Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 80: Intenção

— Hannah…! — aterrorizada, Ann-Marie cobriu o rosto. — Não…!

O fluxo de sangue a jorrar da amputação no braço direito da enfermeira não teria fim até sua morte. O corte foi limpo e preciso, seccionando na divisão entre os ossos do braço e do carpo.

— Eh…? Para quem falou tanto em me aplicar tratamento, me parece que quem vai precisar disso, a partir de agora, não sou eu!

Ele sorriu, ameaçador, lambendo a lâmina de um dos canivetes. Satisfeito, o pálido monstro em forma humana apreciou sua arte, em deleite pela inevitável morte que a esperava.

— Você lutou até agora; foi breve, mas interessante… Porém, eu me pergunto, o que você fará agora, Hannah Savoia?

Desapareceu no ar sem deixar rastros e os segundos, sem sua presença, se esticavam em estruturas longas e cada vez mais subjetivas de tempo.

— Hannah…! Hannah! Você… a gente tem que fugir…!

A jovem de marias-chiquinhas e olhos azuis tentou alertá-la, mas antes que pudesse dar seu segundo passo, foi impedida pela voz de comando da persistente mulher.

— Nem mais um passo…!

A garota teve os pés congelados, diante da brutalidade do comando. Hannah soou descaracterizada, distante demais da imagem carinhosa e acolhedora que assumiu minutos antes.

— Se quiser tanto fugir, faça isso para o outro lado…! Porque, aqui, as coisas vão ficar feias…

Nesse instante, ela soou furiosa.

— Ora, ora…! Falou e disse…!

O golpe de lâminas cruzadas desceu do teto, a centímetros de dilacerar seu rosto. Mostrando os dentes, a Savoia desviou ao deixar-se cair de costas no próprio chão.

Mesmo sem sua destra, a afiação combatente da moça não falhava em surpreendê-la e, tão aguda quanto as armas que a tentavam matar, usou da queda como propulsão para um ataque.

— Você realmente quer ganhar um leito vitalício na ala psiquiátrica, não quer…?

Utilizando-se do mesmo tom frio e ameaçador, elevou a perna esquerda em um chute potente. O sapato conectou com o estômago dele, coberto pelo suéter, completando o gesto, em parte.

— Huh… Eu tenho que admitir que esse doeu um pouquinho… — surgiu, poucos metros à frente. — Isso não se configuraria como abuso hospitalar? Um paciente não deveria ser agredido dessa forma!

O tempo de silêncio trouxe enorme agonia para a observadora de tudo. Vários metros atrás de sua protetora, a adolescente manipuladora de insetos pensava e maquinava mil planos que a pudessem ajudar, sem qualquer chance de sucesso.

“Ele conseguiu evitar a carga máxima do golpe ao sumir… O ataque da Hannah, para ele, foi só um contato leve…!”

Se esforçava em compreender o talento tão estranho e anormalmente poderoso daquele rapaz. Por mais que olhasse, não via saída ou modo de sobrepujar, tampouco capaz de teorizar quanto ao seu mecanismo.

“É a mesma coisa de quando eu topei com ele… Não parece que sequer exista um mecanismo…”

A única certeza que tinha era quanto ao fato de ele ser incapaz de interagir com os oponentes quando no estado invisível, embora a obviedade de tal aspecto não a tornasse uma descoberta válida.

“Se ao menos houvesse algum jeito… Se eu pudesse ajudar a Hannah…!”

Entrar na luta somente faria dela um peso, pois, pelos poucos segundos de confronto, ganhou ciência de que a Savoia se encontrava em outro nível no contexto “combate”.

— Sendo bastante honesto com você, eu não esperava de fato ser acertado tantas vezes… Uma vez é muito, mas duas? Ah, essa é a marca de um grande oponente…!

E quando foi sua vez, não o acertou sequer uma vez, mesmo tendo conquistado uma faixa preta em karatê. O que fazia de Hannah alguém tão especial, a ponto de fazer isso duas vezes?

— Todavia, sinto em anunciar que precisarei me ausentar em não muito tempo… Você sabe, os negócios estão esperando por mim! Sou um sujeito ocupado… Não posso deixar minhas responsabilidades de lado…!

Imediatamente compreendeu o que ele disse, quando o único olho à mostra se focou em sua imagem.

— Antes disso, preciso eliminar os traços do lixo que fui forçado a deixar para trás…!

Ann congelou ao tomar a forma frenética do abusador, visando utilizar de todos os recursos para arrancar um talho volumoso de seu pescoço. 

Maníaco, ajustou as lâminas e acumulou impulso inimaginável nos membros inferiores, mirando um único golpe fatal.

— Depois que meus brinquedos não me servem mais…

Desapareceu e tão logo que o fez, ressurgiu atrás dela, repleto de intenção assassina e veloz como a queda de um relâmpago.

— … Eu simplesmente os quebro…!

Arregalou os olhos em reflexo, paralisada. Tentou, mas nenhum dos músculos reagiu ao comando desesperado por movimento. Tornada em uma estátua, só podia esperar pelo golpe final.

Estalou os dedos e, enfim, acabou.

— Gkk…!

A centímetros de atingi-la, a dor nauseante em cada canto do corpo o travou, impossibilitando o ataque.

— Gkkk…! Gah…! — cambaleou para trás, sem controle do próprio corpo. — Isso… Mas que… jogada… de mestre…!

Mesmo sob os sintomas, sorria sem parar, atravessando a dor em queimação ácida, somada à falta de propriocepção a descoordenar as articulações. Ele caiu em uma armadilha e tinha de reconhecer isso.

— Haah… Hahaha…! — riu, em meio a tremores e espasmos. — Mas… quem diria…!

Não as alcançaria por mais que quisesse. No estado atual, nem mesmo os dedos respondiam corretamente, lhe traindo nas tentativas de flexionar e estender.

— Ann, vem para cá, agora.

Não pediu, mas ordenou, e ainda diante da influência de seu medo, trancou os dentes e deu passos longos e mecânicos em sua direção, não mais seguida ou ameaçada por seu algoz.

— Fique perto de mim, e em hipótese alguma, se separe.

Essa loucura estava longe de acabar e, além do tom por ela empregado, outra mudança se fez clara como o fogo: em questão de tão poucos segundos, havia se recuperado quase plenamente.

— Uhhgh…! Eu tenho de admitir que isso foi inteligente… Não… Não foi isso, na realidade…

Estalou o pescoço para ambos os lados, removendo tensões da musculatura. Traços ínfimos de espasmo reflexo perduraram em seus músculos, sumindo com o decorrer dos segundos a mais.

— … Olhando para trás agora, eu que fui bem estúpido… — finalizou. — Se você não fosse quem é, certamente daria um perfeito lacaio, Hannah Savoia… Uma ideal ajudante nesse nosso pequeno plano… Ao contrário disso que você tem aí…!

A encarada afiada para a principal vítima a levou a se recolher atrás da mais velha, que a protegeu de braços abertos.

— Lisonjeada pelos elogios…! — falseou um sorriso, em sarcasmo. — Você deveria realmente ter pensando mais, antes de colocar o sangue de alguém desconhecido dentro do seu corpo…! Esse é o motivo pelo qual os bancos de sangue contém tantas regulamentações, sabia?

Elevou o coto sangrento à altura do rosto, contemplando as infinitas linhas rubras a escaparem do antebraço decepado, culminando no chão. 

Um par de metros à esquerda, avistou sua mão decepada e fez um pedido inusitado.

— Ann, pode me fazer um favorzinho? Não é nada complicado! — Os lábios se contorceram novamente, de forma mais genuína. — Tá vendo a minha mão ali? Pode pegar ela, por favor? Só precisa trazer ela para mim!

Pela expressão da menina, ficou clara a plena incompreensão da mensagem passada.

— Uh… Eu… pegar a sua…

— Isso! — A interrompeu. — A minha mão…! Por favor, pegue a minha mão e me traga ela, sim? Não precisa se preocupar! Ela não vai andar com os dedos ou nada do tipo! Basta ir lá, pegar do chão e me trazer, certo?

As diferenças em entonação se tornaram assombrosas quando, mesmo se tratando de um pedaço do próprio corpo, revertia a uma fala tão calma, paciente e amigável, oposta à usada logo antes.

Sem dizer uma palavra, forçou o corpo em choque a trabalhar, pegando a mão de pele escura, dedos longos e finos, culminando em unhas bem-aparadas, pintadas de rosa-claro.

— Como eu dizia… Ah, obrigada, Ann! Você é maravilhosa…! — tomou a mão, a aproximando do local em que foi seccionada. — O meu sangue é uma das drogas mais perigosas desconhecidas pelo homem… ou pelo menos, por um homem que eu deteste…!

Para a surpresa da ajudante, o plano tão maluco funcionou, e quando a mais velha aproximou as extremidades decepadas, algo digno de um milagre se consolidou.

— Huh… Um [Tipo Biomante]… Já faz um tempo que eu não encontro um desses seja capaz de lutar adequadamente… — Ainda tonto, usou um tom tranquilo. — Gente do seu tipo costuma ser um tanto rara… e ainda mais raro é encontrar um que seja útil de verdade… Ah, agora eu entendo…

— Parece que temos um nerd e tanto…! — provocou, não mais sangrando. — Por que não entretém a patricinha aqui e explica como você sabe de tudo isso? Detalhe por detalhe…! E não precisa ser tímido!

Músculos, ligamentos, tendões, vasos e pele se uniram, como dois pedaços de massinha de modelar amassados juntos. A fusão das partes foi imediata, homogênea e ausente de falhas.

— Por mais que me doa admitir, você ganhou essa… Foi uma luta justa.

Os efeitos da primeira injeção — dada em seu pescoço — iniciaram as manifestações. Mesmo que desejasse continuar lutando, resquícios do anestésico o invadiram com sucesso.

“Letargia, fraqueza… Não é muito, mas atrapalhou o meu desempenho significativamente. Eu fiquei lento demais.”

Sua autopercepção o dizia terem se tratado de algumas meras gotas, longe do suficiente para nocautear, contudo, justo a quantidade certa para o permitir ser acertado duas vezes.

“Hannah Savoia… É mesmo tanto falam de você por aí…”

A sensação nas pontas dos dedos foi o fator discriminatório, pois somente a mão direita parecia estar ali.

— Ora? Já se levantando? Vai mesmo ir embora assim, depois de me deixar tão curiosa?! Matar pessoas? Tudo bem…! Mas, esconder uma fofoca?! Nossa… como você pode ser tão mau?!

Tinha a chance de acabar com isso literalmente nas mãos. Escondida na mão direita, havia preparado mais uma seringa.

— Como eu disse… tenho outros assuntos para lidar, então… 

Se aproveitando dos efeitos da injeção, mirou a seringa e a atirou de forma precisa.

— … parece que eu vou ter de pedir alta mais cedo, doutora…!

A agulha cortou o espaço vazio, se espatifando no chão e derramando o conteúdo de sangue vivo. Alertas, as duas esperaram por um minuto inteiro, sem qualquer reação.

— Ele fugiu — cautelosa, andou devagar e pegou a seringa do chão. — Ufa! Intacta…! … Ei, Ann…! Vem aqui um minutinho…!

A mais nova hesitou, presa nos traumas gerados por aquela figura, sem certeza de tê-las deixado em paz. Temerosa, abraçou a si mesma, buscando conforto no tecido grosso da jaqueta cinza.

— Vamos lá! Pode vir! Ele não vai aparecer mais e isso eu te prometo! — sinalizou o gesto de chamado. — Não precisa ter medo! Chega aqui pertinho…!

— Uh… — aterrorizada pelas lembranças, seguiu a voz dela e a alcançou. — O que… O que foi… Hannah…?

A Savoia se ergueu devagar, visando não assustá-la e com a seringa em mãos, fez um novo pedido.

— Fecha os seus olhos por um momentinho, tá certo?

— Fechar… os meus… olhos… Uh… eu…

— Vai, confia em mim! — mostrou os dentes repletos de brilho. — Fecha os olhos, só por um momentinho!

— … Tá certo… E agora…?

— Só fica parada. Tenta pensar em uma coisa que te anime ou conforte!

“... Como se isso fosse possível…!” reclamou mentalmente.

— Certo! Agora, fica tranquila! Isso vai ser, no máximo, uma picadinha!

Antes de poder esboçar reação, a finíssima agulha entrou fundo na jugular esquerda, despejando o conteúdo invasor e em menos de dois segundos, uma enorme dose da “droga mais perigosa desconhecida pelo homem” passou a correr, livremente, pelo sistema dela.

— Prontinho…!

— Ah…? Hah?! Hannah, você me injetou com…!

— O meu sangue! Isso mesmo! — gargalhou inocentemente. — E então? Como se sente?

— Eu vou morrer…! — esbravejou, ensandecida. — Esse tempo todo… você me enganou e…!

— Como se sente, Ann? — tornou a questionar, portando a mesma expressão carinhosa.

— Eu me sinto…! Eu… me sinto… Espera…

Algo não estava certo com seu corpo e isso não necessariamente queria dizer algo ruim. Ao parar para raciocinar, percebeu um conjunto de notáveis mudanças espalhadas por seu ser.

— Eu me sinto… melhor…

O cansaço e a tensão muscular sumiram e as leves dores de cabeça residuais, provenientes do ataque de Lira, evaporaram. Antes, sentia-se um tanto pesada e lenta, mas, agora, jorrava energia.

A sensação proporcionada vencia uma noite de sono ideal, cafeína, massagem ou qualquer outro método de restauração; no curso de sua vida como um todo, jamais esteve melhor.

— Como…? — maravilhada, questionou em voz baixa. — Como isso é possível…?

Hannah ficou mais que contente em poder explicar. Agilmente, escondeu a seringa nos bolsos do pijama cirúrgico, emanando o brilho de sempre.

— O meu sangue pode ser a droga mais perigosa não conhecida pelo homem, mas isso depende da perspectiva!

— Uh…

— Todo remédio é um veneno, Ann, e às vezes, até o contrário! E sabe o que separa os dois?

— A dose…?

— E também, a intenção; o objetivo por trás do uso! — acrescentou, apontando para cima. — Se objetivo for curar, vai curar, mas se for matar, vai matar…!

De forma tão críptica, a explicação alcançava algum sentido e silenciosamente anotou os detalhes no topo da consciência, certificando-se de que iria lembrar disso.

Se dependesse dela, o caminho seguiria silencioso. Ann não sabia as perguntas certas a fazer ou se deveria fazê-las. Hannah soava experiente no ramo — se puder assim chamar —, e isso a assustava.

— Aquele cara… Ele não veio na intenção de nos vencer…

A revelação a chocou a ponto de parar justo no limite entre o final do corredor e o pátio principal. Tomado pela fumaça, o lugar tinha visibilidade quase nula e um odor horrível, distante por demais de somente fumaça.

A portadora dos olhos roxos não quis que prosseguisse. Estática, a Savoia se posicionou na divisão de caminhos, encarando as formas indistintas em meio à cortina esbranquiçada.

— Ele me passa a impressão de ter bem mais poder do que nos mostrou… Agora, eu acho que entendi a intenção dele.

Liberou o trajeto e, aos poucos, a realidade se clareou diante das lentes azuladas de Ann-Marie.

— Hkkk…!

Enojada, cobriu a boca, engolindo o regurgitar ácido. O conteúdo do estômago desceu amargo, culminando em um mar revolto no seu interior.

— Ele não queria que interrompêssemos a festa, ou ao menos, não tão cedo.

O púrpura duplo focou fixamente na entrada mais distante para um novo corredor, tão coberto e nojento quanto qualquer outro.

“Ali.”

Sangue, descarregado pelas narinas, se uniu à nojeira de cadáveres e partes profanadas, um dia humanas, e a dor de cabeça, mais intensa que em qualquer outro momento, apontava estar próxima.



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