Volume 1
Capítulo 03: O Elo Fraco
— Ordem!
O grito de um dos oficiais ecoou pelo salão onde os trios de postulantes a membros oficiais de grande parte dos clãs de Anfell—grandes ou pequenos, novatos ou veteranos—se apresentavam. A situação deixa Haru estranhamente calmo. Talvez nostálgico? Não, afinal, ele nunca deixou de ser um soldado.
O recrutado não precisou virar seus olhos ou cabeça; sabia exatamente onde cada instrutor estava. Muitos estavam olhando a pulseira de ferro em seu braço direito. Ele mantém a postura de continência, mas seu olhar direcionou à Laki por um momento.
—“Eu sei quem vai ter as honras de servir ao reino e quem não...”-ela sussurrou imitando o oficial—Bem confortante, não é?
—Consigo sentir a tensão no ar…—Grimm murmurou em meio a um bocejo. —Alguns clãs pequenos, talvez?
—Acho que a gente tem outras preocupações, além de ficar especulando sobre os outros…—Haru interrompeu, mantendo seu olhar fixo no instrutor ao norte.
Laki manteve o sorriso de praxe ao ouvir Haru, enquanto Grimm deu de ombros. Seus olhos percorreram os presentes. Conforme escutava o que o oficial dizia, concluia: muitos estavam nervosos. Entre eles, alguns também usavam a mesma pulseira de ferro. O preceptor não falava da capacidade ou nervosismo—falava de mérito. “Então entre as ovelhas há as de sangue puro e as mestiças, isso é só para separar quem merece ir pro abate e quem vai ser abatida...” O recrutado fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, vê uma placa de mitrío ser entregue por um dos guias.
Ao passar o metal por entre os dedos, viu uma pequena fagulha acender no topo. Ao virá-la, pequenas nuvens se formam, carregadas com raios que caíam sobre a superfície. O mitrío era o metal mais valioso entre os clãs, matéria prima de armas e munições, conhecido por ser um forte reagente de mana. As lendas dizem que o minério liga a criação ao reino dos mortos. Histórias contavam das correntes que prenderam Mors, Deus da Morte entre os Doze, sob as ordens do Serafim, como auxílio ao Primeiro Rei.
—Uma combinação rara —comentou Laki curiosa, olhando a placa do seu companheiro.— “Aquele que controla o fogo e o raio está destinado à coisas grandes”, não é?
—Isso é de um conto infantil, certo? —Haru lembrou da história que seu pai contava na infância.
—O conto de Agni e Rudra…—ela ajeitou a placa na sua mão, mostrando-a para Haru.— Vento e fogo. Não é tão especial, mas parece que nós três somos compatíveis.
A placa de Laki tinha alguns cortes sucessivos em um lado. Já a de Grimm parecia desfazer como areia caindo de uma ampulheta, indicando que dominavam ar e terra, além do fogo, pelas faíscas no lado oposto da placa. Um oficial passou, perguntando as classes deles, nomeando Laki como Rogue e Grimm um Rear. Haru foi ignorado após um breve olhar na pulseira.
—Nem todos os clãs acolhem recrutados para a seleção, então não ache que é pessoal —sussurrou Grimm devolvendo a placa de mitrío. —A prática foi manchada por outros reis com a chamada “limpeza”.
—Limpeza?
—Muitos clãs recrutam presos, mas não para a seleção, mas sim em missões diretas para morrer.—Grim responde a curiosidade do novato.— Isso, vai contra ao protocolo, mas a prática não é considerada criminosa.
Haru não sabia se devia se considerar sortudo, mas não se importava. Todos foram dispensados, recebendo placas junto às chaves para seus dormitórios. Teve a impressão de ouvir o instrutor principal chamá-lo de lixo quando passou por ele. Parou por um momento, mas subiu as escadas em silêncio. No quarto, observou a cama e as estantes abarrotadas de livros, que faziam o cômodo parecer menor do que realmente era.
No dia seguinte, Grim acordou mais cedo para chamar seus companheiros. Ao ver uma porta entreaberta, tomou a liberdade de abri-la. Encontrou Haru cercado de torres de livros ao redor da cama. Um dos pilares desabou quando o recrutado percebeu sua presença.
—Pois não? — ele perguntou curioso, com três livros na sua frente sobre o lençol.
—Não sei se fico admirado ou acho loucura.— comentou Grim, olhando para os escritos caídos. Questionou se valia a pena arrumar aquilo no pouco tempo que tinham, mas desistiu com um balançar de cabeça.
—Pela sua expressão, pode me chamar de louco. —Haru respondeu, fechando rapidamente as últimas páginas e organizando os livros em colunas menores. Levantou-se da posição de lótus para pular para fora da cama.— Não espero elogios tão cedo.
—Disciplina é o mínimo que esperamos, então está certo de não esperar.
—Diz isso, mas esqueceu de colocar a identificação. —Haru apontou para plaquinha com o número 33 na própria camisa, Grimm então entendeu para que servia a placa ser removível do chaveiro.
Enquanto Grimm se distraiu abotoando a identificação, o novato calçou seus sapatos e se dirigiu ao corredor. O Dragão Negro protestou.
—Ei! Onde pensa que vai?
—Ao Hall da academia, oras —respondeu o recrutado, parando no meio do corredor.
—É bom que seu coração esteja no lugar. —Grimm apontou para o relógio na parede. —Mas você está adiantado.
—E daí?— o ex-detento enfiou as mãos nos bolsos.
—Parece que você nem dormiu!
—O que te faz pensar nisso? —Haru deu de ombros, voltando a andar.
—Pelos Doze... E eu aqui tentando ser gentil com você. —Grimm acelerou o passo e parou na frente do parceiro. —Seu jeito está começando a me irritar, e você não parece saber seu lugar! Um conselho: se mantenha realista.
—Ontem você disse para não atrapalhá-lo —os olhos azuis-cerúleos do recrutado fitaram os negros do rapaz na sua frente. —Só estou obedecendo sua ordem. Afinal, disciplina não é essencial?
Grimm respirou fundo para manter a calma. O relógio marcava sete da manhã. Ele nem havia encontrado Laki ainda — como já podia estar irritado? Seguiu na frente de Haru, que o acompanhou num ritmo mais lento. O recrutado notou que o Dragão Negro era alguns centímetros mais alto e que seus cabelos escruros estavam sempre despenteados, contrastando com sua pele negra clara e estrutura corporal alinhada e maciça. Ele se perguntou o quão árduos deveriam ser os treinos dos Kaiser Drache.
—Bom saber que tivemos a mesma ideia! —a voz zombeteira de Laki os encontrou antes mesmo de chegarem no último degrau das escadas para o hall.— Tenho que admitir que os alojamentos são mais confortáveis do que eu esperava. Se dormisse mais, teria perdido o horário.
—Você consegue dormir até no chão frio, Laki. —resmungou Grimm
— Vou aceitar isso como um elogio — ela sorriu e virou-se para Haru. — E você? Espero que os roncos dele não tenham te acordado.
— Ficamos em quartos separados — respondeu Haru, olhando estranhamente para o veterano.
— Acredite, às vezes dá para ouvir os roncos dele do fim do corredor — Laki comentou, falando alto o suficiente para ecoar.
— Isso só foi uma vez! — Grim pigarreou, constrangido, cruzando os braços.
— Sei... — Laki riu discretamente, dando uma leve palmada no ombro dos dois. — Vamos encontrar um canto para esperar! Ainda temos tempo até o teste escrito.
— Quem te colocou no comando? — resmungou Grim.
—Alice, inclusive, ela fez isso na sua frente, lembra? —o tom brincalhão de Laki fazia ela parecer mais jovial do que aparentava. Haru se viu estranhamente admirado.
— Te colocar como porta-voz não é o mesmo que ser líder.
— Vamos antes que ele nos atrase, Haru — ela disse, puxando-o levemente. Ambos ignoraram Grim.
—Ei!
Laki andava de forma despreocupada. Diferente de Grim, até a maneira como mantinha as mãos presas atrás das costas demonstrava isso. Era evidente o quanto eram opostos. Ela representava a leveza possível; ele, a seriedade exigida pelo clã. A garota puxou uma fita do bolso e amarrou o cabelo em um rabo de cavalo improvisado. Nas orelhas, um pequeno piercing em formato de flecha atravessava a cartilagem de ponta a ponta.
Sentaram-se no chão, encostados na parede leste do local, aguardando os demais membros descerem. Haru logo percebeu Laki se aproximar.
— Você disfarça bem, mas está tenso — ela sussurrou, mantendo o olhar à frente
— Não há com o que se preocupar — respondeu ele, fechando os olhos e encostando a cabeça na pedra fria.
— Se dissesse isso ao brutamontes do seu lado, poderia até funcionar. Mas já percebeu que somos diferentes, não é? — ela meneou a cabeça em direção a Grimm.
— Isso não muda o fato de que vocês preferiam não ter um recrutado no time — disse Haru, sério, mesmo de olhos fechados.
— Não vou mentir. Afinal, você espera honestidade de nós — ela respondeu, abraçando os joelhos. — Mas se Alice te escolheu, é porque acredita que você consegue. Isso já me basta.
— Você soa confiante demais.
— Não somos o único grupo disfuncional aqui, vai!
— Disfuncional não é bem a palavra que eu usaria — murmurou Haru, expirando o ar em um suspiro calmo.
— Quero fazer o nosso grupo funcionar. Se isso ajudar, saiba que, desde já, confio em você.
“Quando foi a última vez que eu ouvi um ‘eu confio em você’?” Haru se questionou naquele momento. A confiança dela foi transmitida, e toda a tensão pareceu sumir. Ele acenou com a cabeça, aceitando o desejo de Laki. Logo foram chamados para a prova escrita em uma das salas laterais do hall de entrada. O primeiro passo do antigo prisioneiro havia começado.
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