Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 193: Herança
— Parece que agora somos nós três… Vamos ser uma família juntos, okay?
Ele lembrava daquele dia como se fosse ontem, porque, ao seu ver, é como se tudo que veio depois fosse só mais da mesma coisa.
Foi naquele dia em que um mero garoto foi forçado a aprender a verdade sobre aquele mundo e quanto às circunstâncias a rodeá-lo.
Em pouco tempo, ele aprenderia um conceito importante, um que o guiaria pelos outros dias que viessem: o ódio.
[…]
— Irmão! — gritou a voz estridente pela porta de trás. — O almoço tá servido! Vem almoçar!
O chamado chamou atenção do menino maltrapilho, que desceu da árvore onde passava seu tempo livre e correu o mais rápido quanto pôde.
— Tô indo! Tô indo…!
Lotado com energia de sobra, o garotinho de só dez anos adentrou pela janela em um pulo, surpreendendo pelo modo nada ortodoxo de se apresentar. Como um ninja, deu uma pequena cambalhota no ar e caiu em pé, pleno.
— Oooh! — A menina responsável por chamá-lo bateu palmas, impressionada, mas a reação não foi igual para todos os integrantes da mesa.
— Nossa, menino! O que andou fazendo lá fora?! Você tá imundo…!
E tão depressa quanto começou, a animação dele morreu, cortada do jeito mais curto pela intromissão hostil do novo sujeito, mais velho.
— Todo coberto de lama… — disse ela, cheia de nojo. — Vai, vai! Vai tomar um banho e troca logo todas essas roupas, menino sujo!
A face pálida denotava desgosto e o olhar — tão sombrio e denso quanto o cabelo em forma de ondas —, puro afastamento.
Ambos haviam herdado a maioria de suas características, semelhantes em excesso à mulher que, quisessem ou não, aprenderam a chamar de “mãe”.
— E Julia, por favor não incentive as bobagens do seu irmão, tudo bem? — Ela mudou de tom ao se referir à menina. — Ele precisa crescer… e pode ser um pouco mais como você.
Ele não entendia direito na época; os motivos por trás das diferenças de tratamento, das palavras mais frias e crueis, dos julgamentos quanto aos seus gostos e caráter…
Mas de algo Mark sabia: irmãos de uma mesma família não são criados iguais.
— … Tá bom… — Cabisbaixo, o garoto se retirou, indo em direção ao banheiro.
Os dias corriam dessa forma, na maioria das vezes, e a rotina o ensinava com impiedosa constância a presença das insuperáveis diferenças entre os dois filhos.
— Então, eu ouvi que você foi super bem na prova de matemática ontem, Julia! Parabéns, eu estou muito orgulhosa de você! Continue se esforçando!
Mesmo o som da água do chuveiro não conseguia abafar a animação dela ao mimar a filha mais nova. Com o tempo, ele passaria a pensar ser feito de propósito e, por sinal, estaria certo.
“Eu só queria que o pai tivesse aqui…”
As roupas cheias de areia e lama não seriam problema para ele, não diria ser algo “nojento” ou “indevido” e não o arrancaria o direito de ser mais uma criança normal. Ao lado do pai, Mark Menotte podia ser si mesmo: um menino com pouca experiência e muito a aprender.
Mas, por infelicidade do destino, o trabalho costumava consumir demais do já pouco tempo com o pai e, por consequência, Raul Menotte quase não pisava em casa.
“Droga… Droga…!”
E essa situação se manteria por anos à frente, os quais não seriam muitos.
… … …
— Hey, Mark!
A menção do nome arrancou-o do estado de foco absoluto, posto na bola de basquete. Tão logo ouviu, o rapaz parou de jogar, desistindo de fazer a cesta de três pontos em meio à quadra vazia da praça.
Era um dia de domingo, então não havia mais ninguém; em certo sentido, havia conforto em se estar só naquele esconderijo.
Mas então, ele veio: um homem esguio, ainda trajado nas roupas semi-formais do emprego de contador estatal, cujo par de olhos azuis brilhou sob os óculos escuros por um breve vislumbre.
Ele ajustou — ou tentou — o selvagem cabelo castanho-claro, complementado pela barba fina. Um largo sorriso se abriu ao ver o garoto tão empenhado, tornando impossível se segurar.
— Continue assim e um dia vai acabar na NBA! — disse em óbvia animação, passando pelas grades quebradas para chegar mais perto. — Não quis ir almoçar? Já tá ficando bem tarde!
Ele mostrou o relógio de pulso, cujo tempo digital contou 2:19 PM em azul.
— … Não tô com muita fome…
Um pouco incomodado, Mark tomou novamente a iniciativa, indo para a cesta de três pontos. Raul antecipou os movimentos do filho e se antecipou.
— Opa! — Ao correr e dar um salto no ar, o pai conseguiu impedir a bola de parar na cesta. — Vai precisar treinar um pouco mais! Foi bom, mas foi um lance meio baixo!
O mais velho tomou a bola para si e a quicou algumas vezes no chão de concreto molhado pela chuva da madrugada.
— … E a situação da Julia? Já decidiram para qual “escola para gente gênia” vão mandar ela?
Nos últimos dois anos, sua irmã mais nova, Julia, ascendeu em ritmo notável na linha acadêmica.
— Não, ainda estamos avaliando — respondeu Raul, ainda quicando a bola, chamando o filho para tentar tomá-la. — Para mim, meio que tanto faz.
Rose a levou em múltiplos especialistas e todos os laudos foram contundentes em afirmar a realidade já suspeitada pelos professores da escola primária: Julia Menotte era superdotada.
— Vem, vem cá! Desce para a briga…! — Raul o provocou, segurando a bola e indo rumo à cesta contrária.
Aos meros sete meses, aprendeu a falar de forma complexa e, aos cinco anos, já sabia resolver equações do segundo grau e aplicar leis matemáticas no nível do ensino médio.
O QI da menina — agora com 11 anos — foi quantificado em 162 pontos e logo a notícia da presença de um “novo gênio” da América tomou os mais variados veículos de comunicação.
Julia passou a receber cartas de institutos e até universidades das mais prestigiadas, oferecendo bolsas integrais, auxílios e demais facilidades, em troca do uso de sua genialidade em pesquisas e avanços tecnológicos.
— Tá perdendo tempo aqui comigo…! — Mark tentou reagir à absurda velocidade de Raul, o qual parecia bailar no campo de pedra.
Ainda no meio da quadra, o homem de seus quarenta e poucos anos deu um giro completo em torno do próprio eixo e sem tirar o pé direito do chão, aceitou os três pontos.
— “Perdendo tempo”?
E tal qual um passe de mágica, a bola retornou a ele, quicando devagar rumo a um caminho certeiro: a palma da mão.
— Falar com o meu único filho, que eu passo um tempão sem ver, e querer saber um pouco de como ele tá indo é mesmo tanta perda de tempo assim?
Bagunçou o cabelo de Mark, deslizando os dedos com uma força brincalhona. A cor, negra como breu, veio de Rose, mas a textura selvagem e pontiaguda dos fios não o deixou se enganar.
— A sua irmã pode ser um pouco diferente, mas não significa que eu a ame mais. Na verdade, eu me oponho completamente à ideia.
— Por quê…? — ouvir de modo tão direto o fez estremecer, em um confuso misto de sentimentos.
— Porque eu preferiria que ela tivesse uma vida baseada nas próprias escolhas, não em rótulos cheios de expectativas. Sua mãe e eu não concordamos muito nesse aspecto.
O curto silêncio entre os dois se esticou em uma pequena eternidade, até enfim ser interrompido por um novo impacto do objeto esférico contra o chão.
— Rose e eu estamos a ponto de nos divorciar, Mark.
A revelação entregue do nada gelou a espinha do garoto de meros 14 anos, trazendo um novo e desconhecido tipo de medo, misto da mais pesada apreensão.
— Eu sinto muito que é assim que eu precise estar te dizendo, filho… Eu juro que tentei resolver as coisas com a sua mãe… Tentei de tudo, Mark.
A mão dele ainda não havia deixado a cabeça de seu filho, pesando mais e mais, em prova de não querer deixá-lo sozinho. Aquela foi uma rara experiência de contato.
Pouco ele sabia que, também, seria uma das últimas.
— Eu sei que isso é demais para absorver de uma vez só… Vem, vamos conversar.
Os dois saíram da quadra sem dizer nada. Naquele momento, Mark sequer conseguia se levar a olhar para frente por completo, dividido entre a grama do parque e os próprios pensamentos.
Os dois andaram pouco, só até chegarem em um banco próximo e nele, Raul repousou a bola. O lugar escolhido dava visão para boa parte do parque, indo da quadra à pista de skate e às barras de calistenia ao longe.
— Putz, o cara do sorvete não tá aqui! — riu um pouco ao reclamar. — Bem que eu ‘tava afim… Queria um também?
— Eu não sou mais um moleque, pai — retrucou o alvinegro, abatido pela verdade. — … Mas que conversa é essa…? Que papo é esse de separar da mãe?
— Haah… — Raul tomou uma boa porção de ar. — Mark, eu sei o que a sua mãe tem feito… Ela escondeu muito de mim e por muito tempo, afinal, eu nunca estive muito presente na nossa casa… Mas eu descobri algumas coisas… coisas nada legais, mas que você tem a idade para compreender.
— Huh…? — Sem saber o que dizer, a resposta do garoto foi indagá-lo com intenção.
— Eu sei que ela te trata diferente da sua irmã, também… E por isso eu já te peço desculpas. — A fala saiu repleta de peso, lentificada. — Sempre tive uma ideia, ou melhor, uma suspeita… e eu peço perdão por nunca ter agido nisso, filho.
O vento lento e úmido cortou pela grama e as árvores, fazendo o instante daquele segundo se propagar ao ilimitado. As poucas nuvens cinzentas davam a impressão de que iria chover logo.
— Eu e a Rose já decidimos, Mark — disse, menos vívido e brincalhão quanto gostaria, embora mais sólido e responsável. — Ela vai ficar com a casa e tudo o que tem nela… Sabe aquele carro legal? Dela também, igual metade das nossas economias.
— O quê?! — Em sobressalto, o adolescente saltou do banco e ficou de pé.
— É — respondeu de forma direta. — Eu conhecia a mulher problemática que coloquei na minha vida, mas me fiz de cego… Ela nem raciocinou quando escolheu os termos da separação.
A seriedade por trás de cada frase adicionou densas camadas à situação difícil. A relação entre Rose e Raul foi uma bomba-relógio criada pelo destino e a hora da explosão chegou.
— E como a gente vai ficar, pai?! — indagou o garoto, chocado e preocupado em igual medida. — A Julia… EU…! COMO ASSIM?!
— Calma, campeão! — O pai tentou brincar. — Por isso eu escolhi o menor dos mares… Eu concordei em deixar a Julia sob tutela dela, contanto que ela me desse provas de que minha filha está sendo bem-cuidada. Foi por essa razão que eu acabei apoiando mandá-la para morar perto dos avós, em Massachusetts. Eles me garantiram que vão manter a Rose sob controle; seus avôs não fariam mal à Julia.
A decisão só fazia sentido a partir de uma lógica fria, a qual Mark não compreendia, mas antes de poder perguntar, seu pai concluiu com a cartada final.
— Quero manter a Julia segura, e se a resposta para que isso aconteça for colocá-la no mesmo campus que outros mil e tantos engomadinhos inteligentinhos, então que seja — cuspiu as palavras, cheio de ódio. — Eu só não quero ver aquela mulher explorando a nossa filha para o próprio ganho.
Mark precisou de um momento para a realidade ser digerida; o adolescente ainda tinha muitas perguntas, mas dentre elas, nenhuma soava tão alto quanto a seguinte:
— Eu entendi sobre a minha irmã, mas… — estremeceu, trancando os dentes. — Mas e eu…? E eu, pai?
A história se repetia de novo, com diferentes atores — foi como ele se sentiu ao escutar coisas tão esperançosas quanto ao futuro de sua irmã.
— Onde EU fico, pai…?! — A visão marejada borrou os contornos e cores. — E EU?!
Mark não costumava chorar; desde tenra idade, aprendeu a resolver os problemas sozinho e que o mundo não esperaria estar pronto para encará-los.
Enquanto Rose dava atenção à Julia e nutria seus grandes talentos, ele se aventurava pelas ruas largas da Califórnia, entretendo a si mesmo como podia; às vezes isso significava trazer problemas.
Os únicos momentos nos quais não estava “largado pelo mundo” eram aqueles raros nos quais Raul estava presente, algo ameaçado pelas circunstâncias atuais.
Uma vida de tão pouco e esse pouco o seria tirado… Mais um dia normal na vida do filho preterido.
— Ah, mas essa é a boa notícia, campeão.
“Huh…?” Por dentro, questionou a própria realidade na fração de segundo.
Raul repetiu o mesmo gesto feito na quadra, tomando os cabelos do filho, tão dispersos e irregulares quanto os seus próprios e fazendo-os caber em uma mão só.
— Você vai ficar comigo, ora mais!
… … …
— Mãe, o que aconteceu com o pai?
Mark não sabia disso ainda, mas se lembraria para sempre do detalhe “descoberto” na breve observação: Julia cresceria para se tornar uma cópia de Rose, em aspecto e gestos.
— Eu ainda não sei bem, minha querida… Só sei que ele se machucou feio — respondeu, com uma voz cheia de toques florais e gentilezas. — Só espero que ele esteja bem.
Tal observação só foi possível graças à visão “privilegiada” — se pode ser chamada assim — do rapaz mal saído da infância. Enquanto as duas seguravam as mãos, de lado a lado, ele as seguia por trás.
Os corredores do hospital pareciam estranhamente vazios, detalhe marcado no fundo da memória. As enfermeiras vestidas em azul iam de um lado para o outro depressa, navegando entre os barulhos de aparelhos nos leitos.
A notícia chegou quando sequer se podia esperar.
— Com licença, eu estou acompanhando o paciente no leito 29, enfermaria B… O nome dele é Raul Menotte.
— E você seria…? — A recepcionista, pouco interessada, mediu Rose de cima a baixo.
— A esposa dele — rebateu. — Esses dois são os nossos filhos.
A mulher de aspecto cansado fechou os olhos e baforou fraco, olhando os registros sem qualquer disposição. O trabalho não durou muito tempo e, ao fim, disse apenas um par de frases enigmáticas.
— Fale com o médico. Ele vai te dar maiores notícias.
— Obrigada — agradeceu com um sorriso largo. — Vamos. É logo ali.
A ida até o quarto foi uma viagem curta — um tanto anticlimática, em comparação ao caminho em si. Fazia pouco mais de três horas desde a notícia dos tiros.
Alguns veículos de TV menores noticiaram o momento do ataque, quando dois indivíduos armados e encapuzados abordaram Raul Menotte em pleno horário de almoço.
As buscas e investigações policiais continuam, mas até o momento, nada foi encontrado. Trabalha-se com a hipótese de execução.
Funcionários do governo morrem o tempo inteiro, vítimas de rivais ou daqueles que se sentiram lesados por suas tomadas de decisões; às vezes, seu próprio colega de escritório pode se provar seu pior inimigo.
“Pai…”
Se a real motivação foi um crime encomendado, a investigação poderia levar anos e acabar engavetada.
— Esperem aí.
Rose entrou sozinha pela grande porta branca ao fim do corredor escondido. Nela, haviam os dizeres: “permitido apenas um acompanhante por paciente”.
— Mark… — A voz infantil de Julia chamou a atenção do mais velho. — Será que o pai vai ficar bem?
Ele quis dar uma resposta positiva, afirmar que as coisas dariam certo, que tudo ficaria bem… Mas aquela porta não lhe era a mais convidativa.
Em certo sentido, é como se ele já soubesse, por instinto, o que esperar.
— Vamos esperar, Julia — acariciou a cabeça da irmã, devagar. — Vamos esperar ela voltar.
E, sem demora, retornou, abrindo a porta em um gesto extremo, de braços abertos como se abraçasse o mundo.
— Crianças…! — Os abraçou, juntos. — Eu preciso que me escutem bem…
Formou-se ali um dia para se lembrar — não pela tristeza, nem pelo peso da verdade — mas por causa de um simples detalhe, percebido nas entrelinhas.
— Parece que agora somos nós três… Vamos ser uma família juntos, okay? — explicou. — Seu pai… Ele…
A fraca expressão o faria se questionar no futuro, a ponto de perder a cabeça. Rose estava prestes a chorar, desabando em si mesma graças aos tremores, porém de canto, fraco e tímido…
Ele pôde jurar que o viu — um sorriso sorrateiro, abafado entre os panos de uma tristeza fingida.
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