Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 194: Doce Ilusão
— Eu sinto muito, garoto… — Em um gesto simpático, o homem de meia-idade acariciou as costas com firmeza. — Eu nem imagino que tipo de mãe faria algo assim…
Rose nunca gostou de Mark e ele sabia disso; o garoto de meros 14 anos apenas não imaginaria que o ódio chegaria a tal ponto.
— Nós estávamos indo para Massachusetts… Ela me prometeu… para mim e para minha irmã Julia… Ela disse que as coisas iam mudar…
A pobre xícara de café se tornou vítima indireta da manobra terrível causada pela Menotte, usada pelo jovem como um meio fajuto de descontar a raiva em apertos.
— ELA ME ENGANOU! DISSE QUE IA DEMORAR SÓ DUAS SEMANAS…! — gritou, ao topo dos pulmões. — UM MÊS E MEIO…! JÁ SE PASSOU UM MÊS E MEIO…!
Buscas se espalharam por todo o território dos Estados Unidos e até o presente momento, nada. Nem mesmo um traço das existências de Rose e Julia Menotte foram vistos em qualquer dos 50 estados.
É como se as duas houvessem simplesmente desaparecido, apagadas do mapa das oito bilhões de pessoas no mundo.
A cidade inteira já sabia de como o esquema ocorreu e muitos logo simpatizaram com o abandono do jovem; se Mark não morreu de fome ou precisou roubar, foi por conta da ajuda dos populares.
“Mas que coisa horrível!”, foi a reação geral dos que ouviram e viveram parte naquela história, indo desde os atendentes e funcionários do hotel, até os vendedores de verduras em lojas pequenas.
Todos sabiam de como Mark foi abandonado pela própria mãe, deixado sem dinheiro e à própria sorte, há milhares de quilômetros de distância de qualquer parentesco.
— Ela levou a minha irmã… AQUELA MALDITA LEVOU A MINHA IRMÃ DE MIM…!
Crack! — não se conteve. A bela xícara foi transformada em um monte de cacos brancos pelo chão da cozinha.
— Ahh… — Enfim, Mark pareceu se arrepender. — Eu… Me… Me desculpa… Eu…
— Tá tudo bem, garoto… — respondeu de pronto o homem a ouví-lo. — Tá tudo bem. É só uma xícara.
O menino rebaixou a cabeça contra a pedra do batente, cobrindo o rosto com os braços, cheio de dor e vergonha, escondendo as lágrimas e as forçando para dentro.
— O que a sua mãe fez é imperdoável, Mark — falou ele, devagar. — Espero que peguem ela e consigam deter o que quer que ela esteja planejando com a sua irmã.
— A Julia é tudo o que eu tinha, Bruce… A minha irmãzinha… Ela olhou na minha cara e me disse que a deixaria com os meus avôs… Parte de mim já sabia que era a porra de uma mentira… mas… mas…!
— Demore o quanto quiser — comentou, ao notar a parada brusca para a busca pelas palavras certas.
As expressões do menino estampavam “conflito”. Mark de certo ainda não havia se adaptado direito à nova realidade e talvez sequer soubesse como definir os fatos corretamente.
— … Mas ela começou a me tratar como gente depois que o nosso pai morreu, e isso me fez acreditar nela… me fez pensar que ela mudaria! — exclamou, escolhendo o primeiro lance de palavras em mente. — Ela… foi uma mãe para mim, pela primeira vez em anos…
Rose o enganou e caiu como um patinho. Ao longo dos dois meses que ainda viveram em Seattle, passado o falecimento de Raul, ele viveu o semblante de uma vida normal.
— Ela assistiu a competição de basquete que eu ganhei, bateu uma foto comigo, segurando a taça e a medalha… Haah… Ela até se preocupou em ir falar com os meus professores sobre a situação da família e pedir para eles perdoarem minhas notas ruins…
Voltou ao tom de voz mais calmo; de certo, falar tantas verdades veementes tivesse arrancado um grande peso de suas costas.
— Ela demonstrou interesse em mim pela primeira vez na minha vida, Bruce… só para depois me dar uma facada nas costas. Aquela vadia me fez imaginar que a gente pudesse ser uma família, que nem ela disse no hospital…
Mark bufou. Embora um pouco marejados, seus olhos escuros não tinham o aspecto de quem estava para chorar de tristeza.
— Por que diabos eu não acreditei no meu instinto naquele dia…? — trancou os dentes. — Aquele maldito sorrisinho de canto… ela nem conseguiu esconder direito…
O esquema foi descoberto ao passar de duas semanas. Sem dinheiro ou comida, Mark foi encontrado desolado pelos donos da pequena pousada, que acharam estranha a situação do garoto a perambular pelas ruas.
Os funcionários colaboraram com as investigações, fornecendo todos os contatos e informações sobre Rose, os quais acabaram não servindo de ajuda.
O número de celular deixado por ela não era mais operante e o último registro de atividade da linha datava de sua estadia na pequena cidade de Elderlog, Montana.
— Ela tomou toda a riqueza da sua família, né? — De repente, uma nova voz somou à conversa. — Foi tudo premeditado, Mark… Ela queria se livrar de você.
A falta de freio da garota chamou a atenção de Bruce, o qual a olhou com certo repúdio, o qual sequer foi notado pela adolescente, até ser verbalizado.
— Mary Jo, mais cuidado com o que diz…! Não é coisa que se fale!
— Ué, até o Mark pensa assim! — abriu a geladeira para pegar algo. — Não é mistério.
A jovem de cabelos castanhos era da exata idade do rapaz, mais nova por alguns meses. Mary Jo era a única filha de Bruce e o legado deixado por sua falecida esposa.
— Toma, Mark — entregou-lhe a coisa que pegou: uma fatia de bolo com sorvete em um pratinho de vidro. — Só vê se não quebra, que nem fez com a xícara!
— Ah… valeu, mas não precisa!
— Precisa sim! — rebateu de pronto, provando uma colher do próprio pedaço. — Se você vai ficar morando com a gente, então é assim que vai ser!
— … Espera… O quê…?! — confuso com a repentina revelação, quase pulou fora da cadeira. — Não…! Eu não posso dar esse trabalho para vocês…! Eu tenho família…! Só preciso entrar em contato com eles e…!
Travou. Nem ele próprio acreditava nisso, quem diria os outros. Se seus familiares estivessem mesmo tão preocupados, não teriam ficado sem mandar mensagem ou tentar contato por tanto tempo, com tantas notícias sobre o caso na TV.
Até isso tomou proporções estranhas demais. Por que ninguém havia tentado contato? Será que até eles fingiam que se importavam?
Ou, talvez, algo tão ou mais sinistro ocorreu ao restante da família Menotte?
— Mas você pode ficar com a gente por quanto tempo isso demorar.
Bruce levantou e arrumou a cadeira no lugar apropriado da pequena mesa na cozinha, ambos calmo e direto, quanto às palavras cheias de verdade.
— E se for sobre pagamento, relaxa… não vai ficar aqui de graça — afirmou. — Na verdade, eu bem que precisava de um ajudante a mais com algumas coisas específicas aqui dentro de casa. Posso te arrumar umas oportunidades, também.
Estendeu a mão direita para Mark, cuja pele foi, há anos, estampada por uma grande cicatriz de queimadura.
— Você tem cara de ser um bom rapaz, Mark, e eu quero acreditar nisso… e, no fim das contas, essa casa é grande demais só para a Mary Jo e eu. O que me diz?
[...]
— … E eles me adotaram como se eu fosse um membro da família… Heh! Que tipo de gente faz isso, hein? Aceitar um cara estranho, vindo de sei-lá-onde, numa casa onde mora uma menina bonita…! — riu. — Às vezes, eu penso que eles são loucos!
Ele estava naquele local — cheio de árvores e sombra fresca, um vento singelo e confortável, sol ameno e um banco de praça — e ao lado dele…
— Isso é um sonho, né? Que nem daquela outra vez… — questionou, como se de repente sentisse toda a magia do momento morrer. — Não tem jeito de você estar aqui… Não tem como isso ser verdade, Julia.
O mais leve dos sorrisos se fez no semblante da mesma. A menina, agora moça, acariciava-lhe os cabelos, escutando com cuidado cada passo e evento da história contada.
Mark jamais a pôde ver envelhecer até aquele ponto. A versão de Julia à sua frente deveria ter uns 15 anos, um pouco mais madura do que ele se recordava, mas dotada da mesma essência, seja por bem ou por mal.
— Por que você precisou ter ficado tão parecida com ela…?
Quis tocá-la e sentir a maciez da pele nunca mais vista. Julia sempre foi pálida como a neve e o contraste com a luz do sol só servia para evidenciar essa verdade.
Ele sentia o calor de seu colo sob a nuca, trazendo um profundo senso de relaxamento. A sensação, agradável, o levou a cogitar ficar ali para sempre.
— Essa mentira aqui tá boa demais, mas não me engana mais.
Em um estalar de dedos, o paraíso se quebrou.
— … E aqui estava eu, tentando te dar um pouquinho de conforto… Foi mal. Não foi a minha intenção te irritar mais, tampouco te decepcionar, Mark. Fui longe demais e reconheço.
As imagens e sensações se partiram em milhares de pedaços, revelando um fundo preto — sem fim e nem começo —, onde sequer o chão dava notícia de existir.
— … Eu sabia…! — O pálido exclamou, chamando para si os próprios poderes. — Isso é a porra de mais um teste?! Tão invadindo até o último lugar onde eu tenho paz agora, cacete?!
Se preparou em postura de combate, atento àquela voz. Não sabia se conseguiria fazer qualquer dano em um pesadelo, mas ao menos iria tentar.
— Cai para dentro…!
— Calma! Eu não sou nenhum inimigo!
Das sombras, uma figura feminina desconhecida se materializou e sua mera presença foi suficiente para moldar as leis daquele lugar.
— Olha, eu não posso exatamente modificar como você se sente por dentro, mas…
Olhos roxos olharam até o fundo da alma, ou melhor: ela já o havia atingido. Em menos de um piscar de olhos, a moça de pele escura e roupas formais surgiu há centímetros do rosto dele.
— Tum! — fez um barulho cômico ao tocá-lo de leve na testa. — Vamos para um lugar mais iluminado!
“Ah, mas que merda…?!”
De novo, a realidade se distorceu e, na velocidade de um espirro, o local foi substituído por outro ainda mais belo e repleto das mais variadas sensações.
— … Esse poder e essa sua cara… ‘Cê não tá falando sério comigo, tá? — A encarou em busca de respostas, pasmo.
— É! Eu te explicaria tudo direitinho agora, mas a gente não tem muito tempo — sorriu e piscou, cheia de charme. — Vem comigo! Tem um canto que eu quero te mostrar.
O lugar ao redor deles era real — real demais. O parque não estava muito ocupado e, na verdade, se viu dez pessoas andando pelas imediações, acabou vendo gente a mais.
“O que é esse lugar?!” pensou, mas manteve para si.
— Já esteve em Chiyoda? É, eu também não — respondeu, capaz de ler seus pensamentos. — É um parque no Japão, chamado Hibiya. Não é lindo?
Era fim de outono e as árvores de ginkgo perdiam a camada de folhas douradas. Uma a uma, pedaços amarelos flutuavam e caíam sobre os bancos e pequenos espelhos d’água, onde alguns gansos nadavam.
O semi-silêncio trouxe conforto. Vários pássaros encontraram ali o local para criarem ninhos — nada interrompidos pela escassa presença humana — e os sons dos cantos criaram a atmosfera perfeita.
Estruturas altas de prédios comerciais se elevavam não tão ao longe, embora distantes o bastante para parecerem longínquas e inalcançáveis. Pelo modo como o sol ameno batia nelas, deveriam ser umas 4 da tarde.
O cheiro da natureza, carregado pelo fraco e frio vento, se misturava aos toques quase imperceptíveis de alguma ótima comida frita, suficiente para fazer o estômago do rapaz gritar.
— Ah, desculpa por isso! Hehehe!
Debruçado na estética do lugar, Mark a seguiu sem sequer notar o espaço passar diante de seus olhos.
— A gente chegou!
O local escolhido foi um pequeno lago ornamental. Comparado ao restante, não havia nada de muito especial a ser mencionado. O lugar tinha algumas árvores e ao lado de uma delas, havia alguém sentado.
“... Espera…”
— Ei! — Ela chamou, bem alto. — Desculpa a demora! A gente tá aqui agora!
A figura, antes focada na água, enfim os notou, e o encontro arrancou as dúvidas finais sobre quem ele via.
— Não vai querer perder tempo gastando as suas palavras comigo — sinalizou para frente. — Seja honesto, Mark. Nada aqui é real; são só memórias, mas ela…
A irmã de Ryan se escondeu na sombra da maior das árvores de ginkgo, até ser obscurecida da cabeça aos pés.
— Ei... Hannah…!
— Essa é a verdadeira e ela já sabe de tudo — interrompeu. — Lembre: esse contato não vai durar muito… Tô segurando na medida do possível, mas cada segundo só pode ser dilatado por um certo tempo, então foquem nas conversas importantes.
— ESPERA…! — gritou, tentando alcançá-la.
Mas quando tentou fazer mais perguntas, a mulher sumiu atrás do tronco, deixando apenas os dois, juntos naquela lembrança.
… … …
— Mark…? É mesmo… você…?
A voz dela, inconfundível, o fez tremer da cabeça aos pés.
— É mesmo você, certo…? Não é só uma ilusão… Admito que eu também não confio completamente nela… mas…
O jeito desconfiado de falar, as tentativas de esconder as emoções por trás de uma argumentação lógica… Não podia ser outra pessoa ou uma criação qualquer da irmã daquele cara; aquela era Lira, única e verdadeira.
“Lira…”
O encontro de visões enviou-lhe um choque de corpo inteiro. O coração do Menotte pulsou mais forte, as mãos tremeram e a voz falhou.
— Lira… — tentou falar. — Você…
— Ahh… — Sem hesitar, a garota o tocou no rosto. — Então você sobreviveu mesmo. Que bom.
O inesperado contato físico o estarreceu. Naquele breve fragmento, Mark sentiu um pouco de cada coisa.
A aversão da Suzuki por contato físico talvez fosse sua característica mais marcante. Durante o tempo em que se conheciam, o rapaz contava nos dedos as ocasiões nas quais se tocaram.
Quem sabe por essa razão fizesse tanto sentido, afinal, não foi um abraço de saudades ou um reencontro dramático e cheio de emoções; ela somente tocou-lhe na bochecha e sorriu, aliviada.
— Lira… Eu…
— Não precisa falar nada agora. Vamos nos falar depois, Mark.
— Não… Lira, eu…!
— A conexão entre nós está acabando. Eu sinto.
O mundo artificial ao redor dos dois começou a perder cor. Lentamente, a paisagem sumiu, dando lugar ao escuro infinito do qual ambos vieram.
— … Lira…! Me desculpa…! Me desculpa por ter te preocupado…! Eu… Eu…!
A garota, também distorcida pela separação, balbuciou algo que ele não pôde escutar. É possível que ela também não o tenha ouvido.
— LIRA…! — gritou, por mais inútil. — Eu vou tirar a gente daqui… E EU VOU TE CONTAR TUDO!
A ligação entre ambos enfim se cortou e Mark sentiu a si mesmo sucumbir a um abismo de infinita escuridão, sem sons ou sensações, onde a mente, de novo, cedeu ao sono profundo.
[...]
“Tch… Droga”, reclamou em consciência. “Logo quando eu pensei que podia fazer durar mais um pouco…”
Hannah concluiu a extração das ampolas, mas antes de se levantar, tomou um cuidado a mais para esconder o pouco de sangue a descer pelo nariz, assim como limpou o suor da testa.
“Eu poderia usar um pouquinho menos detalhe… Quem precisa de um espaço tão cênico daqueles para um encontro romântico? O Central Park já serve!”, finalizou e fingiu, ambos com maestria. — Coleta terminada! Podem fechar a sala.
Ao sinal dela, os dois agentes a escoltaram para fora, antes de selarem a entrada. Ali dentro, ficou apenas a figura desmaiada do [Ilusionista], mantido quieto por drogas sedativas.
“E o meu plano avança mais um passo… Agora, só tem mais alguns ajustes finos a fazer.”
Mostrar a ambos a situação de cada um daria a motivação necessária à execução do passo futuro. Agora, precisaria de um estopim e para tanto, contava com a atriz perfeita.
“Eu consegui, mãe. Agora, é com você!”
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