Volume 1

Capítulo 1: O Novo Deus

O abraço gelado que queimava como fogo apertou meus pulmões, roubando meu fôlego. Sem ar, forcei minhas pálpebras a se abrirem, mas em vão. Não havia luz, apenas o frio cortante. Meu tato desaparecera, assim como os membros dormentes.

Rendi-me à escuridão sem esperança, aceitando que a morte seria melhor do que aquela sensação agonizante. De repente, uma onda quente me envolveu, afastando o gelo como uma lareira no inverno. Minhas pálpebras pesadas cederam quando a consciência despertou aos poucos.

Abri os olhos para o branco implacável. Onde estou? Tateei ao redor, sentindo o cobertor macio sob meus dedos. Esse não é o meu quarto. Não tenho uma cama tão confortável, nem lençóis de cetim.

Levantei-me cambaleante, segurando o fino tecido contra o corpo nu. O local se estendia infinitamente, tão branco que meus pés mal projetavam sombra. Algo se movia no horizonte, aproximando-se como uma miragem oscilante. Um homem de sorriso radiante acenava, vestindo roupas de praia fora de época.

— E aí, parceiro! — ele gritou com entusiasmo, estendendo a mão.

Travei, desconcertado com a presença do estranho. Seu sorriso murchou diante do meu silêncio.

— Hum, talvez eu tenha me empolgado um pouco... — Retraiu a mão, agora incerto.

Desencontrados, nos nós encaramos. As roupas dele contrastavam com o branco ao redor e eu não tinha nada. Como não tenho nada?! Onde estou?! Um sonho?

— Que horas são? — perguntei, lembrando de um truque para acordar de sonhos lúcidos.

Ele piscou, confuso.

— Como assim?

Não funcionou. Frustrado, olhei ao redor, buscando alguma pista na paisagem vazia.

— O que você está fazendo? — perguntou o estranho.

Suspirei, tentando manter a calma.

— Vi em um vídeo que perguntar as horas faz você acordar de sonhos. Pensei que fosse funcionar…

Seu rosto se contorceu em uma careta estupefata.

— Você acha que está dormindo?

Assenti, hesitante. Ele esfregou o rosto, aparentemente organizando os pensamentos.

“Perguntar as horas deveria funcionar para acordar dos sonhos. Os vídeos da internet haviam mentido para mim?”

O estranho me encarou, tentando decifrar minha confusão.

— Você acha que está dormindo? Escuta aqui. Você... — ele começou, mas parou no meio da frase, congelando por um instante. — Você não lembra de nada, lembra?

— Nada sobre o quê? — perguntei, confuso.

Sem aviso, ele agarrou meus ombros com força, me fazendo sobressaltar. Seu sorriso se alargou de repente.

— Ei, o que está fazendo? — Tentei me soltar, mas seu aperto era firme.

— Relaxa, isso vai doer só um pouquinho...

“Espero que eu tenha pensado errado…”

Ele recuou a cabeça e a chocou contra a minha. Cambaleei para trás, massageando a testa latejante. 

— Uau, que vida chata... — murmurou o desgraçado, com o olhar perdido no vazio.

Fiquei massageando a testa, atordoado e furioso com a agressão gratuita. Na confusão, o pano na mão escorregou, me deixando completamente exposto. Você é maluco? Por que fez isso?

— Ai! Você é maluco? — Tapando as partes baixas com ambas as mãos.

Ignorando minha dor e nudez, ele sorriu, eufórico.

— Acho que somos sortudos, rapazinho!

Seu sorriso se alargou além do naturalmente possível. Tropecei para trás, assustado. Seria algum pesadelo bizarro?

Ele parou, ficando sério de repente.

— Ainda acha que está sonhando? Isso aqui é a realidade!

Como vidro estilhaçado, o mundo branco se fragmentou em fendas. Ele gargalhou, um som sobrenatural que fazia tudo estremecer. Minhas pernas bambearam, ameaçando falhar. Por fim, sua risada cessou.

— Nos encontraremos lá embaixo...

O chão estalou e se partiu sob meus pés. O estranho e eu despencamos lado a lado no abismo que se abrira. Um grito agudo rasgou minha garganta quando a escuridão infinita nos engoliu. Era real, incrivelmente real. 

A vertiginosa descida continuou na escuridão sufocante. Em desespero, implorei por salvação. A cada segundo, a sensação de morte se aproximava.

De repente, irrompi em um céu noturno estrelado. Não, era o espaço sideral. Olhei para o estranho, surpreso por sua expressão tranquila. 

A queda vertiginosa continuou interminável, apenas o vazio sufocante. Lágrimas escorriam pelo meu rosto, levadas pela velocidade e diferença de peso. Meu estômago revirava com a sensação da gravidade puxando para baixo.

Em pensamentos desesperados, implorei por salvação, por aquilo acabar. Mas a cada segundo a agonia só aumentava, minhas esperanças se esvaindo como areia entre os dedos. Meus membros formigavam, entorpecidos e dormentes. Meu coração parecia querer explodir, tamanha a adrenalina. A visão embaçada pelas lágrimas dificultava enxergar algo na escuridão.

De repente, como se atravessássemos uma cortina, o breu deu lugar a um céu noturno pontilhado de estrelas. Não, não era o céu. Estávamos no espaço!

Virei-me para o estranho, incrédulo por sua expressão serena enquanto despencávamos pela imensidão. Como podia estar tão calmo?

À nossa frente, um ponto vermelho foi ficando maior, revelando a superfície de um planeta desconhecido. Fomos atraídos por sua gravidade, mergulhando em direção à atmosfera. O atrito do ar foi como uma explosão, fazendo meus ouvidos zunirem.

Em alta velocidade, fomos em direção ao solo árido. O impacto veio com estrondo ensurdecedor, erguendo uma nuvem de poeira avermelhada. Tossi, deitado em uma cratera com a silhueta do meu corpo. Inacreditavelmente, não havia nenhum ferimento.

Tremendo muito, me levantei e cambaleei para fora do buraco. O medo da queda ainda ecoava em meu peito, dificultando andar com pernas bambas. Avistei outra cratera próxima, onde o estranho jazia tranquilamente de braços cruzados, com as pernas afundadas na terra.

— Como que… — Minha voz escapou, carregada de perplexidade.

— Você tem uma pergunta sobre como eu parei aqui ou como saímos ilesos da queda? Só vou responder a uma delas.

Ele começou a flutuar vagarosamente, seus pés deixando o chão enquanto ele se elevava no ar. Meus olhos se arregalaram quando ele emergiu do buraco, pairando a alguns centímetros acima da superfície. Abaixo dele, a terra vermelha tremulava e se movia como areia viva, preenchendo os buracos em forma de perna até não restar vestígio de sua cratera. Em questão de segundos, era como se ele nunca tivesse caído ali, o chão completamente liso e intacto.

— Como...?

— Não fique tão impressionado com algo tão básico — disse ele com um sorriso de canto. — Com o tempo, você vai aprender isso também.

Ele levantou a mão direita, os dedos longos se movendo no ar como se traçassem a forma de um objeto. Logo, linhas surgiram no ar, faíscas de luz condensaram em um clarão e um objeto retangular apareceu.

Meus olhos se arregalaram. Ele acabou de materializar um livro do puro nada!

— Pegue — falou, oferecendo o objeto recém-surgido.

Hesitei por um instante antes de esticar a mão e sentir o peso do livro. Passei os dedos pela capa de couro surrada, ainda sem acreditar no que via.

— O que é isso? — perguntei, franzindo o cenho.

— Um livro — Veio a resposta irônica, seguida de um meio sorriso.

Revirei os olhos pela previsibilidade.

— Eu sei que é um livro. Quero dizer, o que tem dentro dele?

— Ah, só um monte de regras chatas e umas dicas para evitar uma morte idiota — disse ele, dando de ombros com descaso. — Na real, nada de emocionante.

Por seu tom despreocupado, suas palavras intrigantes pareciam contraditórias. Analisei o livro, ponderando sobre suas intenções. Virei a capa, e meu olhar foi atraído para o título gravado nela. Uma onda de surpresa me invadiu.

— Acho que você me deu o livro errado... — Minha voz vacilou, uma centelha de esperança dentro de mim desejando que aquilo fosse um engano.

— Não foi erro nenhum. — Um sorriso enigmático dançava em seus lábios.

Uma sombra passou por meu rosto. Aquilo não podia estar acontecendo... Parecia algo tão insensato.

— Deve ter havido alguma confusão no processo, eu não... — Comecei a balbuciar, desespero transparecendo em minha voz.

— Nada disso! — Ele interrompeu com um gesto decidido. — A escolha é irreversível. Você está vinculado a este mundo agora, você é o sucessor.

Sucessor? A implicação daquela palavra lentamente se infiltrou em minha mente.

— Sucessor? O que isso significa exatamente? Por que justo eu? — indaguei, confuso e assustado.

Ele soltou um suspiro cansado, uma sombra cruzando seu rosto.

— Há certas coisas que não posso explicar agora. Apenas saiba que ao tirá-lo daquele vazio, pude concluir meu dever e partir mais cedo. Sinto uma mistura de gratidão e culpa. — Ele apontou vagamente para o céu estrelado. — Os grandões lá em cima estão observando, então meu tempo é limitado.

Com um gesto casual, ele fez um tecido branco materializar-se no ar. O pano foi lançado na minha direção e rapidamente cobri-me.

— Espere! — exclamei, ainda trêmulo. — Isso é tudo que vou receber depois de passar por essa queda traumática? Pensei que fosse morrer!

Ele balançou a cabeça, seu semblante ficando sério.

— Você não entenderá... Pelo menos, não agora.

Franzi o cenho, tentando decifrar as camadas ocultas de suas palavras. Seu olhar sério permaneceu fixo em mim.

— E faça o que quiser, desde que não contrarie as regras do livro. Eu realmente insisto que você não as quebre.

— Certo. Não as quebrarei... — Minha resposta brotou imediatamente, impulsionada pelo medo do que ele poderia fazer.

— Bem, acho que é isso, então... adeus. — Antes que pudesse sequer piscar, ele se desvaneceu com um sorriso dançando em seus lábios.

Era como se alguém tivesse desligado um holograma. Sua existência era real ou apenas um produto da minha mente? Não sabia, não fazia ideia do que estava acontecendo.

Sozinho no vasto deserto vermelho, livro apertado entre meus dedos e um pano  enrolado em volta da cintura, a imensidão do planeta desconhecido diante de mim provocou uma pontada de temor. Meus lábios curvaram-se involuntariamente em um sorriso de desespero.

— Vai pro inferno! — gritei com fervor, lançando o livro para longe. — Eu nem faço ideia do que diabos está acontecendo aqui!

Chutei as pedras e a terra à minha volta, soltando palavras de descontentamento, deixando meus gritos ecoarem pelo deserto. Minha frustração se manifestou em um tumulto de gestos e sons, uma erupção de raiva que não encontrava eco. Ninguém estava por perto para oferecer ajuda; não havia perspectiva de auxílio à vista.

Minha mente oscilou para minha família e amigos. Como estariam eles? Sentiriam minha falta? Espere...

— Eu tenho família? Por que não consigo me lembrar?

As palavras trocadas com ele irromperam como um raio em minha mente, uma onda de angústia me envolvendo. “Não, ele não pode estar se referindo a isso...” pensei, estremecendo com a terrível possibilidade.

Com urgência, minhas pernas me levaram até onde o livro repousava na areia. Ajoelhei-me apressadamente, envolvendo-o com mãos trêmulas. Meu olhar prendeu-se ao título gravado em letras douradas: Fundamentos dos Comportamentos Divinos e Regras do Cosmos. A esperança de resgatar minhas memórias perdidas parecia uma tênue luz em meio à escuridão.

Com uma mistura de expectativa e apreensão, deslizei os dedos pelo caderno, abrindo-o no meio. À medida que as páginas eram viradas, uma tapeçaria de tinta preta, tão densa quanto a noite mais profunda, se desdobrava diante de mim. Folheei algumas delas, mas o preto denso dominava cada página. Voltei ao início do caderno e minha atenção se fixou na primeira página em branco, suas letras vívidas contrastando com o vazio das páginas anteriores.

Meu querido(a) sucessor(a),

Não ficarei de enrolação, serei direto. Sou o tal “deus” que cuidou desse universo por um bom tempo, mas agora chegou a sua vez de assumir o comando.

Esse objeto que tá em suas mãos é mais do que apenas um monte de páginas pretas. É um guia pra você, um manual de sobrevivência. Eu sei que pode parecer chato pra caramba, mas relaxa, é importante.

Nessa série de páginas, você vai encontrar uma porção de coisas malucas, desde a maneira de se portar com outros deuses até umas dicas espertas de como lidar com aqueles seres que vão te dar uma dor de cabeça de vez em quando. E olha, acredite em mim, esses seres vão te deixar maluco, literalmente.

Eu não sou o tipo de “deus” que gosta de se levar a sério demais, então não espere uma leitura super pomposa e cheia de palavras difíceis. Tentei deixar o texto mais fácil de entender, jogando umas gírias aqui e ali. Afinal, se eu tô passando o bastão pra você, é bom que a gente se entenda, né?

Ah, só mais uma coisa antes de você mergulhar nessa jornada doida: esse universo é seu agora. Faça o que quiser com ele. Se quiser criar umas coisas novas como planetas, estrelas ou buracos negros, ou até dar uma festa cósmica com estrelas como fogos, o poder tá nas suas mãos.

Ps: Sua memória foi retirada por mim. Caso queira ela de volta, vá para a “Sociedade Divina” e procure por mim pelo meu apelido, Deus Despreocupado.

— Isso é um completo absurdo! — Minha voz estremeceu no vazio do planeta, uma mistura angustiante de raiva e perplexidade. — Eu não quis isso, não fiz nenhuma escolha! Como podem simplesmente me lançar nesta situação? Eu... quem diabos sou eu?

Enquanto as palavras saíam de mim com a fúria do meu desabafo, uma percepção dolorosa se apoderou de mim, como um vácuo desorientador. Meu nome, minha vida... agora, eu não tinha certeza de quem eu era. Tudo parecia se dissolver na névoa do esquecimento.

“Quem sou eu?”

O questionamento ecoou em minha mente, carregado de uma desesperança profunda, como se as respostas estivessem se afastando para além do alcance.



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