Volume 1
Capítulo 17: Quatro Noites Até Velaris
O rasgo do remo no mar ecoava como ferida aberta na madrugada. Cada braçada arrancava um gemido novo de alguma parte do grupo — ora o estalo surdo das costelas de Gabi, ora o chiado agudo do braço engessado de Liam batendo contra o casco, ora o latejar mudo no ombro recentemente recolocado de Lucan. Já Icarus, mãos frágeis, sentia as palmas em carne viva, mas não ousava soltar o ritmo.
O Cais‑Fantasma sumira atrás deles fazia horas. Ao norte, falésias de rocha negra apareciam de relance quando a lua mortiça de Noctus escapava das nuvens. Entre as pedras, lanternas imperiais riscavam feixes dourados, vasculhando enseadas. Um único clarão bastaria para denunciá‑los.
— Primeira regra: não falar alto — sussurrou Lucan, quebrando o próprio silêncio. — Segunda: se ouvir chifre de vigia, remos na água e respirem sob a lona. Sem discussão.
Gabi, pálida, apertava o punhal contra as costelas como se a lâmina pudesse costurá‑las de volta. Um filete vermelho escorria pelo cós da túnica, misturando‑se ao sal. Todas as três ou quatro bacoradas, ela soltava um sopro engasgado. Liam forçava o remo com a mão boa, mandíbula cerrada, olhos semicerrados de febre. Icarus notou a tala improvisada afrouxar‑se.
— Vai abrir o corte se continuar assim — arriscou, em voz de sopro.
— Ainda não morreu ninguém de remar demais — cuspiu Liam, mas o tremor na voz o denunciou.
Lucan girou ligeiro sobre o banco: — Troca comigo, soldado. Mantém o leme enquanto eu tomo o remo dele.
Liam rosnou um protesto, mas obedeceu, deslizando para a popa. Lucan sentou‑se e puxou o remo sem reclamar; o ombro estalou alto demais. Icarus sentiu uma fisgada de culpa — e respeito. Como suportava aquilo?
Quando a lua subiu ao zênite, o mar se deixou embalar por um silêncio tenso. Foi então que a pele de Lucan começou a sangrar sozinha — bem no antebraço direito, linhas finas brotando como arranhões vermelhos. Ele largou o remo, imóvel, enquanto as linhas se juntavam, traçando caracteres miúdos que só pararam quando o recado se completou: “EXTRAI – HÍBRIDO – VIVO – CÓDIGO 23”.
Liam arregalou os olhos, esquecido da dor. Gabi mordeu o lábio ao ponto de quase rasgá‑lo. A mensagem permaneceu pulsando por dois, três segundos… e então a pele cicatrizou num sopro, deixando apenas leve vergão rosado.
Icarus engoliu em seco. — O que diabos foi isso? Magia de Seraphine?
Lucan retomou o remo como se nada tivesse acontecido. — É o Traço de Hemascriptor. Só a elite da Ordem da Prata recebe. Sangue traz ordens codificadas; se você ainda vive quando chegam, lê. Se está morto, tanto faz.
— Isso não… dói? — Gabi perguntou, a voz rouca.
— Dói como agulha na alma — admitiu Lucan. — Mas acostuma.
Gabi passou as costas da mão pela boca, limpando sangue. — Eles querem extrair o Icarus. Mas… como Abhadia sabe que ele está conosco?
Um silêncio pesado desceu. O mar parecia prender o fôlego junto com eles. Por fim, Lucan ergueu o olhar para o céu fosco.
— Provavelmente os infiltrados da Companhia Negra de Vardek. Abhadia tem olhos em toda parte. Até dentro de ordens mercenárias vendidas ao Imperador.
Liam resmungou entre dentes cerrados: — Esses cães vendem informações pelo preço de um cantil.
Icarus sentiu o coração disparar. — O que eles querem comigo? Por que valho essa caçada?
Gabi desviou o olhar para o mar. Liam concentrou‑se no leme, o rosto numa máscara endurecida. Lucan apertou o remo até os nós dos dedos ficarem brancos, mas nenhuma palavra saiu.
O silêncio que seguiu falou mais alto que qualquer resposta.
NOITE Ⅰ
O bote aproximou‑se de uma enseada protegida por rochedos altos. Pena de gaivota nenhuma soprava; não havia gaivotas em Noctus. Só o sibilar distante das bexigas‑lanterna — lâmpadas suspensas nos penhascos, balançando com o vento, marcando trilhas de patrulha.
Lucan encostou o casco na pedra lisa. — Dormimos três turnos, um vigia. Quatro noites até Velaris, se o mar ajudar.
Ninguém discutiu. Gabi estendeu um poncho sobre o ombro de Icarus — proteção mínima contra o orvalho frio. — Você rema amanhã — murmurou, antes de desabar numa tosse funda.
DIA Ⅱ – Água, Prata e Medo
Ao amanhecer, a luz artificial de balizas costeiras tingia o mar de laranja‑fúnebre. O vento engrossou, levantando borrifos gelados que castigaram os rostos febris. Liam, febril de verdade, tremia tanto que Lucan precisou amarrar o remo à sua mão para não perdê‑lo. Entre cada onda, a mesma visão: falésias com guarnições de arbalestas voltadas para o mar, mercadores de olhos penetrantes, estandartes negros do Império tremulando.
Uma vez, sons de sinos de alarme explodiram ao longe. O grupo gelou. Dois navios de proa afiada rasgaram o horizonte, velas sombrias, rumo sul. O bote se enfiou atrás de rochas, quase virando. A embarcação passou, indiferente, mas o medo ficou.
— Se nos avistam, não há fuga — sussurrou Lucan, suor frio grudando nos cílios. — Sem remos, sem força, sem deuses.
NOITE Ⅲ – Carne e Memórias
A ração acabara. O grupo roía tiras de peixe cru arrancadas do mar à pressa; o sal fazia Gabi gemer. Icarus partilhara o último gole de vinho medicinal. Quando, enfim, os outros afundaram num sono febril, Lucan fitou o antebraço, temendo novas letras. Nada.
Ele então voltou‑se para Icarus. O jovem tremia de febre, mas as mãos — rasgadas até a carne — ainda firmavam o remo. Remara mais do que todos, impulsionado por uma força que excedia a de um humano comum, mas o corpo feria‑se como sangue quente, não como o aço frio dos vampiros de linhagem pura.
Lucan sentiu uma pontada de culpa: pela missão, pelo silêncio, pelo peso que despejara nos ombros do garoto.
— Você não pediu pra nascer assim — murmurou, voz baixa. — Eu escolhi pegar em armas; você só tenta sobreviver.
Icarus entreabriu os olhos, pálido. — Você sangra por ordens. Eu sangro por existir… Não sei qual é pior.
MADRUGADA Ⅳ – Vigia de Velaris
No primeiro clarão roxo de lanternas‑torre, a silhueta colossal de Velaris Noctem surgiu como muralha contra o céu escuro: torres de doca, guindastes, centenas de fogos quentes. Quatro dias haviam passado como séculos.
Mas a cidade também era uma armadilha iluminada: cada luz um olhar, cada grua uma garra. Navios de patrulha costuravam a baía. Havia uma trilha de espuma luminosa que marcava o canal principal; entrar ali seria suicídio.
Lucan apontou para o flanco oeste, onde um esgoto pluvial cuspia água negra direto nas fundações da cidade.
— Entrada clandestina. Daqui, seguimos a pé pelos condutos até o bairro dos estivadores. Se acharmos contrabandista de palavra, pode nos esconder.
Gabi tossiu sangue fresco no punho. — Ou entregar por dez moedas.
— Temos uma noite pra descobrir — disse Liam, febril, mas teimoso. — Ou cair mortos antes.
Quando o bote fez menção de cortar para a sombra dos penhascos, a pele de Lucan voltou a rasgar texto. Três palavras apenas: “Smael — Chegando — Amanhã”.
O rapaz prendeu o fôlego. Smael, o Messor, rastreava‑os pessoalmente.
Lucan não mostrou o braço aos outros de imediato. Mas Icarus percebeu o brilho recém‑aberto: — Más notícias?
Lucan respirou fundo, cobrindo o antebraço. — A pior patrulha imaginável. Chega ao amanhecer. Isso nos dá… horas.
Gabi apertou o punhal contra o peito, ofegante; Liam xingou em voz rouca. Icarus sentiu um calafrio — como se respondesse ao próprio nome Smael.
— Então é por aqui — concluiu Lucan. — Depois desse arco de pedra, entregamos o bote ao mar e viramos ratos de túnel.
— Ratos machucados — corrigiu Gabi, mas os olhos dela ardiam numa chama cautelosa.
Entre correntes quebradas e espuma de esgoto, o bote raspou a boca da galeria. O choque despertou dor nova em cada músculo. Mas ninguém reclamou.
Lucan saltou, sangue escorrendo do tornozelo torcido. Puxou Gabi, que rangeu os dentes até quase cuspir. Icarus ajudou Liam, o braço engessado balançando como peso morto. Então, juntos, empurraram o bote de volta à corrente, onde virou e afundou — prova apagada.
Silêncio. Escuridão fedendo a lodo e ferrugem. Velaris rugia acima como fera enjaulada.
— Quatro dias atravessando o ventre do Império para acabar num intestino de pedra — resmungou Liam.
— Intestino leva à saída — rebateu Lucan, tentando humor e falhando.
O eco das passadas vacilantes sumiu nos túneis. Atrás deles, o mar fechou‑se sobre o bote afundado. À frente, o labirinto de Velaris Noctem — a próxima chance, ou o derradeiro fim.
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