Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 75: Erros

— Onde a gente tá indo, Ryan?!

O barulho dos passos acelerados saltava entre o vácuo de sangue e corpos, criando impactos molhados, de qualidade excruciante e corrosiva às qualidades mentais de qualquer um.

— Onde eu tô indo é para consertar isso…!

E isso se via manifestado no semblante dele, que, sem perder a rigidez, contraia os músculos da face, em inalterado desgosto.

— Ei, espera aí…! Vamos pensar nisso direito…! A gente não pode só ir na frente do que causou isso tudo! A gente vai morrer!

Os passos findaram no corredor que leva às escadarias do segundo piso. Por vários segundos, Ryan permaneceu estático, observante quanto ao nada, repleto de fuligem, à frente.

— Em primeiro lugar, eu não tô dizendo que você tem que ir. 

As palavras lhe escaparam de uma forma amarga, descaracterizada de tudo o que Steve ouviu nos últimos minutos; uma mudança sutil, quase imperceptível.

— E em segundo, quem é você para me dizer que fazer isso é uma decisão estúpida? Eu me recuso a ouvir isso de quem pensou que tocar fogo numa escola inteira, só para poder pagar de herói, seria uma boa ideia.

No topo da frieza já conhecida, existia finalidade. As palavras terminavam frias, em um baque de tom, quando, normalmente, ele costumava esticar um pouco a pronúncia.

Falava como um robô, sem emoção ou flutuações de tom, numa faixa única e intimidadora.

— Uh… bem… — temeroso, forçou-se a olhá-lo de frente. — Olha, eu sei que eu errei feio, mas…!

Você não foi o único…! 

A interrupção deu entrada ao novo silêncio, que se esticou infinitamente, no pouco tempo que durou.

— Tá vendo isso?! Tá vendo essa desgraça, Steve?! Isso aqui foi tudo culpa minha…!

O corredor em questão não tinha tantos corpos quanto a entrada, mas ainda assim, a morte marcava sua presença. No centro de uma intersecção, jazia o restante de um ser humano, ausente da cabeça.

Ele reconheceu, vagamente, a forma de seu corpo pequeno, misto do estranho brilho em formato de fios, na enorme poça de sangue e massa encefálica.

“Qual era o nome dela mesmo…?”

Ajoelhou, tomou uma pequena mecha besuntada de rubro e, com os próprios dedos,  retirou o excesso, exibindo traços da cor verdadeira: loiro.

“Eu não vou me lembrar de como você se chamava… Ou, não sei, em algum momento eu vou. Eu conheço o seu nome, só não consigo me lembrar agora.”

Além de vê-la nos corredores e de se encontrarem de forma um tanto drástica na biblioteca, ela também foi uma figura importante, em outro lugar.

“Emily realmente gostava de você. Você fazia os dias dela mais animados e alegres. As memórias dela me contaram sobre como o clube dela não seria o mesmo sem você… E agora, o que restou de você?”

Soltou o amontoado de cabelo; ambos literal e figurativamente, o sangue dela manchava suas mãos. Ele lembrou.

— Eu sinto muito, Ava…

A deixou de lado, tornando o corpo inteiro em um gesto único, para fitar o usuário de chamas com intensidade, mascarada nos olhos estóicos.

— Steve, eu acho que você pode se considerar um cara bem sortudo.

O Savoia tomou um passo à frente, pisando nos restos do cérebro da garota, arriscando escorregar. Lentamente, ele passou pelos rios vermelhos no chão e o estalo em seu sapato revelou se tratar de um fragmento de osso.

— Olha só para você… Teve alguém que te tirou dessa e que abriu os teus olhos com um bom tapa na cara, antes que fosse tarde demais… Por isso, eu digo que você tem que se considerar sortudo, porque nada precisou acontecer para fazer você entender qual o seu papel.

— Do que você…? — tentou introjetar e, novamente, foi interrompido.

— Guerra, um país inteiro se isolando do resto do mundo, desastres, gente morrendo dos modos mais bizarros, em cada buraco e canto… Eu sempre via isso na televisão, mas nunca me importei, afinal, nunca foi a meu respeito. Eu nunca me incomodei com o meu mundo, já que eu nem tinha razão para isso.

Nesse ponto, foi claro para o rapaz de cabelos em chamas que Ryan falava consigo mesmo e depressa notou que interrompê-lo não seria uma boa ideia.

“Mesmo assim, do que esse cara tá falando…?”

Não pôde mentir sobre estar curioso, todavia. Então, travou os lábios e se pôs a escutar, conforme ele prosseguisse.

— Eu nasci com doze anos e outros me disseram quem eu era, pessoas que diziam me conhecer, embora nenhuma delas me trouxesse qualquer memória. Eu nem mesmo sabia o meu nome, quando acordei naquela cama de hospital… Isso foi, mais ou menos, no mesmo tempo que eu descobri que era “abençoado”, embora, hoje em dia, esteja mais com cara de maldição…

Lembranças de notícias quanto à guerra na Eurásia vieram à mente depois de meses. Há pouco tempo, o dito conflito acabou, deixando marcas que o mundo ainda tentava compreender.

— E eu fiz tudo o que eu queria, usando desse poder, sem me preocupar com o meu amanhã… Só quando eu pisei aqui, descobri que as coisas nunca foram tão simples e que, se eu vivi por cinco anos sem me encontrar com problemas, foi porque a sorte me arrastou até esse ponto.

Pensou em cada cidade onde houveram assaltos milionários a bancos, construções destruídas do topo à base e pessoas morrendo aos montes, todos os casos ausentes de qualquer evidência incriminatória.

Nunca houve um culpado achado em qualquer um desses crimes e se julgava tolo por nunca associar que isso representava, em exatidão, a mesma coisa que ele fez acontecer.

Desde de seu primeiro dia acordado, desenvolveu o pensamento que o guiou até ali: o de que, quem controla as lembranças sobre um fato, controla a própria realidade a respeito de tal. Se não houverem memórias, não houve fato.

“E agora, isso tá voltando para me morder…”

A sensação que passou a tomá-lo foi a de que chegou atrasado demais nessa festa caótica, na qual sempre esteve incluso.

— Foi só quando eu conheci o Perfurador de Elderlog, ou melhor, aquele desgraçado do Keith Webb, que eu entendi. Isso sempre foi muito maior do que eu me sentia à vontade para admitir… E depois de pensar mais um pouco, cheguei à conclusão de que sempre soube, mas evitava de pensar nisso por medo de perder a minha hegemonia percebida… Eu queria ser o único que consegue fazer essas coisas e me convenci disso, dos modos mais desiludidos possíveis.

Os dedos longos e escuros de sua palma destra tocaram o cilindro vermelho na parede, o arrancando do suporte, em um intenso baque metálico.

— E é por isso que eu me sinto responsável por isso… Porque, de fato, é da minha responsabilidade.

Levando o pesado extintor, olhou para trás pela última vez, parecendo um pouco mais pacífico, em comparação a quando iniciou.

— Vou te dizer outra vez: você não tem que me seguir. Essa luta é minha; é a minha bagunça, então eu tenho que consertar. Você pode se esconder em algum lugar e esperar até isso acabar. Logo, alguma autoridade vai invadir isso aqui, assim que derem um jeito naquela cortina de abelhas lá fora. A galera não vai te reconhecer sem a máscara, mas eu recomendo se livrar desse casaco, só para garantir.

Calmo, ao menos por fora, iniciou sua caminhada em direção aos andares superiores, focado na escadaria a se esticar além de seu tamanho, rumo à escuridão.

— Agora que você já sabe de tudo, vê se fica fora de problemas, tá bom?

A frase saiu como algo dito por todo bom pai distante, ausente de expectativa real e dita apenas por se dizer. Sem mais delongas, deu o primeiro passo rumo aos degraus.

— Ei… Espera aí…

O medo da retaliação competia com o desejo de ser escutado, criando os tremores de sua fala, que batalhava para sair só um pouco mais alta.

— Depois de me contar essa história toda… você não espera que eu só ignore… né?

Independentemente do quão grande fosse o temor, tinha coisas a dizer e as queria fora da garganta. Porém, para isso, teria de chegar mais perto.

— Você disse que eu não precisei manchar as minhas mãos… que eu não tive que sofrer para aprender a realidade das coisas…

Por mais que Ryan o assustasse, Steve tinha um medo maior.

— Eu não vou só fingir que tá tudo bem em dar a volta e me esconder… sabendo que eu podia ter te impedido de ir direto para a sua morte… Eu não quero começar com você.

Ele temia o que ele — o sujeito sem nome — e seu plano iriam provocar. 

— Eu não sei um pingo a mais do teu passado, ou o que trouxe aqui… mas depois de todo aquele trabalho… de me parar, de me vencer na biblioteca… não é agora que você vai se livrar de mim… e nem assim, tão fácil.

Sua covardice o restringia de olhá-lo nos olhos e vê-lo em seu mesmo nível, porém, as palavras proferidas compensaram, o munindo do suficiente de bravura, para que se pusesse ao lado dele, com o pé esquerdo no primeiro degrau.

— E no topo disso, você tá todo batido… Se já teve dificuldade até contra mim… imagine contra quem fez isso…!

O manipulador de fogo tomou o corrimão e deu seu primeiro passo, no aguardo pela continuidade ou, ao menos, um soco no rosto.

Nenhuma dessas coisas veio e no lugar de qualquer reação, ambos se afundaram no mais profundo silêncio, por vários segundos.

— Tem algo de errado… — Ryan disse, em suspiro. — E eu não tô me referindo à situação como um todo.

A atmosfera pesava sobre a carne, adicionando à tensão dos músculos. Ondas de choque, sutis como o vento, corriam por baixo da pele, criando pontos dolorosos tão ínfimos e breves.

— Eu… Eu acho que tô sentindo, também…

O rubro semi-ajoelhou no degrau e, agarrado ao próprio estômago, engoliu de volta a amarga saliva acumulada.

— E parece que tá ficando mais forte… Tô me sentindo… nauseado…

As luzes ao redor deles passaram a piscar violentamente e as poucas borboletas que as rodeavam apresentavam um comportamento bizarro, voando em círculos, definhando no ar, até o encontro do chão.

— Eu conheço essa sensação… É ela…

Ryan cerrou os dentes, diante do tão familiar agarro gelado em torno de seu coração. O fazia querer desmaiar, incapaz de respirar da melhor maneira.

— Ugh…! — Steve grunhiu. — Mas… que merda é… essa…?! Eu tô sentindo os meus ossos… dançando e se revirando… embaixo da minha pele…!

Dor incandescente devorou os corpos e vivenciam a sensação desconhecida de terem seus cérebros submersos em óleo fervente de fritura. Cada nervo foi metaforicamente arrancado, esfolado e afogado nas bolhas de calor.

— Lira… Mas que merda você pensa que tá fazendo…?! — O Savoia agarrava as laterais da cabeça, tentando abafar o terrível barulho, sem sucesso.

O eco eletrônico de um microfone com mau-contato soava por dentro, crescente em cada momento, injetando doses de agonia sem fim aparente, quando os segundos se esticaram em horas.

Nem mesmo um inseto podia ser encontrado vivo, tostados pela onda, muito menos resistentes em comparação às grandes criaturas de pele e osso.

— LIRA…! — exclamou, do topo dos pulmões. — FAZ ISSO PARAR…!

Tomou um passo à frente, notando as gotas férricas a jorrarem pelas laterais dos olhos. Chamando cada pedaço de poder, recrutou cada fibra, enfrentando de frente a insuportável pressão.

— Corta essa…!

Puxando tanto ar quanto podia armazenar de cada vez, bufava entre os dentes firmemente presos, agarrado no corrimão tingido de vermelho.

— Lira…!

Navegou entre o mar pesado, forçando a consciência de volta ao devido lugar. Algo por dentro se acumulou no caminho e pediu para sair, na forma de um grito que tomou todo o segundo piso.

PARA COM ISSO… AGORA!

Cedeu, de joelhos. Sem forças, apoiou pobremente a queda do tronco com o braço esquerdo, batalhando arduamente pelo simples direito de respirar.

E, de repente, tudo parou, e retornou para a mesma estase monótona de segundos antes, agora, sem os insetos, empilhados aos montes pelos caminhos.

— Ryan…! O que foi que tu fez?!

O Evans alcançou o segundo andar com dificuldades. Ainda desorientado, cambaleou até o mais alto, que parecia estar bem pior.

— O que rolou?! Que merda foi essa?! Eu ainda tô sentindo cócegas nos meus intestinos quando a língua encosta no céu da boca, e…! Espera… Como você fez aquilo parar?!

Eram perguntas demais para quem demorou mais quarenta segundos só para se erguer. Abatido pela onda, se apoiou na parede à esquerda e cerrou os olhos com força, visando se despertar.

— Isso foi… um pulso de energia…

— É, eu sei…! — alvoroçado, o rebateu. — O que eu quero saber é… de onde veio isso?! Eu ouvi antes… e você sabe…!

— São os outros… — respondeu, balançando a cabeça. — Em particular, uma deles… 

Mordeu a ponta da língua, ciente de que Lira não faria um ataque tão indiscriminado sob circunstâncias normais.

“Se ela foi forçada a usar uma coisa assim, significa que a coisa ficou bem ruim…”

A dupla de Mark tinha ampla confiança nas próprias habilidades e, julgando pelo pouco que viu de perto, aqueles dois são imbatíveis caso combatam juntos.

“E eles estão perdendo agora… Essa situação é demais, até para eles…”

Odiava a sensação de ver as chances de vitória descerem pelo ralo. Não tinha um décimo da força necessária para vencer um, quanto mais os dois.

“Talvez, não tenha muito que eu possa fazer…”

O barulho de uma enorme explosão ecoou — uma mistura de vidro partido e madeira lascada —, vindo dos andares superiores, levando ambos a fitarem as escadas, ao fim do corredor.

“Mas, eu não vou ser capaz de ignorar o que rolou lá embaixo…”

O Savoia, por consciência, cortou a hesitação. Ele agarrou o cilindro com a mão destra, não se permitindo desviar o foco dos degraus.

— A gente vai investigar aquele barulho… Vamos!

— Ei… Ei…! Ryan…! Espera aí…!

Sem aviso, deu início a uma sequência de pisadas velozes, rumo à fonte de todo o caos daquela manhã.

“Eu não sei se posso vencê-lo ou não, mas…”

O andar acima se encontrava ainda mais dilapidado que seu predecessor. Por cada canto, pedaços de cadeiras e portas quebradas se somavam aos estilhaços das vidraças, cobrindo todo o chão.

“... Eu, ao menos, vou me responsabilizar.”

Ouviu pequenos impactos, vindos de algum lugar à direita, e sem pensar, os seguiu.



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