgido atrás de Emily. Naquele momento, a Attwood não estava sendo seguida, o que suportava uma hipótese singular.

— Você se infiltra nas sombras e pode até se esconder nelas por tempos indefinidos. Você é um com a escuridão.

— SHIIIIIIIIIIEEEEEEEEKKKKK….!

A entidade se debateu por mais longos cinco segundos, sua “carne” derretendo e evaporando como fumaça escura no ar, retornando ao nada de onde veio. 

Enfim, uma fraqueza foi encontrada, assim como um modo viável de execução.

Embora por outro lado, saber a verdade trazia uma grande má notícia, e não apenas por um motivo.

— Emily…! — Preocupado, o rapaz foi até ela. — Emily, aquilo te machucou muito?!

A luz seria suficiente para ao menos espantar o restante das sombras que tentassem se materializar, então obviamente a deixou ligada ao se ajoelhar para checar o seu estado.

— Emily, tá tudo bem agora. O fantasma na casa não vai mais nos atacar. Agora, deixa eu dar uma olhada no seu pesco…

A mão do rapaz foi recepcionada com um súbito bofetão por parte dela, que, sem deixar a luz, se afastou, em aparente raiva.

— Não se aproxima de mim, seu mentiroso…

— O quê? Emily, eu…

— “Eu menti para você esse tempo todo e fiz alguma coisa com as suas lembranças”, é isso que você vai me dizer? Claro que não… Você ia continuar mentindo!”

“O QUÊ?! MAS COMO?!”

Os olhos do Savoia saltaram como nunca antes diante da revelação ocorrida pela primeira vez em sua vida. Nunca antes alguém readquiriu consciência de suas memórias perdidas.

— Emily, o que você quer dizer com isso?! O que eu poderia ter feito com as lembranças? Eu… Eu não tenho esse poder…! Sem falar que a gente tem que…

— Sair daqui, porque alguém pode estar vindo?! É, eu sei…! A minha cabeça tá uma total bagunça agora… Por sua causa!

— Emily, eu…!

Em sua maioria, Ryan não conseguia acreditar no que estava escutando. O que teria a feito subitamente recobrar todas as lembranças? Isso não tinha como acontecer; não era para ter acontecido.

“Eu… Eu prendi essas lembranças… Eu… Fiz tudo o que podia…!”

— Você tem um segredo… É óbvio. Como eu não percebi isso antes? Mais alguém interessado em saber sobre uma maldita casa velha? Um cara sem medo de ir aqui para cima, e que até trouxe uma faca? Você sempre foi meio suspeito para mim, se eu tiver que falar a verdade… Principalmente com aquela história de prima.

— Emily, eu…

— Eu não acho que terminei ainda. — O interrompeu. — Como eu dizia, você parecia interessante, por isso eu me aproximei… Mas saber que você tem basicamente superpoderes…

As sombras do lado de fora ainda se moviam, incitadas pelo movimento humano no interior do quarto.

— Se qualquer coisa, eu não me sinto brava, sabia? Pelo menos não com essa situação, já que é algo meio inevitável e acabaria acontecendo de qualquer forma se eu viesse aqui sozinha ou com as minhas amigas... O que me faz sentir tão mal é com você, Ryan.

O rosto do Savoia se moldou de forma que nunca ocorreu antes, em um misto estranho de ansiedade, medo e questionamento.

— Essa reação sua — continuou. — Meio que dá para saber que você tá se perguntando “mas o que diabos essa menina tá falando?”. Eu sei… Consigo imaginar.

Emily não tinha medo dele de qualquer forma, e isso era o mais enigmático para o rapaz recém-chegado. Como alguém não temeria alguém com poderes?

— É o fato de você não confiar em mim o suficiente para guardar o seu segredo. É isso que me deixa tão brava com você, e decepcionada também, principalmente.

— Mas, isso…

Ryan não pode impedir-se de torcer a cara — e com razão — para a proclamação.

— Mas isso não faz sentido… Por que carambas eu deveria confiar plenamente em uma pessoa que eu acabei de conhecer para revelar o meu maior segredo?! Isso é infantil demais de se pensar!

Ele estava certo e ela não seria capaz de negar isso.

— Se eu tô aqui, parte disso é para te proteger, porque você ou qualquer uma das suas amigas acabaria morta se viessem sozinhas, e você ainda se atreve a me culpar por tentar esconder algo tão pessoal e que pode me colocar em encrenca se por algum motivo vazar? Eu não posso me dar ao luxo de sair por aí contando para qualquer um…!

Seu humor exaltado ecoava pela casa inteira, frustração descontrolada a correr por cada canto.

— Então me pedir para só confiar em você, quando amanhã mesmo eu posso acabar com a CIA na porta da minha casa?! Vê se enxerga a realidade! Não era para você saber disso! Não era para ter recuperado as memórias que eu tranquei…!

O tom de raiva imbuído naquelas palavras viajou até os ouvidos dela e trouxe para fora uma reação no mínimo estranha: um sorriso leve.

— Parece que os filmes de super-heróis tavam certos… No fim, vocês não passam de um bando de mimadinhos.

— O que disse?!

— O massacre na nossa escola — trouxe o tópico imediatamente. — O Perfurador de Elderlog não era só mais um cara normal, né? Ele era um de vocês.

A reação de espanto foi o que entregou tudo.

— Ah… Entendi. Então a gente tá sem aula por causa de um qualquer que tem um talento especial de encher as pessoas com objetos perfurantes, hein? Parece até um arco ruim de algum livro péssimo.

A garota se levantou, focada nas sombras a pacientemente esperarem por algum deslize.

— Tá vendo? Eu teria acreditado em você se só tivesse me contado de cara ao invés de ficar escondendo as coisas. Esse é o tipo de coisa que vai acabar vindo à tona eventualmente, ou melhor, meio que já veio!

— O que… Quer dizer com isso…?

— Não é muita gente, mas tem um pessoal que começou a formular umas teorias da conspiração sobre a maneira como o mundo tá agora… Sabe, a questão dos atentados terroristas, destruição de prédios, chacinas e etc… Tem gente que acredita em uma coisas bem zoadas, entre elas que as pessoas a fazerem isso tem superpoderes. Por isso o conceito não me impacta tanto quanto deveria.

Pegou o celular do chão, mirando a lanterna para baixo.

— Ver que isso é verdade e aprender do pior jeito possível é… Meio ruim. Quando aquela coisa agarrou o meu pescoço, seja lá o que você tenha feito foi imediatamente revertido.

“O trauma”, chegou a uma conclusão. “Então foi o mecanismo traumático que fez ela recuperar todas as lembranças?!”

— E sério… Uma história sobre fantasmas? Sério que isso parece mais fácil para você acreditar? Mas que cara sem um senso apurado de criatividade que você é, hein!

Ela soltou ar em um suspiro longo.

— O que mais me decepciona é ver a pouca fé que você teve em mim… Sabe, eu teria acreditado se você tivesse só me contado!

A inocência naquele argumento o tirava do sério. Estaria essa garota que lia livros demais sugerindo verdadeiramente que a resposta de tudo sempre foi a mera e frágil fé em sua palavra?

— Eu não tinha como saber disso…!

— Você não tentou, seu babaca…!

O eco do seu soco contra o velho roupeiro mostrou para o ambiente inteiro a força capaz de levar a destruição da porta que acertou. A parte de madeira caiu, mostrando as ainda existentes peças de roupas femininas.

— Eu odeio isso! Eu detesto esse tipo de atitude…! Tenho desgosto por quem pensa que pode me prever…!

— Emily, você não tá sendo racional aqui! — tentou debater. — A gente pode resolver isso lá fora…!

— Lá fora?! Onde você vai apagar as minhas memórias e eu não vou lembrar de nada depois?! Não! E eu sei que você pode ficar bem tranquilo com isso…!

— Emily, você não tá entendendo…!

— Eu disse para não tocar em mim…! — se afastou. — Não me importa, Ryan! É a minha vida! São as pessoas que eu amo! É a minha Elderlog!

O teor emotivo da discussão a tornava mais inavegável a cada frase que escapava de sua boca — Emily não queria pensar — e isso prometia tornar tudo mais difícil.

— Esse tempo eu fui nada além de honesta…

— Emily…

— CALA A BOCA! — exclamou, chorosa. — Você nunca confiou em mim!

A situação tomava um rumo perigoso demais.

— Emily, fica parada…!

— Para quê?! Para você fazer o que quer comigo?! Para você…

— Não é isso, sua estúpida…! — elevou o tom. — Atrás de você…!

Correu em disparada e agarrou-a pelos ombros, com apenas o tempo suficiente para girar em torno do próprio eixo e usar o momentum para empurrá-la para longe.

Seus sentimentos a consumiram ao ponto de sequer perceber o quanto se distanciava da luz.

— AAAARGH…! — Ryan caiu para trás, em face do enorme ferimento em suas costas.

Sua mente, quase desmaiada pela dor sangrenta das quatro grandes marcas de garras, tomaram em plenitude o cenho afogado em desespero de Emily…

— Emily… A… Luz…!

… Ao passo que mais três grandes braços de pura treva desceram do alto.

Ele tinha de fazer alguma coisa — obedecer a sensação a queimar no fundo do peito —, se mover, seja lá de qual modo.

— … Emily…!

Longe. Muito longe. Tudo sempre foi tão distante para ele. Sempre a vida estava lá, pronta para lembrá-lo de que não podia fazer nada graças à pura falta de capacidade.

— AAAGH…! RYAN…! NÃO…! — A escuridão a envolveu, ao pescoço, braços e pernas, puxando-a consigo.

“Isso dói… Isso dói para caralho…”

Sua própria carne o dizia "isso é o máximo que vai atingir", se remoendo em dor, sentindo seu sangue quente a molhar as roupas.

— SOCORRO…!

E a voz dela ficava mais e mais longe, exponencialmente inatingível.

“Se ao menos eu fosse minimamente capaz…”

Todas as suas tentativas em algo foram nada além de fiascos. Ele estava cansado de sempre ser salvo por Mark ou Lira. Ryan não queria continuar se sentindo um peso.

“Mas o que eu posso fazer…? Eu não… Presto para nada…”

Não sabia brigar, se impor ou sequer manter a sua palavra. Naquele tempo todo de cinco anos, não houve uma única promessa plenamente mantida.

Jamais deixaria de ser horrível lembrar tais dias.

“Ele me disse que o treino ia começar semana que vem…”

Os gritos de seu corpo o corroíam por dentro, ao passo que, fracamente, agarrava o smartphone com uma única, grande rachadura na película de vidro.

— Eu tenho que… Ir atrás dela…

Miserável, andava devagar pelo grande corredor, sem um destino definido.

— Eu… Tenho que encontrá-la…

Contudo, faria mesmo aquilo algum sentido? Tentava negar, mas se perguntava constantemente.

— Eu…

As farpas da velha madeira penetraram sua mão destra, tais quais os pensamentos de desistir de tudo.

— Eu…

Tanto esforço… A primeira vez de alguém que nunca lutou por nada. E do que adiantaria? Depois de tudo aquilo, já não se convencia que sairia dali.

— Eu…

Talvez fosse melhor assim; o mundo não precisava de gente como ele, fraco e incapaz. Os verdadeiros heróis já existiam.

— Eu… Não sei o que fazer agora…

Uma das garras envolveu seus longos dedos em seu pé, fazendo-o cair. Sem cerimônia, o corpo cansado e dolorido cedeu, de queixo ao chão.

Não demorou para ao menos uma dúzia de mãos escuras se materializarem em seu entorno. A luz do celular, caído de lanterna para baixo, já não o protegia de mais nada.

Ele as sentia, escolhendo zonas de seu corpo e se agarrando tão firmemente a elas, prendendo-o com toques gelados como a neve de inverno.

— Então… É assim que acaba para mim…?

Mas esse lado obstinado não queria que acabasse daquele jeito. Ele queria…

“… Que ela pudesse escapar daqui com vida.”

Um sentimento nada familiar, aceso como uma vela a queimar a ponta de seu coração. Desconforto inalterado, suplicando para ver-se no mundo.

Mova-se.

“Eu sou um inútil que quer tanto fingir para si mesmo que é grande…”

— Mova-se.

“Não sei nem dar um soco na cara de alguém sem ter levado um na minha antes…”

— Mova-se.

“Eu não consegui nem tomar coragem para saber se ela tava bem depois do que eu fiz…”

— Mova-se.

“Eu não consegui ser uma pessoa meio decente para ela naquele dia…”

— Mova-se.

“Eu não consegui protegê-los dele…”

— Mova-se.

“Eu não consegui… Não… Eu não quis.”

— Mova-se.

… … …

"Mova-se, mova-se", ou melhor, "tum-tum, tum-tum"; tal era o ritmo de dentro, do sentimento que não podia se importar menos.

Incapacidade? Falta de força? Bobagem. Isso queria feito, e com urgência.

Antes de ser arrastado para as trevas, os olhos do Savoia, por uma última vez, se prenderam na tela do celular.

“Hein…? Como o… Navegador abriu…?”

Podia reconhecer aquele misto de azul e branco, que o lembrava de algo importante.

“Ah, o artigo que a Lira mandou… Era sobre… Memória muscular… Um tipo de memória processual ou… Sei lá… Não importa mais.”

De todos os vários, foi o único que se deu o trabalho de ler um pouco além do título.

“Ei… Espera…”

O torpor subitamente o deixou, e se lembrou do conceito por inteiro.

— Memória muscular…! Um tipo de memória processual consolidada e mantida nas sinapses cerebrais, para a execução de uma dada atividade ou gesto...!



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