Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 74: Gentileza

— Uh-huh! Certinho, certinho…!

Seus olhos, ainda assustados, acompanhavam a estranha mulher a carregar esse corpo como se não fosse nada, e em uma manifestação de bom-humor que não podia ser normal.

— Ao menos, ela é bem leve…! Isso já facilita muito as coisas!

Tinha de usar de cada mísero fragmento da capacidade mental para interpretar o contexto, mas ter de assistir essa enfermeira lidar com isso de forma tão banal era rídiculo.

No topo disso, o conceito de tudo se tornava ainda mais bizarro ao tomar a calmaria em seu coração a cada vez que a via; antes assombrada e ansiosa, pôde respirar novamente.

Seja quem for, preenchia o ambiente de graça e luz quente e acolhedora, tal qual o mais caloroso abraço.

— E então? — A mulher virou-se para ela. — Vamos conversar um pouquinho sobre o que tá acontecendo aqui?

Ela sorriu, e a voz tão doce a lhe escapar dos lábios soou distante da ameaça ou do julgamento. Seu questionamento soou genuíno e o jeito como correspondia ativamente à encarada a lembrou de alguém.

“Mãe…”

Embora, em simultâneo, o cenário fizesse o trabalho de estabelecer o contraste real entre o que se via por fora e os fatos à mesa.

Ou melhor, sobre a mesa. Ali, Lira Suzuki repousava, desacordada, sobre um par delas, unidas pelas mãos macias da tal enfermeira. Em estado de sono profundo, enganaria qualquer desavisado.

“Eu… Eu quase… morri…”

Pensar nisso a fez tocar seu pescoço, repleto de dores e marcas de unhas afiadas e da pressão desumana aplicada por dedos tão finos.

Traços de rubro molharam sua palma e o odor férrico a urgiu a golfar — sensação essa que conteve com muita dificuldade —, lhe travando os dentes.

— Ei, você quer me deixar dar uma olhada? Eu sou uma enfermeira de verdade, sabia? Não é só a roupa!

Foi como se a pura gentileza de seu caráter houvesse expurgado qualquer desconforto.

— Não…! Eu… Eu tô bem…

As palavras lhe escaparam dificilmente, engasgadas por não serem de fato o que quis afirmar. Ela queria ajuda, mas, talvez…

— Eu insisto! Olha, vai ficar tudo bem, tá bom? Eu juro que não tô com mais nenhuma agulha…!

“Essa mulher…”

Desejou sorrir, mesmo em imensa amargura.

— Por favor?

Mostrou os dentes, embora, bem mais para si mesma e por mais que não compreendesse a misteriosa enfermeira, notava algo nela, que ameaçava todas as suas defesas tão bem construídas.

Partiu os lábios, e a mente ansiou por derramar cada segredo e dor. Não sabia explicar a origem de tal desejo — sabia que queria e sentia poder —, mas, para seu próprio bem, decidiu se conter mais um pouco.

— Tudo… Tudo bem…

— Eba! — comemorou. — Certo, agora levanta um pouquinho o seu pescoço!

A moça cortou distância até estar perigosamente próxima e isso a fez corar.

“Eu… Eu não deveria ceder assim para qualquer estranho…”

Porém, no fundo, estava ciente da verdade de que ela não podia ser uma pessoa normal e isso sequer precisava se estender tanto, bastando olhar para a totalidade que a compunha.

— Hmm… — Pensativa, contorceu o rosto, em careta. — Bem, ao menos não foi nada muito sério… Mas, se ela tivesse cravado as unhas do jeito certo, teria certamente seccionado a sua aorta esquerda… E isso seria uma morte definitiva.

Mesmo na frieza de tamanha revelação, houve imensa calmaria, mista do senso de segurança vindo de sua pessoa, da atmosfera positiva, os sorrisos quentes e o lindo brilho dos olhos roxos.

— … E isso significa que está tudo bem com você!

Isso a fez sentir-se segura e acolhida.

Hic… Hic…!

— Espera…! Por que você tá chorando?! Eu disse que vai ficar tudo bem…! Eu…!

— Me desculpa…! Me desculpa…!

Linhas pesadas escorreram da simples menina escondida no canto mais escuro. Em vergonha, cobria seus olhos, tentando esconder as dores, embora reconhecesse já não haver mais ponto nisso.

— Eu não queria fazer…! Eu não queria fazer isso…!

Buscou refúgio na parede fria, pressionando sua forma que, por tanto tempo, suportou calada, se percebendo menor, mais fraca, como uma formiga a ponto de ser esmagada.

— Eu não quis…! Eu… Eu recusei…! Eu disse “não”...! Mas ele me obrigou…! Ele me fez fazer isso…!

Porém, nunca foi estúpida, e sabia que dizer essas coisas não significava merecer perdão, pois, mesmo diante de tamanha pressão, a decisão final partiu dessas mãos.

— Eu não queria ter matado eles…!

Ao invés de lágrimas, via o sangue dos vários que assassinou, lhe manchando as mãos, junto de uma pilha de insetos mortos, ali para julgá-la por terem suas vidas tão egoisticamente removidas, em prol de algo tão nojento.

— Eu não quis… Eu não… quis… Me desculpem… Me desculpem…

Mas as vozes não paravam. Gritando em seu ouvido, querendo vingança, prometendo vir para buscá-la no dia em que, enfim, fosse sua vez de cair como uma batata apodrecida.

Prometeram vir para coletá-la e fazê-la ter o corpo tão preenchido de coisinhas rastejantes quanto eles mesmos passaram, em suas mãos. A veriam no fundo de um caixão, escuro e gelado.

— Tá tudo bem, eu te prometo. Tá tudo bem, agora.

O coro cessou, suprimido pela presença maior e melhor, da dona dessa voz que afastou a podridão e lhe abriu as janelas, trazendo iluminação.

— Foi difícil, né? Eu sei… Eu sei.

O frio, as trevas, o medo e a dor… Todos deram o seu lugar ao imenso calor e ao brilho que a abraçou tão descabidamente.

Raios de sol, na forma de seus longos dedos, irradiavam sobre seus lisos fios castanhos e o cheiro desse perfume trouxe as flores do campo verde e tão bonito.

— Foi difícil para você carregar toda essa dor… Foi difícil aguentar tudo isso calada, não foi?

O abraço a fazia tremer em conflito. Por um lado, queimava em raiva, se perguntando o que diabos ela sabia de sua vida, para poder se dar ao luxo de falar de um jeito tão próprio e encher a boca de palavras bonitas, embora vazias. Esse lado queria empurrá-la e correr para longe de tudo.

Mas o outro… Esse apenas queria se derreter e chorar, e chorar, e chorar… Até enfim se render e aceitar o acolhimento, para então falar tudo o que sabe e escondeu, baixando, enfim, as grossas muralhas erguidas nas últimas semanas.

Ela não tinha a menor ideia de qual deveria escutar, e no meio de sua dúvida, veio o golpe final.

— Você foi muito forte, sabia? Aguentando isso por tanto tempo, sozinha… Você quis proteger eles, não foi isso? Isso é muito nobre.

Se ainda existisse dúvida, a resposta veio na forma de um turbilhão impossível de se antecipar.

— ELE ME AMEAÇOU…! — gritou, entregue às lágrimas. — Ele… disse que ia… Hic… Matar toda a minha… Hic… família…

— Ei, tá tudo bem agora. Não precisa ter pressa em me contar.

Sorriu de leve, acariciando os cabelos presos em marias-chiquinhas da adolescente com o rosto em seu ombro.

— Ele… Ele me fez pegar… Eu… Eu disse não… mas ele… ele me mostrou as fotos…

— Quais fotos? E o que ele te fez pegar? Não precisa me dizer, se não quiser…

— As fotos… dos meus pais…!

O abraço se intensificou em resposta ao influxo ainda maior de emoções pesadas, onde nem mesmo as roupas e toda a pele abafavam o barulho do choro.

— Ele disse… Ele disse que iria… matar eles… que iria matar os meus… pais…! — exclamou. — E eu… Eu não tive como… Eu não tive como duvidar…!

— Shhhhh… — tentou acalmá-la. — Continue quando quiser… Que fotos ele tirou dos seus pais, e o que ele te forçou a pegar?

Decidiu apostar em uma abordagem mais direcionada e com perguntas mais diretas, tendo sua confiança conquistada, embora de forma oportunista.

“Essa menina sofreu muito… Ela precisa de ajuda.”

Encostou a testa na cabeça da adolescente, pois, mesmo que somente para descobrir, desenvolveu preocupação genuína pela menina.

— Ele queria que eu… pegasse a carta… E eu não quis… E quando eu não quis… quando eu não quis…!

Pela primeira vez, deixou sua expressão se distorcer em algo negativo: desgosto.

— … Então… ele me mostrou fotos de dentro… de dentro da minha casa… Dele, com os meus pais… COM OS MEUS PAIS…!

Respirou fundo e fechou os olhos, se preparando para suportar o grito. De qualquer forma, se manteve sem dizer uma palavra, dando-lhe o momento, seu por direito.

— Eu não sabia como… Eu não sabia como ele fez aquilo… Como ele… ele… apareceu, do lado da minha mãe… com uma… Faca…

Não foi sua primeira vez ouvindo esse tipo de história e a Savoia estava longe de contente. Por dentro, conectou os pedaços do discurso com a evidência coletada na cidade.

“Agora é oficial… Tem alguém por trás disso, transformando pessoas inocentes em assassinos…”

— E o meu pai… ele apareceu do lado dele… quando eles estavam dormindo… no quarto deles… Não foi edição… Eu sei que não foi… Eu sei…!

“Eu ainda tenho as minhas curiosidades…”

— Ele me obrigou… Me obrigou…! Eu… Eu não queria… Eu…!

“Mas ela ainda está alterada demais para me contar do jeito certo.”

Hannah riu de si mesma, ciente de sua promessa de não carregar outra agulha, agora, a um passo de quebrá-la.

— Tá tudo bem, tá tudo bem, menina…

Levou a mão ao bolso, puxando uma pequena seringa.

— Eu sei que te fiz uma promessa, mas, isso vai ajudar… E eu te prometo, de verdade agora, que amanhã vai ser um dia melhor.

Com precisão cirúrgica, acertou sua carótida com a fina agulha.

— Entre um pouquinho de amitriptilina e um simpatolítico simples… Vai estar bem mais calma quando acordar.

Depressa, a consciência escapou de seu corpo, desfalecendo sobre os braços da carinhosa enfermeira, sem quaisquer forças.

— Foi uma dose pequena, então você deve acordar logo. Nada perto da dose cavalar que eu tive que usar naquela outra!  — Falou, sozinha.

Com cuidado, a repousou no chão da sala, lembrando que estaria de volta em cinco minutos. Animada, Hannah espanou as mãos e levou-as aos quadris, se dirigindo à sua primeira vítima.

— Eu acho melhor tirar ela daqui, antes que essa menina acorde e acabe entrando em pânico!

[...]

— Urgh…

Abriu os olhos e a sensação de ter sua mente operante outra vez não foi diferente de “bizarro”.

— Por quanto tempo eu… Não… O que aconteceu?

De repente, despertar e poder sentir tudo, até as pontas dos dedos…

— Ah, olá, você…! Parece que acordou! Bom dia!

Uma voz fez o papel de puxá-la totalmente para fora, iluminando o quarto ainda semi-escuro de sua psique em um flash.

“Huh…?”

Logo ao vê-la, a primeira impressão foi a de já ter visto esse rosto em algum lugar.

— Como foi o seu sono de cinco minutos?

Poucos metros à frente, uma mulher vestida de enfermeira, com um sorriso brilhante e uma aura tão acolhedora que tornaria a bondade um crime, acenou para ela, cheia de energia.

“Essa mulher… Eu… conheço ela… e… hoje… Hoje foi o ataque…”

Os insetos, as ordens do sujeito cujo nome sequer sabia, o ataque à Elderlog High… Aos poucos, suas lembranças deixavam de ser borrões e se combinavam em um construto coeso.

— Hkk!

Gemeu entre os dentes, quando recordou-se de Lira Suzuki e a quase morte por suas unhas.

— Ei, tá tudo bem agora. Tá se sentindo mais tranquila? Tanto tempo conversando e eu nem me apresentei ainda… Foi mal! Eu sou a Hannah… Hannah Savoia! — estendeu uma mão. — E você?

Lembrou-se da misteriosa enfermeira que a salvou e levou à demolição de suas muralhas. Ao remoer essas memórias, no entanto, caiu sobre ela um imenso alívio.

Não podia apontar de onde veio uma calma tão súbita, ou o momento em que deu novo significado às suas experiências, mas se tinha certeza de algo, era que podia confiar nela.

— Eu… sou Ann-Marie… Ann-Marie Young.

Hannah sorriu, sempre acolhedora, quase cegando com o brilho de seus dentes, mesmo que por puro acidente.

— É um prazer te conhecer oficialmente, Ann-Marie!

— Pode… Pode chamar só de Ann…

— Oh! Ah, certo, certo…! Um prazer, Ann!

Aceitou seu cumprimento, e com um leve solavanco, Hannah a ajudou a se levantar. Uma vez sobre seus próprios dois pés, notou a primeira mudança no ambiente geral.

— E a Lira…? O que…

— Ah, a outra garota? Não se preocupa! Ela tá bem longe daqui e vai ficar desacordada por um tempo bem mais longo.

— Desacordada? Então eu…

— É… Desculpa… Mas a única coisa que eu tenho para acalmar as pessoas são drogas de uso altamente restrito…

Ann levou a mão à boca, segurando o riso. Ela não tinha em si razão alguma para se irritar com Hannah, e pondo em uma perspectiva sincera, sentia-se agradecida.

— Eu acho que precisava voltar para dentro de mim mesma… E se foram precisas drogas altamente restritas para isso… Então, obrigada.

Fato seja dito, percebia-se muito mais calma e de consciência limpa após a injeção.

— Não há de quê…! — sorriu outra vez. — Mas então, Ann…

Bufou, fazendo caretas variadas para a sala de aula vazia, analisando desde a camada de insetos mortos no chão, até a última cadeira, no canto mais oculto.

— Tem um monte de trabalho para ser feito por aqui, eu tô vendo, e eu não recusaria uma boa mão amiga, sabia?

“Uh? Ela quer que eu…”

Ann-Marie captou o rumo da conversa e logo se prontificou para defender seus interesses.

— Uh… Hannah, eu…

— Então, você vai me dar uma mãozinha com algumas coisas! Vamos ser parceiras e tanto, Ann!

O sorriso da cacheada desarmou todas as suas defesas e desfez quaisquer oposição, a ponto de sequer lembrar se, em algum momento, cogitou negar a proposta.



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