Volume 2
Capítulo 9: Mate ou morra
A luz oscilante do poste elétrico revelava cada meticuloso detalhe da figura misteriosa. Um homem, com a coluna curvada, escondia parte de sua altura imponente. Os braços descobertos, expostos por uma simples regata, exibiam um porte físico mediano — magro, mas com alguns músculos definidos. A barba rala decorava o rosto de pele lisa. A ausência de marcas de expressão ou rugas reforçava a suspeita de que o desconhecido tinha entre 18 e 30 anos.
Exibia um corte de cabelo simples, raspado. Os fios pretos seguiam a mesma tonalidade do esboço de barba. Apesar da aparente normalidade no topo da cabeça, foi rápido encontrar o primeiro motivo para o nó na garganta de Edward.
O lado direito do rosto do misterioso ser estampava um detalhe grotesco: do canto da bochecha, próximo à altura do olho, um corte diagonal descia até a ponta do lábio. Nenhuma gota de sangue escorria da ferida. Ainda assim, o pequeno diâmetro da abertura era suficiente para intimidar qualquer um que tivesse o azar de encará-la. Um tom de vermelho escuro preenchia a profundidade do ferimento — a carne parecia vazar. Parte do lábio fora arrancada, e mesmo com a boca fechada, o formato de um dos dentes frontais escapava à mostra.
Desviar o olhar da assustadora face surtiu pouco efeito, o homem de ponta a ponta exalava ameaça. A regata branca possuía grandes manchas de sangue, como uma violenta estampa. Utilizava da cintura para baixo uma calça jeans escura arruinada por severos cortes próximos a barra — a vestimenta aparentava ter sido rasgada à força.Como se não bastasse, nenhum calçado cobria seus pés. Por isso, fora possível vislumbrar um outro detalhe que embrulhava seu estômago: um buraco, feito aparentemente por uma faca ou um tiro, em cada peito do pé.
Toda a rápida análise, resultava no escorrer de um gélido suor no rosto de Edward — reconhecia a improbabilidade de se livrar facilmente de tal situação.
Mesmo que o perigo parecesse encará-lo no fundo dos olhos, o garoto compreendia que talvez outro pedido de ajuda estivesse diante dele. Longe de revelar suas inseguranças, mantinha a postura ereta e, ao cruzar os braços, insistia em sustentar uma máscara de segurança.
— O que quer? — disse Edward forçando um pouco a voz.
— Uau… — Entortava levemente a cabeça para a esquerda dando um alto gargalhar. — Me chamo Chris, é uma pena você não ter reparado em minha presença… fiquei o dia te seguindo. Entendo, a garotinha era tão importante que você sequer prestou atenção no movimento do parque.
A nova informação esfriava muito mais que o suor de Edward — num estalo, seu coração parecia bombear frieza por todas as veias. Em sua mente, revia cada passo dado do parque até o fim da aventura, contudo a certeza de que em nenhum momento sentira a presença de Chris tornava ainda mais densa a nevasca que contaminava seu corpo.
Instintivamente, a luta contra os próprios anseios fazia com que o garoto apertasse os braços com força, usando os próprios pulsos. Restava-lhe apenas consumir a desgostosa ideia de que ainda estava longe de extrair por completo seu dom.
Chris, por sua vez, utilizava dos pequenos gestos de incerteza de Edward como incentivo para prosseguir com sua abordagem.
— A briga foi feia com a mãe da garota… Deixou ela te dar um tapa — ria outra vez, dessa vez mais alto —, foi engraçado, tenho certeza que você se borrou ali né?
— Viu tudo de camarote? Então sabe bem que consegui levar ela para o outro lado! — Retrucou relaxando um pouco o apertar dos braços.
As últimas palavras escutadas trouxeram a certeza de que Chris insistiria em fazer com que perdesse seu controle emocional — um conflito ardiloso já havia se iniciado.
— Realmente você não me viu, né? Estava logo na frente de vocês, observando tudo pela janela — falou apontando para o próprio olho. — E aí, para onde você a levou? Será que de fato a ajudou? Já parou para pensar sobre isso, pirralho?
— Está com inveja? Também posso te ajudar…
O semblante risonho foi abruptamente arrancado do rosto de Chris e transferido para o de Edward. Insatisfeito com o desempenho do pirralho, aquele que antes tanto debochava da situação percebeu que precisava adotar uma nova atitude.
Vagarosamente o espírito iniciava sua caminhada até o garoto. Cada pegada fantasmagórica, sobre o piso duro de concreto, crescia gradativamente a coluna de Chris. Edward desfazia o enlace dos braços e em sequência tentava erguer ainda mais a postura — mesmo que impossível, precisava crescer tanto quanto ao intimidador fantasma.
Bastaram alguns segundos para que Chris encontrasse a posição desejada — a apenas um palmo do corpo do garoto. Durante todos os assustadores movimentos do espírito, que alongava os ombros e a cabeça de forma brusca, Edward fazia questão de manter o contato visual com o olho de Chris, mesmo que agora este estivesse alguns centímetros acima de sua altura.
O jovem ignorava qualquer sinal de receio que seu corpo esperneava, necessitava continuar com seu convencimento.
— Mais uma vez… o que você quer? — O pequeno, mas valente garoto empinava ainda mais o nariz.
A ferocidade do olhar de Ed, resultado da crença de que ainda estava sob controle da situação, evaporou com um simples gesto do espírito à sua frente. Chris, em alta velocidade, desferiu um soco direto na região do coração do adolescente. No entanto, nenhum tipo de dano alcançava o rapaz — o fantasma propositalmente controlava sua presença a fim de atravessar o corpo de seu alvo.
— Já parou para pensar o que aconteceria se um espírito propositalmente aumentasse sua presença em uma situação como essa? Será que eu abriria um puta buraco no meio de seu peito? E se… — Recolhia um pouco o braço e movia lentamente a mão por dentro do organismo de Edward. — Minha mão chegasse em seu coração, o que aconteceria se eu apertasse ele? Você sabe bem que posso controlar quando sou tangível para vocês ou não… — Recuperava o sorriso confiante de antes, ao passo que dava dois pequenos petelecos com a outra mão no meio da testa de Edward.
Pouca força havia sido depositada nos dedos de Chris, porém ainda fora suficiente para destruir qualquer segurança criada por Edward. O fantasma evidenciava o quanto poderia afetar diretamente a integridade de qualquer ser vivo, resultado do total controle sobre sua natureza.
Após sentir o riscar do dedo em sua pele, Edward, cabisbaixo, buscou verificar se ainda estava com o peito atravessado pelo braço — e em um instante, veio a assustadora confirmação. Ainda que os movimentos da mão de Chris, mergulhada em suas entranhas, não surtissem qualquer efeito físico, o medo de perder a vida com um simples estalar de dedos consumia por completo seu ser.
Agarrado ao cerne do instinto de sobrevivência, Edward aplicou toda a força em cada sola dos pés. Em uma explosão de energia, tentou empurrar o próprio chão e, sem qualquer resistência, lançou seu corpo para trás num salto. Conseguiu se afastar do alcance dos braços de Chris. Todavia, a falta de cálculo em seus movimentos resultou numa queda seca — falhou em pousar com precisão.
O quadril encontrou o chão duro. Embora desconfortável, pouco importavam suas trapalhadas: Edward apenas queria verificar, com movimentos acelerados de mãos trêmulas, se havia algum tipo de ferida em seu peito.
— Acho que entendeu o quanto corre perigo! “Como ele sabe fazer tudo isso? Onde ele aprendeu?" Tenho certeza que está se matando perguntando isso — disse Chris golpeando a própria testa com um tapa. Ainda risonho, prosseguia com a constatação. — Vivi por 2 anos por este limbo, uma hora aprenderia mais sobre!
Edward encerrava a desesperada verificação e logo retrucava sem qualquer resquício da postura segura que tanto forçava.
— Que merda você quer? — sem qualquer controle de sua voz, o garoto questionava apoiando a mão no chão em busca de se levantar outra vez.
— Nada… só te achei interessante. Quando tenho um alvo em mente, vou até o fim. Deixa eu te contar uma história… — Esbanjando naturalidade, sentou-se ao chão com as pernas cruzadas a fim de relatar específicos acontecimentos.
Toda a cautela, e ao mesmo tempo perversidade, das ações do espírito traziam o incentivo perfeito para o garoto recalcular seus planos. O amargor contaminava seu paladar, necessitava deixar de lado a ideia de ajudar o espírito para planejar uma fuga.
Já de pé, Edward desviava o olhar freneticamente, buscava analisar o ambiente ao seu redor. Então percebeu que, logo ao lado de onde a conversa acontecia, havia uma grande residência cercada por um alto muro de madeira clara. O portão de entrada estava próximo, entretanto, tentar despistar o espírito ali poderia apenas complicar ainda mais a situação.
Caso optasse por correr em linha reta, teria que atravessar dois sinaleiros até alcançar sua casa. Possuía capacidade para fazer o trajeto com rapidez, e, uma vez lá, poderia recorrer a instrumentos e textos rituais específicos. Todavia, o risco era alto: se falhasse em dar fim à ameaça, revelaria onde ele e sua família moravam.
“Preciso dar um fim nele antes de chegar em casa. Que merda, Scarlet, eu precisava da sua ajuda!” Pensava o garoto, ainda atento aos detalhes do cenário, alheio à história que Chris continuava a contar.
— EI, OLHE PARA MIM! — gritou o sobrenatural, reparando na postura recuada e analítica de seu alvo. O alerta gerava a rápida mudança de foco por parte de Edward. Quando reparou na colaboração do rapaz decidiu continuar com a fala. — Edward, vou te dar uma dica valiosa: não tente aprontar comigo… O único que pode decidir o que será de você aqui, sou EU! — Deixava de lado qualquer trejeito risonho, os olhos pretos fitavam a imagem do garoto com a precisão de um caçador.
— Desembucha de uma vez! — A pilha de nervos fazia com que o garoto respondesse de forma ríspida, pior do que o medo que sentia era o aumento progressivo de sua ansiedade. — Quer me matar?
— Vivi boa parte da minha vida rastejando por essas ruas sujas. Fiz meu nome, cresci junto com os meus… Sempre foi matar ou ser morto. Acredita que até conseguiram me prender uma vez? — Chris relatava mantendo uma voz serena, ignorando o descompasso do garoto há segundos atrás.
Os pensamentos de Edward ainda se mostravam nebulosos quanto a seus próximos passos, mas a insistência de Chris em revelar o tamanho de seu próprio ego se mostrava como a possível arma para combater tamanha ameaça. “Se acalma seu merda! A chance vai aparecer”, martelava a intenção em sua mente no mesmo tempo que enfiava as mãos nos bolsos da calça — uma ferramenta para deixar de averiguar o quanto seus batimentos estavam acelerados, como comumente costuma fazer quando a ansiedade batia na porta.
“Preciso te machucar onde mais dói!” Mais uma vez, percebia a importância de retomar a postura confiante e, consequentemente, escolhia bem sua resposta afiada.
— Pelo visto, você não era tão bom assim! — A voz agitada logo rebatia.
— Tsc… — Chris suspirou com irritação e enrijeceu ainda mais a fala. — Me mataram na prisão. Os porcos armaram pra mim e ainda jogaram a culpa em outros detentos.
Recordar o momento fazia com que o espírito pressionasse a própria cabeça com as duas mãos no centro do cabelo.
— Filhos da puta... vermes… não me deram chance de reagir! Todas essas minhas feridas foram culpa deles!
— Essa foi sua pena por ser um ladrão incompetente! — Edward, mesmo mantendo o mesmo rigor, via-se engolindo o seco.
— Você está errado… Essa merda doeu, mas trouxe algo bom! — Repentinamente cessava com a agressividade com o próprio corpo. — Minha alma foi atrás de cada verme… e matei cada um! Aparentemente, sempre tive uma força grande, até mesmo neste outro lado da vida… E olha que ironia Edward… matar só se tornou uma diversão depois que perdi minha vida.
As sentenças jogadas ao ar, com tanta euforia e banalidade, afirmava o quanto a alma de Chris já estava completamente perdida. O medo, que preenchia o coração de Edward, dara espaço para o surgimento da raiva. Seus punhos cerrados ansiavam encontrar o centro da face do ser intangível, no entanto o garoto ainda mantinha o foco em manter a postura.
— E tudo foi graças a ele… — De forma automática, e longe da normalidade, Chris levou as palmas até os próprios olhos, tapando-os suavemente. O timbre, ainda mais grosso que o habitual, insistia em dizer: — Me ensinou a andar pelas sombras, a espalhar sua crença e maldade… Seu conhecimento desafia a finitude das coisas…
Edward se deparava com a oportunidade perfeita de fugir, graças à visão limitada do espírito. Motivado pela curiosidade e pela repentina mudança nas atitudes de Chris, a brecha mostrava-se tentadora a ser ignorada.
— Quem é ele? — questionou Edward apertando a testa a procura de alguma resposta.
— Ah! — Exibia todos seus dentes, e, tornando a voz ainda mais grossa, dava continuidade. — Nosso verdadeiro salvador, abençoado pela escuridão e desafiante da natureza mortal… Seguindo seus passos, quebraremos este aquário! A sua força consumirá todos… TODOS! — Depositava ainda mais potência em sua voz. — Edward, você carrega um dom problemático e especial, justamente por isso devorar sua alma se mostra eficaz e delicioso.
O interesse pela estranheza havia alcançado seu limite. Edward, obrigatoriamente, agarrava o resquício da oportunidade que antes surgira — confiava na ideia de que Chris já havia dado sua sentença.
Desistiu da ideia de correr até sua casa, virou as costas para o espírito e, armado com todo o seu vigor, disparou.
— Abençoe minha caçada, Viktor! — Clamou o espírito mesmo tendo total certeza de que sua presa estava em movimento.
Edward corria entre tropeços e bufadas. Seu tênis patinava na calçada como se empurrasse o concreto para trás. “Que merda! O que está acontecendo? Ele é um demônio? Não, não se parece! Ele serve a algum?” As reflexões apavoradas desconectavam sua atenção da fuga e do percurso à frente. Por um breve instante, lançou o olhar sobre o ombro, à procura da figura que antes o ameaçava.
O ritmo já descompassado da respiração aumentava ainda mais ao perceber que nenhum espírito se apresentava às suas costas. Voltou a encarar a estrada à sua frente — precisava redobrar a atenção, pois se aproximava de um cruzamento. Desamparado, começava a perder a convicção de onde poderia vir o próximo ataque.
— “Reúno todas as energias, presentes no ar e na terra. Exploro o desconhecido, confiante de minhas raízes…” — sussurrava Edward, recitando um trecho estudado em um dos livros sobre o sobrenatural. O rito fora registrado como um gesto de proteção. Ainda em tom baixo, e com o tremor evidente na voz, seguiu dizendo: — “Vita et mors, mihi confido. Vires mali erunt— Um movimento inesperado interrompia sua fala.
Perto de finalizar a citação, Edward sentia sua mão direita ser puxada para trás. A partir de sua visão periférica conseguia averiguar a terrível cena: a mão de Chris surgia da parede amarelada — o muro de uma nova residência — e agarrava com força o pulso do garoto. Antes que ele pudesse reagir, o espírito o surpreendia com mais uma decisão brutal e inesperada. Tomado pela raiva, Chris puxava a cabeça do garoto contra a parede, segurando-o pelos cabelos — o espírito parecia determinado a arrancá-los à força.
Para o azar do assustado garoto, o puxão impedia qualquer tipo de reação. A cabeça de Edward colidia contra a robustez do muro. Chris recolhia os braços para dentro do concreto, evitando que sua mão ou antebraço amortecessem a violência do ataque. Um som seco reverberava por toda a extensão da rua. Inevitavelmente, o corpo do garoto perdia qualquer noção de movimento. Como uma árvore recém-cortada, toda a sua estrutura física colapsava contra o chão.
Desesperado para evitar um desmaio, mesmo com a visão turva, Edward, entre espasmos, tentava se erguer mais uma vez. As mãos deslizavam, assim como seus pés. Em vão. A visão tornou-se pesada e, por fim, ele adormeceu.
O espírito saía lentamente da parede, que havia usado como meio de transporte e ataque. A revelação gradual de seu corpo refletia o prazer de saborear cada detalhe de sua vitória.
— Acho que exagerei na força… que saco. Quero que veja seu próprio fim, então ACORDE!
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