Volume 1
Capítulo 19: Traição
O aposento imperial era menos um quarto do rei e mais um esconderijo. Tapeçarias negras absorviam a luz das lamparinas, tornando o ar pesado. A única claridade real vinha de um lampião de vidro verde, pendurado sobre a escrivaninha entalhada em ébano. Ali, o Imperador estava curvado — não sobre mapas de campanha ou decretos, mas sobre a pequena caixa de freixo que recebera do Genji , após o sumiço de Hécate. Dentro repousavam o mesmo anel de ouro com o brasão imperial e a carta que ele ainda não se atrevera a rasgar por completo; relia-a noite após noite, tentando extrair um caminho entre o dever e a amizade. Um suspiro escapou-lhe antes que pudesse contê-lo.
A porta rangeu. Dois toques — inconfundíveis — antecederam a voz grave de Jargal Ostrus:
— Majestade?
Sem afastar o olhar do anel, o Imperador assentiu. As portas se abriram. Jargal entrou primeiro, traje branco-escarlate impecável; atrás dele, Krista Kalivez surgia apoiada no cajado de ébano que tanto era bastão quanto arquivo ambulante de verdades esquecidas. Quando se curvaram, ele ergueu-se devagar, como quem deixasse parte da própria coluna fincada na madeira.
— Não preciso de formalidades esta noite — murmurou. — Fechem a porta.
O trinco ecoou como um veredicto. Jargal percorreu a sala com o olhar técnico de quem cataloga relíquias: pilhas de despachos ignorados, uma jarra de sangue intocada, o brasão imperial virado sobre a lareira — símbolo mudo de que ali reinava o cansaço. Krista pousou o cajado e avançou um passo.
— Perdoe a intrusão tão tardia, Majestade. Soube que dispensou a guarda.
Ele apertou o anel entre o polegar e o indicador. — Precisei… de silêncio. Mas silêncio demais acaba conversando alto.
Jargal ergueu a sobrancelha. — É sobre o garoto.
— É sobre tudo — o Imperador rebateu, a voz baixa, rouca. — Icarus, Hécate, a coroa, os ratos. Já não sei onde termina um e começa o outro.
Sentou-se na poltrona de couro, soltando o ar como quem devolve um grito ao peito.
— Vocês sabem que minha amizade com Hécate era inabalável — continuou —, mas também sabem que carrego deveres que não se desfazem com laços de sangue ou memória. Os senadores… — franziu o cenho, lembrando-se dos rostos alinhados em torno da mesa circular — …estão conspirando para matar o garoto e arrastar o nome do Primeiro Messor pela lama, só para me derrubar. Morthem, Harol, Lysa, Berion, Ilvara… cada qual afiando a própria lança nas palavras do outro.
Jargal caminhou até o centro do quarto. A toga branca ondulava como um lençol funerário. — Hécate sempre foi o escudo que mantinha esses abutres no escuro. Sem ele, Vossa Majestade sangra poder nas esquinas. Eles sentem o cheiro.
Krista aquiesceu. Os olhos rubros brilharam na penumbra. — E não jogarão limpo. Já circulam panfletos insinuando que Hécate conspirou contra o Império, que seu carinho pelo filho híbrido era apenas fachada. O próximo passo é pintar Icarus como ameaça existencial; se a corte acreditar nisso, a população seguirá. Se o garoto morrer, eliminam a faísca — e resta só a fogueira da desonra para consumir a coroa.
O Imperador passou a mão pelos cabelos — fios prateados tingidos de suor. — Eles acham que eliminar o menino me fortaleceria. Na verdade, me envenenaria. Mas não posso protegê-lo sem abrir minhas costas. Então… enviei Smael.
Silêncio. O nome pairou como lâmina suspensa.
— Smael? — Krista foi a primeira a quebrar o torpor. — O Messor mais jovem já carrega feridas demais desta briga. É exímio espadachim, sim, mas…
— Por isso mesmo — replicou o Imperador. — Seus princípios são forjados em aço. Confiei-lhe a missão de encontrar Icarus e trazê-lo vivo — de volta ou para longe, ainda não sei.
Jargal estreitou os olhos. — A não ser que ele fraqueje pelo irmão.
O Imperador pousou o anel sobre a mesa — um tilintar seco. — Eu… enviei Rash também.
A palavra “Rash” caiu como granizo. Até a chama dançou. Krista cambaleou um meio passo.
— Diga que entendi mal — sussurrou. — O Carrasco Secreto? Aquele que a Alta Corte fingiu enterrar?
Jargal engoliu em seco. — Há registros apagados de que ele foi removido dos campos por… crueldade excessiva.
— E crimes de guerra — completou Krista, a voz cristalina tremendo pelo ineditismo do medo.
— Registros apagados — reiterou o Imperador, como quem declama epitáfios. — Ele existe apenas para missões que ninguém mais aceitaria. Rash é perigoso, mas genial. Um predador que calcula ângulos onde outros só veem lâminas. Qualquer outro que eu mandasse contra Smael morreria. Rash, porém, pode enfrentá-lo… ou evitá-lo.
Krista sacudiu a cabeça, grisalhos reluzindo. — Mesmo um gênio insano continua insano. Se Rash decidir que o objetivo é a morte de Icarus, ele não vai parar até vê-la.
O Imperador apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos. — Eu sei.
Jargal se aproximou, baixando a voz para que apenas os três compartilhassem o pecado. — Então é uma ordem dupla: salvar e, se necessário, sacrificar.
— Para proteger Smael e a honra dos Karlai. — O Imperador piscou, os olhos marejados por algo que não era apenas fadiga. — Se o Senado exigir um corpo, Icarus é mais leve que o peso de toda a família sob suspeita.
Krista cerrou os punhos. — Smael jamais permitirá que matem o irmão. E se Rash falhar?
O Imperador voltou o olhar para a mesma caixa, a madeira agora marcada pelas unhas. Tocou o anel — símbolo de lealdade jurada pelos Karlai — e depois alisou a carta dobrada repetidas vezes, como quem tenta aplainar o destino.
— Então Smael pagará.
O silêncio seguinte foi grosso, quase palpável. Uma rajada de vento atravessou a fresta da janela, fazendo oscilar a chama. Jargal endireitou-se.
— Há saídas menos sangrentas. Podemos usar o voto de minoria, suspender o julgamento até a volta de Hécate…
— A cada segundo que protelamos, Morthem seduz mais um aliado — cortou o Imperador. — Já semeei dúvidas demais entre os meus. Esta decisão precisa ser rápida, cirúrgica.
Krista respirou fundo, como quem folheia mentalmente crônicas futuras para ver se encontram espaço para arrependimentos. — Se Rash concluir a missão, Hécate jamais perdoará o Império. E, se ele retornar vivo da guerra, trará o caos de volta a estas muralhas.
— Melhor um caos futuro que uma guerra civil agora — murmurou, embora a convicção soasse fina. Girou o anel sobre a mesa, observando a prata refletir tons esmeralda. Cada volta parecia raspar camadas de sua alma. — Somos monstros que domam monstros. Esqueci disso por tempo demais.
Jargal fitou Krista — um pedido mudo por alguma saída nos volumes da História. Ela sustentou o olhar e devolveu com luto: não havia notas de rodapé que salvassem aquela página.
— Então que Tenebris tenha pena de todos nós — disse ela, enfim. — E que sua lâmina permaneça firme, Majestade. Porque quando o sangue secar, seremos nós dois a escrever a crônica do que restar.
O Imperador se ergueu, a capa negra deslizando até roçar as botas. Aproximou-se da janela. Lá fora, o pátio interno dormia sob a lua, sentinelas minúsculas na geometria fria das pedras.
— Vão. Preciso reger este silêncio sozinho por mais um instante.
Jargal colocou a mão direita sobre o punho esquerdo — saudação usada apenas entre irmãos de confiança —, depois recolheu-se. Krista, antes de sair, tocou levemente a carta.
— Hécate a escreveu para o senhor, não para a coroa. Leia-a de novo; às vezes, palavras estancam feridas que lâminas só abrem.
A porta fechou-se. O Imperador manteve-se imóvel, contando pulsações que pareciam vir do mármore, não do peito. Quando julgou que ninguém mais o ouviria, soltou o lacre já partido. As linhas familiares dançaram sob a luz: promessas antigas, culpas que não podiam ser desfeitas, a esperança de que Icarus veria um amanhecer sem perseguição.
Ao terminar, a folha tremia entre seus dedos. Lá fora, o sino da Torre Carmim trovejou a meia-noite, martelando o decreto do destino. Ele fechou os olhos.
Dentro dele, a coroa já pesava mais do que o pescoço suportava — mas a coroa não caía. Ainda não.
Na escrivaninha, o anel rodopiou uma última vez e parou, apontando para o norte — a mesma direção por onde Smael havia partido. Coincidência, ou a sombra de uma vontade antiga. Não importava. O Imperador embalou o objeto na mão, agora punho fechado.
— Se este for o preço — sussurrou para o quarto vazio —, que o Império pague sem juros.
Um toque seco na porta interrompeu o ritmo contido do Imperador. Por um breve instante, achou que fosse Jargal ou Krista voltando com mais conselhos.
Girou o trinco com a ponta dos dedos e abriu apenas uma fresta — mas, em vez das vestes familiares, um capuz negro avançou junto de uma lâmina fria. O aço rasgou o tecido; um som surdo de carne se partindo ecoou no corredor. O corpo oscilou, um fio vermelho cintilou na luz … e, num segundo gesto, a lâmina recuou tão rápido quanto avançara.
Restou apenas o eco daquele corte e o silêncio pesado no aposento vazio.
Uma guerra iniciou.
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