Volume 1

Capítulo 18: Indecisão

A neblina lilás de Tenebris rastejava pelas vielas, engolindo as tochas em halos de vinho aguado. Corra, mas traga-o vivo, martelava a voz do Imperador na cabeça de Smael Karlai. O cavalo sentia a pressa; cada batida de casco soava como um tambor de guerra. E, ainda assim, o que perseguia Smael não era a ordem oficial — era a memória de Icarus sorrindo sob a luz artificial do palácio, sem imaginar o preço que o mundo cobraria daquele sorriso.

A cancela de ferro reconheceu o selo Karlai e se ergueu com um gemido de engrenagens. O vestíbulo, que antes cheirava a lenha e couro polido, agora exalava ferro quente e bile. Smael puxou a espada curta antes de pensar.

Passos firmes ecoaram pelo corredor de mosaicos. Ele viu, como num flash, o irmão criança escorregando ali de meias, gargalhando quando o pai não via. Dessa vez, só o eco das botas devolvia som.

A porta da sala de jantar rangeu. O mundo encolheu: sobre a mesa, uma bandeja de prata reluzia sob as velas quase apagadas. Nela, a cabeça de Darius — o menino que afinava o violão de Icarus, o pupilo que chamava Smael de mestre — fitava o nada com olhos de susto congelado. Gotas escuras pingavam devagar no linho branco. Ao lado, quatro palavras em tinta grossa:

Mate o híbrido ou morra.

O estômago de Smael virou chumbo. Ele apertou o cabo da espada até doer. Só permitiu ao lábio tremer quando se inclinou para fechar as pálpebras do rapaz.

— Perdão, Darius. Eu devia estar aqui. — A voz mal saiu.

Subiu dois lances até o cômodo de Icarus. A porta entreaberta rangia como se se queixasse. Dentro, livros de astronomia e tratados de música jaziam no chão, páginas manchadas de lama. O violão favorito estava partido, tampo rachado como costela aberta.

Smael ajoelhou, dedo roçando a madeira lascada. Lembrou-se do irmão, tarde da noite, dedilhando acordes otimistas demais para um Império sem sol. O silêncio agora zumbia, quase zombando: ninguém vai tocar aqui tão cedo.

A raiva subiu — não contra Icarus, mas contra cada rosto anônimo que exigia a morte dele. Smael engoliu a amargura como vinho ruim, sentindo-a queimar na garganta.

No corredor de retratos, parou diante da pintura do pai, Hécate Karlai. Os olhos escuros do velho Messor pareciam avaliar cada rachadura no filho.

— Pai… — sussurrou, a voz rouca. — Como protejo o Império e não deixo nosso sangue virar troféu?

A resposta foi silêncio — mas, por um instante, Smael quase jurou ver compaixão na tinta. Dobrou o bilhete chamuscado, guardou junto ao peito e ajustou o casaco militar. Ao descer, cada degrau rangia como prego num caixão.

A porta se abriu para a garoa ácida. Tenente Rash — uniforme cinza-ferro encharcado, capuz puxado — ergueu a mão num cumprimento militar.

— Messor Smael. Nortumbrius ordenou que o acompanhe; o Imperador confirmou. Vim ajudar a trazer seu irmão vivo.

Smael manteve a lâmina meia-alta.

— Quem pede ajuda costuma chegar antes do sangue secar. O que sabe sobre meu pai para jurar lealdade assim?

Rash respirou fundo, as gotas escorrendo pela barba curta.

— Hécate salvou minha vida durante o cerco de Emera. Não conto a muitos. Devia-lhe gratidão; agora devolvo ao filho.

Sem desviar o olhar, Rash soltou a fivela do peitoral. A lâmina de chuva escorreu pela couraça até revelar o peito nu — e ali, perto da clavícula, Smael viu a letra H gravada na pele, cicatrizada como ferro em brasa.

O Messor congelou. Aquele sinal não era tatuagem: era o vestígio de um antigo Pacto de Sangue, juramento extinto havia mais de um século. Hécate contara ao filho, numa noite em que a guerra parecia inevitável, que tal marca ligava duas vidas; se um quebrasse o pacto, o outro morreria no mesmo instante.

Rash afivelou a armadura de novo, como quem fecha um cofre.

— Foi na frente norte, quando segurávamos a linha contra os Vaikes — disse, quase num sussurro. — Detalhes depois; agora, cada minuto vale três quilômetros de vantagem para o seu irmão.

Smael relaxou a lâmina dois dedos — não por confiança, mas porque entendera o peso daquela cicatriz: se Rash mentisse ou traísse, o pacto se voltaria contra ele próprio. Ainda assim, a existência da marca levantava outra pergunta — por que Hécate selaria pacto tão antigo com um simples tenente? A resposta teria de esperar.

Smael não relaxou. O cheiro de ozônio da chuva irritava a pele exposta.

— Muito bem. — Baixou a espada um palmo. — Então fale: qual rota você acha que ele usou?

Rash abriu um mapa manchado d’água.

— Saída lógica: Cais Fantasma. Relatórios velhos citam portas rúnicas lá embaixo. Quase ninguém consegue abrir — a não ser alguém com mente feita de engrenagem.

Smael ergueu as sobrancelhas.

— Você não viu meu mapa. Como concluiu isso?

— Cruzei arquivos de manutenção: cada vez que a energia falha na ala leste, sensores indicam pulsos nos túneis do penhasco. Isso acontece desde a noite da fuga.

— Para meu irmão isso não seria obstáculo — respondeu Smael, tirando o mapa que Plastissax havia lhe dado dobrado do bolso interno. — Quando estudava na Academia, Icarus resolvia trinco lógico como quem assovia. Professores o chamavam de gênio. — Suspirou, baixando a voz. — Seu maior defeito era acreditar que toda mente brilhante também tem coração bom.

Rash sorriu de canto.

— Isso o torna perigoso… e precioso.

Smael dobrou o mapa.

— Não me dou ao luxo de dividir forças hoje. Você vem comigo. E, se puxar a espada contra ele, viro-a contra você.

— Justo. — Rash falou sem hesitar. — Deixei dois garanhões selados. E pedi ao estaleiro do porto sul que prepare uma corveta leve. Se eles já zarparam, podemos alcançá-los pelo mar.

Montaram sob a marquise. A chuva fazia pequenos estalos no metal das armaduras. Rash puxou o capuz; hesitou:

— Preciso dizer… Tive um breve contato com Cecilia anos atrás.

As rédeas rangeram nas mãos de Smael. O nome era um sussurro proibido fora da alta corte.

— Onde ouviu isso? — A ponta da espada ergueu-se.

— Foi antes da guerra de Emera. Nada que eu possa explicar agora. — O tenente sustentou o olhar. — Se me deixar chegar vivo a Velaris, conto tudo. Palavra de soldado.

— Palavra de soldado vale sangue. — Smael abaixou a ponta, mas o olhar continuou afiado. — E eu cobrarei cada sílaba.

A porta de carvalho se fechou. Lá dentro, o sangue de Darius continuava seu pingar lento, marcando um tempo que ninguém mais ouviria.

No exterior, sinos de vigília anunciaram a hora mais funda da noite. Os corcéis dispararam pelas pedras molhadas; lanternas balançavam como luas tortas, projetando sombras que dançavam entre as fachadas. Acima, nuvens negras abafavam até a lembrança das estrelas.

No peito de Smael, a decisão virou mantra a cada galope:

"Meu irmão não vai morrer nesta caçada."

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