Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 131: Movimentações

— Mãe, tô saindo…!

Os passos acelerados na descida da escada ecoaram pela casa inteira e ao chegar enfim no chão, o pulo em direção à porta fez com que o rapaz de cabelos flamejantes mais soasse como um fugitivo da lei.

— Tudo bem…! — A confirmação veio da cozinha, entre os sons da faca contra a madeira. — Só não chegue muito tarde, Stevie! Não perca a hora do jan…

— Tchau, te amo! — E antes de poder concluir, a porta outra vez fechou.

Tal foi mais um pedaço da estranha nova rotina na humilde residência.

— Hunf… Eu me pergunto o que ele tanto faz… — pensou Micaela, enquanto deixava o corpo falar por si. — Ah…! Puxa…! Quase que eu perco um dedo agora…!

O fio da faca passou a milímetros de causar dano no indicador da mãe de família e embora nenhum sangue houvesse saído, deixou o objeto de lado e se apoiou no balcão para respirar um pouco.

— Logo mais, hoje pelo fim da tarde, o Presidente dos Estados Unidos da América anuncia a implementação de um novo pacote para pesquisas em engenharia biológica.

O tom nas notícias da televisão pode ter ficado mais tranquilo, porém, isso por si só passava longe de acalmar o coração tumultuado da mãe preocupada.

— Tomara que o meu filho não esteja se envolvendo em nenhuma encrenca…

As últimas semanas foram cobertas de apreensão ao início de cada saída e mesmo sob os dias mais promissores pelas ruas de Elderlog, o zelo temeroso jamais cederia.

— É o meu filho… — raciocinou, tomando ar. — Já tá na hora de ele adquirir alguma independência…

As tentativas de se convencer do melhor a convidaram a liberar os sentimentos engarrafados sob um grande suspiro, entregue à voz do repórter do noticiário nacional.

— O chefe de Estado anuncia que o pacote de dez bilhões e meio de dólares tem o foco em desenvolvimento de biotecnologias e pesquisas em engenharia genética e codificação de genomas. Analistas e comitês de ética em ciência questionam a explicação, chamando-a de “vaga e inespecífica” e afirmando abrir margem para a quebra de preceitos éticos.

“Eu só preciso parar de pensar tanto assim no pior…”

O mero ato de se preocupar em excesso trouxe o início de uma dor de cabeça e para tal, ausência de tantos estímulos simultâneos seria quase um milagre.

Então, pegou o controle da televisão…

— Por outro lado, os setores alimentício e de saúde discutem que a verba multibilionária pode e deve ser melhor alocada, setores esses em recessão de crescimento desde…

… E a desligou. Alívio — quanto menos sons desnecessários, melhor.

— Quer saber? Eu só desisto de me preocupar com isso por hoje…

Deixou o apoio desconfortável proporcionado pelo mármore e foi para a sala, sem dar a menor importância ao trabalho pela metade.

— Hoje, vamos comer pizza no jantar… e amanhã no almoço também — E jogou o corpo cansado na poltrona do marido, despreocupada, ao menos em partes. — Stevie…

O teto branco chegava a quase cegar, como se toda a pouca luz se refletisse diretamente nos olhos dela.

— … Só não se envolva em nada perigoso, meu filho…

[...]

— Oi…! E aí, Ann! Tô aqui, qual foi?

A bicicleta cortou a cobertura de paralelepípedos da grande central. Como esperado, não foi difícil encontrar quem se buscava a tal altura do dia.

— E aí… — cumprimentou a jovem, soando amarga. — Tá ligado do motivo de eu ter te chamado aqui, né?

O modo como ela sempre achava modos de encontrar o jeito mais críptico e contraintuitivo de iniciar a conversa chegava, às vezes, a tirá-lo do sério.

— Não, eu não sei! — confessou ao balancear o tom entre brincadeira e uma farpa real. — Do nada você me manda um “Steve, deu ruim… me encontra na praça” e fica sem responder o resto…! É claro que eu não vou saber.

— Tá… O importante é que você tá aqui, agora… Senta aí.

“E como sempre também, desviando do assunto como uma verdadeira mestre”, ironizou em pensamento. — Tá bom. Manda o papo.

O meio da tarde trazia novidades com relação ao resto do ano, a começar pela presença mais óbvia do sol que, ainda que não por muita coisa, cobria árvores e casas com o dourado de seu brilho.

— … A gente vai ter que abortar o nosso plano inicial… Eu acabei de confirmar e… não tem um jeito de a gente entrar na escola sem sermos vistos ou ganharmos ao menos uns trinta agentes armados nas nossas costas…

O excesso de segurança era outro ponto. Vez ou outra, passava uma viatura ou um carro preto descaracterizado, segundo Ann, carregando agentes em patrulha pelos quarteirões.

— O negócio tá sendo levado bem mais a sério do que eu tinha antecipado quando pensei nessa estratégia… — confessou com enorme peso nos ombros, deixando-os cair. — Haah… A gente vai ter que pensar em um jeito melhor…

A estratégia original soou boa o bastante à primeira vista. Os arquivos, imensos, ainda deveriam estar preservados no local original, as quatro primeiras gavetas no escritório de Eastwood.

— Não tem como entrar nem de noite? Tipo, eles não aliviam a segurança nem um pouquinho assim? — sinalizou com os dedos, para enfatizar.

— Não… — respondeu depressa, cabisbaixa. — Eu considerei essa ideia, fiquei a noite toda pastorando pelas proximidades… Existe um sistema de troca de turno entre os caras e barra não alivia nem um pouco.

Agora, com a nova revelação, acabaram de ficar dez passos atrás na busca por Ryan Savoia.

— Poxa… — arfou, mentalmente exausto pela curta conversa. — Putz, então isso também tira qualquer chance da gente identificar os corpos…

— É… tem esse lado aí também. Nenhuma família se manifestou publicamente e isso é…

— … Estranho — completou. — Não… não é só estranho… chega até a ser bizarro.

O caso sequer caiu na mídia ou foi noticiado algum tipo de desaparecimento. De certo modo, é como se a totalidade de Elderlog houvesse apenas escolhido a ignorância.

— … Quer dizer, tá todo mundo abalado com a questão da escola e tudo mais, só que… aaargh! Não faz sentido…!

Os últimos acontecimentos na pequena localidade interiorana também cabiam na exata mesma descrição. 

— As pessoas estão negligentes demais… pouco preocupadas… — falou Ann. — Será que é a pressão desse pessoal todo aqui?

— Eu não faço a menor ideia, mas não me anima nem um pouco… A gente precisa resolver isso, antes que apareçam mais mortes…

Ao fim da proclamação, uma viatura passou logo em frente e, ao vê-los, desacelerou até parar.

— Sabe, né? — murmurou ela.

— Manjei — respondeu ele.

A menina de marias-chiquinhas recostou a cabeça no ombro dele e, em resposta, Steve entrelaçou-a em um abraço lateral.

— O que vocês dois estão fazendo na rua? — perguntou o policial, de braços cruzados. — Não estão se envolvendo em encrenca, né?!

O olhar afiado dele seria o bastante para quebrar qualquer um, porém, o excesso de treinamento levaram a situação a seguir ao máximo da naturalidade e sem nem hesitar, Steve falou.

— Ah, não! Não se preocupa com isso, senhor! A gente namora.

De modo gentil, aplicou nela um suave beijinho na bochecha, respondido por um pequeno sorriso. Se por fora pareciam um belo casal, internamente cada um carregava sua grande crítica particular.

“Ugh… nojento…! O que ele tá fazendo?!”

Bleeergh…! Quem sabe quantos insetos já andaram nessa pele hoje…?!”

— Hmm… — O homem os analisou, demorando vários segundos até dar o veredito. — Certo… Vou deixar os dois passarem…

O agarro metafórico ao redor dos corações cedeu de imediato e a visão dele a se afastar foi como perder metade do próprio peso de uma vez só.

— Mas fica o aviso! Crianças como vocês precisam tomar cuidado. Não sabem quem pode estar esperando pelas ruas!

— A gente agradece o aviso! — a manipuladora de insetos sorriu. — Vamos voltar logo! Obrigada pelo serviço!

O trabalhador acenou um “tchau” antes de acelerar com a viatura para um turno no próximo quarteirão. Steve, já conhecendo o esquema, deixou de tocá-la e tomou alguns centímetros de distância no banco.

— Da próxima vez a gente traz umas sacolas cheias de coisas aleatórias e você diz que é minha prima de Billings e que estamos descansando.

— … É… essa aí soa bem melhor… Mas… tinha que me beijar daquele jeito mesmo?!

— Olha, você me disse para deixar convincente… e funcionou! De qualquer jeito, foi mal.

A expressão cheia de vergonha deixou claro não ser aquele o nível de realismo que ela exigiu.

— Mas tá bom… — cobriu os olhos, escondendo a vergonha. — Funcionou e é o que importa… A gente pensa mais em outro jeito depois…

Um clima tenso passou a rasgar o ar da praça quase vazia, um que não desapareceria, até a manifestação corajosa de alguém.

— Uh… Ann… — Steve entendia essa verdade fundamental como ninguém e se levou a ser aquele a tentar. — Não é só isso, né?

— … Quê…?

— Tipo… Não é só para falar disso que a gente tá aqui, né? Tem coisa… coisa rolando por trás…

Outra viatura passou como um relâmpago em frente aos dois, seguindo o rumo exato da primeira.

— … É, tudo indica que tem uma movimentação… — respondeu, apontando para cima, em diagonal. — Viu os helicópteros um pouco mais cedo, né?

— Vi… Eu vi sim.

— Foram os mesmos que passaram por cima daqui, no dia em que o Mark foi levado.

A incerteza quanto ao próximo passo os tomou de calafrios. Com a atmosfera arruinada, os motivos de se estar ali chegaram ao fim.

— A próxima ronda deve estar chegando… Vamos para casa.

Ela tomou sua distância em direção à caminhonete estacionada no fim da rua, dando poucos passos antes de parar de novo.

— Ei, Steve…

— Hmm?

— Valeu pelo apoio, tá? Eu não sei se ia fazer sozinha…

— Se agir como apoio moral e só ser arrastado de um canto para o outro pelas tuas ideias mirabolantes é o meu papel…

Ele levantou do banco e andou até a garota, para dar um leve soco amigável no seu ombro.

— … Então é o que eu vou fazer — riu. — Você não tá sozinha nessa, Ann.

O momento de alívio emocional reduziu a pressão dos ares ao redor do coração e, nem que por um instante, as coisas prometeram ficar um pouco melhores.

“Esses dois…”

Pouco eles sabiam, porém, que a realidade além dos tijolinhos de pedra era outra e, oculta pela árvore na esquina distante, os assistia, impaciente.

“Foram esses dois…”

Os dedos afundaram no tronco, criando cinco buracos rasos na casca e o brilho nos olhos, confuso entre a luz do dia e o local de esconderijo escolhido, anunciaram com seu tom as vozes do coração.

Verde-esmeralda, a brilhar em rios de pura fúria.

[...]

— Heh! Tomara que isso acabe fazendo aquele pessoal se demitir e contratem uma nova empresa! Eu já não suporto mais a comida do refeitório…!

As aulas em Arrowbark High tiveram de ser paralisadas pelo restante do dia, quando, desde alunos a funcionários, reportaram estranhos e similares sintomas.

— Dependendo do resultado da investigação, pode ser que aconteça isso aí mesmo! Abaixo à comida venenosa do refeitório!

Dores de cabeça, dificuldade de lembrar eventos recentes e fraqueza. Tais manifestações foram de curta duração e menos de uma hora depois das primeiras notificações, a maioria já havia voltado ao “normal”.

Entre aspas, pois ainda não se lembravam de qualquer acontecimento entre o fim das aulas e o final do horário de almoço.

— O que você acha, Rebecca? Tá meio quieta hoje… ainda tá passando mal?

Parte dos estudantes já foi mandada para casa, fazendo do espaço um lugar mais silencioso. Na ocasião, faltando cerca de uma hora para o fim oficial do dia, restavam cerca de dez outros, além delas três.

— Argh, nem me fale…! Ainda tô me sentindo um pouquinho tonta… Vou passar no banheiro e molhar o rosto…

— Vai nessa, Rebecca! Só toma cuidado para não tropeçar!

As duas trocaram risinhos a respeito dela, ouvidos mesmo à distância.

“Heh… Esses personagens terciários na minha vida…”

A passagem pela porta foi fácil e bastou dizer que precisava vomitar para ser liberada. 

— Um ponto a menos para o almoço lixo dessa escola… — suspirou com um sorriso no rosto, ao entrar no banheiro feminino.

A história em si não passou de uma grande mentira, uma desculpa para fazer algo distante de quem tanto se mostrava ser em frente àqueles vários pares de olhos.

— Ora, ora! O que temos aqui! Se não é minha amiguinha Hailey!

— … Eh…? — Por um momento, a menina soou surpresa. — … Rebecca…? O que…?

— Ah, nada! Eu só vim olhar se tá tudo bem, sabe? Vi você saindo e… quis ver se tá tudo bem!

Paralisia tomou a menina, baixinha e acima do peso, ao encarar o sorriso largo de Rebecca. 

A sensação em questão só podia vir de um único estímulo conhecido: perigo.

— Ah, tá tudo bem sim…! — arrumou os cabelos escuros, desviando o olhar direto na tentativa de esconder as cicatrizes de acne. — Eu… eu já tô indo agora… Eeh… Obrigada…

A fria mão a tocar-lhe o ombro a fez travar no exato momento do contato.

— Ah, só um minutinho, Harper! É que acontece uma coisinha, sabe? É bem simples, na realidade… — apertou com mais força, encarando-a diretamente nos olhos castanhos. — Se eu te perguntei se você tá bem…

O toque no topo do braço se converteu em um agarro completo em torno do pescoço em menos de um segundo inteiro.

— … É porque eu acho que não deveria…!

Rebecca abriu a torneira mais próxima na vazão máxima e, decidida, arrastou sua vítima até a pia.

— Porcos como você não deveriam estar andando por aí… Hah! Quer dizer, isso é ofender os porcos, então eu retiro o que disse!

— Socorro…! — Harper se esforçou fracamente para lutar, incapaz de gritar bem por conta da pressão em torno da garganta. — Me aju…!

— Tá precisando hidratar esse cabelo, sabia? Vamos lá, eu te ajudo com essa! Olha só como eu sou boazinha!

Com força, ela teve o rosto inteiro afundado na pia, ao mesmo tempo que o potente jato gelado a lembrava da impossibilidade de respirar sob tais circunstâncias.

— Para de se debater…! Eu tô sendo sua amiga aqui, tá legal?!

Hmmmph…! Hmmmmmph!

— Não tô te ouvindo! Fala mais alto!

Hmmmmmmph! Cof! Cof…!

Por um curto período, foi puxada para fora da água.

— Eu não entendo essa língua de gente nojenta que nem você! Vê se aprende a falar direito!

E a tortura se reiniciou, a durar por longos e arrastados um minuto e meio.

… … …

— Eu… Cof! Cof! Eu vou contar isso… Cof! … Eu vou…!

— Conta! — sorriu em resposta. — Conta sobre mim e vê quem vai acreditar em você!

Virou de costas, como se sequer importasse a gravidade do ato cometido, confiante em si própria e na falta de energia para revidar de sua vítima semi-afogada.

Afinal, antes de ter capacidade de perseguí-la, teria de tossir toda a água de dentro dos pulmões.

— Sua… falsa… Eu… Cof! Cof! Eu… vou te… Cof!

— Poupe o seu fôlego! Descontar em você foi bom para tirar o estresse, mas, deixa eu te lembrar de algo, antes que pense em me delatar…

Superior, sua figura magnífica se reclinou para a frente, cabelos volumosos e suaves a seguir como uma nuvem se movendo no céu, somente para encará-la de frente.

— Eu não deixei marca de violência nenhuma em você, sabia? Nem digitais! — levantou a mão direita, para revelar uma fina luva de plástico. — Boa sorte tentando explicar que não foi você quem se molhou toda de propósito! Tchauzinho!

O caminho de volta à sala de aula foi igualmente pouco especial, contudo, agora, um novo pensamento “interessante” cruzava a cabeça da beldade de Arrowbark.

“Hmm…! Abigail! Sim, nós duas vamos ser grandes amigas…!”

Ao entrar na sala, voltou para o lugar ordinário, sem as duas, supostamente já distantes e decidindo já ser seu momento de ir embora, pegou os livros sob a mesa.

“Eu vou fazer questão de fazer de você a minha melhor amiga!”



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