Volume 1

Capítulo 16: Hora Primeira

O corredor que levava ao Grande Salão de Noctus parecia mais estreito naquela madrugada. Tochas crepitavam, projetando sombras vacilantes sobre brasões talhados em obsidiana; o tapete rubro amortecia passos e vozes, mas não o peso das culpas. Smael Karlai avançava com a coluna rígida, a mão firme sobre o punho da espada cerimonial. O mármore gelado atravessava as solas, subindo-lhe pelas pernas — um arrepio que não vinha do frio, mas da ausência de seu irmão.

Na penumbra adiante, uma lâmina prateada rodopiou, refletindo o fogo. Seraphine Makai, Quarta Messor, recostara-se a um pilar como uma escultura que ganhara vida só para atormentá-lo.

— Nervoso, Sentinela? — ela perguntou, fazendo a adaga dançar entre os dedos como se fosse uma moeda. — Ou está correndo para esconder o fiasco de ontem à noite?

— Vou ao salão. Abra caminho — respondeu Smael, controlando a pulsação.

Seraphine deu um passo, bloqueando-o. O metal frio arranhou a fivela da armadura e soltou um estalo agudo; faíscas minúsculas subiram com cheiro de ferro queimado.

— Claro. Imagino que queira ouvir o que vão decidir sobre o híbrido.

Ele manteve o tom firme: — O nome dele é Icarus.

— Icarus… meio Karlai, meio algo mais. — Ela chegou tão perto que o hálito gélido roçou a pele de Smael. — Engraçado como certas verdades se perdem nos registros do clã. Reza a lenda que vocês nem compartilham a mesma mãe. — O sussurro desceu para veneno. — Talvez teu pai colecionasse segredos mais bem guardados que cofres imperiais.

A lâmina avançou um centímetro; um filete de sangue escorreu. “Se ela quisesse, minha cabeça já estaria no chão — relampejou na mente de Smael, mas ele não cedeu. Dava-lhe até para sentir o rubor quente no rosto dela — excitação ou desprezo, difícil saber.

As portas colossais rangiam logo adiante, liberando o burburinho impaciente do conselho. Seraphine recolheu a adaga, limpando o sangue no próprio polegar.

— Vamos, irmão ciumento. O banquete de acusações está servido.

O Grande Salão engolia sons e vontades. Candelabros negros balançavam acima; o mosaico do dragão autodevorante ardia sob o fogo.

No trono de granito, Imperador Cassius Adrian mantinha a máscara altiva; apenas o polegar traía inquietude, girando o anel de rubi que recebera de Hécate. A promessa pairava: “Proteja meu tesouro.”

Smael aproximou-se do semicírculo de cadeiras. Uma pontada de pavor o atravessou: o olhar de dezenas de aristocratas fixo na fratura da sua armadura. Sangue pingou do corte que Seraphine abrira e tingiu o mármore. Cassius percebeu — os olhos dele se estreitaram, não de reprovação, mas de preocupação silenciosa. Smael inclinou ligeiro a cabeça, envergonhado por levar aquela vulnerabilidade à presença imperial.

Nortumbrius, chefe de inteligência, encerrou o relatório:

— Icarus Karlai escapou pela ala leste. Guardas mortos. Rastro aponta para túneis antigos. Há sinais de envolvimento externo da… Ordem da Prata.

A palavra caiu como faísca em pólvora. Murmúrios explodiram.

— Ordem da Prata? — Seraphine levou a mão ao peito com ironia. — Aqueles fanáticos humanos que ousam profanar Noctus com símbolos prateados? Dizem que seguem um tal de Lucan. Nome bonito… e assustador para quem entende o que ele já fez.

Smael sentiu o gelo da responsabilidade penetrar até os ossos. Sabia que Lucan era lenda viva nos círculos clandestinos — agora carregava o irmão como refém ou aliado.

Berion golpeou a mesa:

— Cada minuto fortalece invasão. Votemos a Carta Rubra!

Plastissax, segundo Messor, apoiou-se na bengala, voz grave:

— Matar às pressas gera mártires. Vivo, o garoto demonstra que nossa lei subjuga até lobos de prata.

Krista ergueu o pergaminho:

— E honra quem defendeu estas muralhas. Hécate tornou-se escudo contra os Vaikes quando ninguém ergueu espada. Trafegar sobre seu nome com botas sujas será lembrado.

As vozes se elevaram. Ao centro, o Imperador observava Smael: sangue ainda gotejava; o Sentinela não desviava o olhar — havia fogo e medo em partes iguais. Cassius inspirou — o rubi do anel cravou-se na pele. "Se eu me dobrar ao clamor, traio meu amigo; se o ignoro, inflamarei o senado". O dilema durou um suspiro.

Ergueu-se; a capa absorveu a luz.

— Sete dias. Smael Karlai liderará a busca. Tragam Icarus vivo. Falhem, e votaremos a Carta Rubra — e eu assumirei o peso.

O silêncio descido era tão denso que as chamas pareciam conter o crepitar. Seraphine sorriu, saboreando a contagem regressiva. Tambores anunciaram a Hora Primeira. Cassius, entretanto, manteve os olhos no Sentinela ferido — um gesto quase imperceptível de encorajamento.

A lua pintava Tenebris de prata. Na varanda norte, Smael apoiou-se no parapeito, tocando o ferimento. As mãos tremiam; não apenas pela dor física, mas porque o peso da ordem imperial lhe esmagava o peito.

— Medo não te torna fraco — disse uma voz rouca.

Plastissax surgiu, capa chicoteando. Bateu a bengala no chão; o som reverberou. O cabo era de alvo marfim, mas a haste mostrava lascas antigas — lembrança física de uma batalha.

— Esta bengala? — o Messor adiantou-se ao olhar curioso. — Hécate me deixou assim, décadas antes de Cecilia entrar na vida dele. Duelo bobo, noite sombria. Eu quis prendê-lo por insubordinação; ele quase me partiu em dois. Desde então, piso mais devagar.

Um sorriso seco.

— Dizem que Cecilia foi a única corrente que segurou o dragão dentro dele. Se ela estivesse viva, nenhum daqueles senadores ousaria pedir a cabeça do filho.

Smael apertou a borda de pedra.

— Então por que ajuda Icarus? Não era inimigo do meu pai?

Plastissax abriu o sobretudo, puxou um mapa amarelado.

— Porque feri seu pai e fui atacado por sua honra. Débitos se pagam. E também — apontou a perna — prefiro compensar na próxima geração. Além disso, Seraphine mudou quando Cecilia morreu; perdeu o senso de limite. Se alguém descobrir o que realmente aconteceu naquela noite, talvez entenda a fome que a consome agora… mas só ela pode contar essa parte.

O vento arrepiou Smael.

— Preciso de tudo o que tiver.

— Trilhas antigas. — O Messor estendeu o mapa. — Drenagens pré-imperiais; saídas aqui, aqui e sob os rochedos. Quase ninguém vivo conhece. Lucan vai usá-las.

Smael recebeu o tecido; manchas escuras lembravam sangue já lavado muitas vezes.

— Perguntará por que confio o segredo a quem sangra? Simples: quero ver se teu aço canta… ou racha. — Plastissax tocou o peito de Smael duas vezes, como martelo testando lâmina. — E, se falhar, não serei eu quem contará ao Imperador que a promessa dele foi em vão.

— Se eu falhar, decretam a morte dele. Se voltar só com corpo, falhei igual.

— Então não falhe. — Plastissax virou-se, mas completou: — Se quiser, busque “Cecilia” nos arquivos vedados de Narathia. Ali jaz a razão do veneno que entope metade do conselho.

Desceu a escadaria; cada batida da bengala soava como tique-taque. Smael respirou fundo; bateu o punho no peito, selando a promessa silenciosa.

Lá embaixo, barcos de patrulha cruzavam o rio; bandeiras negras de Noctus abanavam, sinal de que a fuga já atravessara fronteiras. A garoa começou — fina, gelada — como se o próprio Tenebris subisse em névoa.

Smael prendeu o mapa à armadura. Sete dias para salvar o irmão, confrontar o Lobo de Prata e honrar a promessa que brilhava no anel imperial. Sete dias para expiar a culpa gravada no mármore sob seus pés.

O sino da Torre Carmin tocou de novo, grave, impaciente.
A caçada começara.

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