Volume 1
Capítulo 15: Lucan
A chuva descia em lâminas frias na cidade Gruta, o distrito mais pobre de Abhadia. Goteiras escorriam dos beirais de zinco, formando rios acastanhados que serpenteavam entre as casas de adobe. Lucan corria pelo beco, sentindo o coração saltar na garganta. Cada respingo parecia gelo na pele nua dos pés, mas ele não podia parar. O quitandeiro, alguns metros atrás, agitava a vassoura como se fosse lâmina de guarda real.
— Ladrãozinho maldito! — vociferou o homem, voz abafada pela tempestade.
"Não vou morrer por três maçãs" repetia Lucan, ofegante, enquanto virava a esquina. Um passo em falso bastou: a sola escorregou, o corpo tombou, e as frutas saltaram do casaco, quicando no paralelepípedo antes de virarem polpa na lama. O golpe no joelho ardeu, mas a dor importava menos que o fracasso. Escondeu‑se atrás de um tonel quebrado; ouviu o quitandeiro amaldiçoar mais algumas vezes, depois o eco dos passos sumiu na cortina de água.
Só então respirou fundo. O peito ardia, o estômago implorava por comida, e a consciência latejava: outra tentativa frustrada, outra surra à vista. Tentou esquecer. Levantou‑se devagar, abriu espaço entre os caixotes—e avistou um reflexo prateado junto ao meio‑fio. Ajoelhou‑se. Entre pedrinhas soltas e musgo, havia uma moeda de prata autêntica. O metal, frio e pesado, reluzia mesmo sob o céu cinzento. Engoliu em seco.
"Vale pão por uma semana… talvez mais." Cinco palavras que acenderam esperança, mas logo o coração bateu diferente. Era o seu aniversário: quatorze anos contados em marcas roxas no braço. Por mais tolo que parecesse, quis acreditar que aquela pequena prata era um presente do acaso. Limpou‑a nas calças e guardou‑a sob a camisa rasgada.
Se corresse, talvez o pai não notasse o cheiro de derrota. Ajustou o capuz e tomou o caminho de casa. As ruas tortas de barro afunilavam‑se, cheias de jornais empapados e ratos boiando como gravetos. O portão de madeira rangia sempre que empurrado; desta vez, Lucan sentiu o peso do silêncio antes mesmo de entrar.
A lamparina da sala estava apagada. O gotejar contínuo no balde do canto criava um tic‑tac lúgubre. Inspirou fundo.
"Mãe deve estar na cozinha."
— Mãe? Voltei…
Nenhuma resposta. O frio da água parecia seguir‑lhe até a espinha. O corredor exalava mofo e ferrugem. Cada passo roucamente ranger de piso. A porta do quarto estava entreaberta, um feixe de luz cinza atravessando a penumbra. Empurrou‑a.
A visão roubou‑lhe o ar: a mãe pendia de uma viga, o lençol torcido no pescoço. O corpo balançava levemente, guiado pela corrente de ar da janela quebrada. Um filete d’água descia do vestido, desenhando trilha marrom no assoalho.
"Isso não está acontecendo." O mundo oscilou. Deu meio passo, sentindo o estômago virar. Baixo, um papel amassado rangia sob o peso do pé. Pegou‑o com dedos trêmulos. A tinta borrada formava uma única sentença:
Você devia fazer o mesmo.
A frase latejou como punhal. "A culpa é minha?" O peito apertou. "Se eu tivesse conseguido comida…" O quarto girou numa espiral sufocante. O barulho da porta da frente explodiu no corredor—o pai chegara.
Garrafas tilintaram. Passos pesados. Lucan enfiou o bilhete no bolso; não sabia por que o guardava, só sabia que não queria deixá‑lo ali.
O pai surgiu no batente, encharcado, olhos vermelhos de vinho barato. Fitou a cena um segundo — a sombra da mulher, o filho parado — e o rosto degenerou numa máscara de ódio.
— O que fez? — cuspiu, lançando a garrafa que se estilhaçou contra a parede.
Lucan ergueu as mãos, hesitante.
— Eu… eu acabei de chegar. Juro!
Não houve julgamento. O punho do homem acertou‑lhe a têmpora. Luz branca. O pai agarrou‑o pelo colarinho, sacudiu‑o com força.
— Sempre você! Azar! Peso morto!
Lucan protegeu a mão que ainda guardava a moeda. Outro soco na costela; o ar fugiu dos pulmões. Entre imprecações confusas, o pai arrastou‑o pelo corredor e empurrou‑o para a rua, atirando‑o contra o degrau. A chuva o recebeu com montanhas de água gelada; o gosto de ferro invadiu‑lhe a boca.
Mancou, tentando manter‑se de lado. O pai cuspiu:
— Apodrece aí!
Quando a silhueta dele se perdeu na tempestade, Lucan encolheu‑se. Sangue e chuva misturavam‑se, formando riachos vermelhos. O bilhete queimava dentro do bolso. "Você devia fazer o mesmo." Palavras transformadas em comando. Fechou os olhos. O frio adormeceria tudo em poucos minutos... mas sentiu a prata contra a pele: fria, firme, viva. O metal parecia pulsar, lembrando‑o de que estava, ainda, no mundo dos que respiram.
"Se eu morrer, ninguém saberá que lutei." Apertou a moeda até a borda ferir a palma
Passos ritmados romperam o tambor da chuva. Dois vultos aproximaram‑se, lanternas acesas.
— Quase meia‑noite — resmungou uma voz masculina. — Não devia ter ninguém.
— Sempre tem alguém esquecido — respondeu uma voz feminina.
Luz tremulou na parede. Lucan ergueu a cabeça o bastante para ver uma silhueta ajoelhar perto dele. O lampião revelou um rosto anguloso, pele morena, olhos castanhos avaliando rápido ― e a tatuagem de cobra azul‑escura descendo da têmpora ao maxilar. O capuz pingava, mas ela não hesitava.
— Respira devagar. Nome?
— …Lucan — tossiu.
— Yara. E ele é Kael. — Apontou o loiro rígido, mão na guarda da espada. — Quem te deixou assim?
— Meu pai.
Yara passou o cobertor pelos ombros dele. Tentou erguê‑lo. Lucan travou.
— Não adianta — murmurou, a voz falhando. — Não tenho mais nada. Ela… — apontou o bilhete amassado — ela se enforcou no meu quarto. Disse que eu devia fazer o mesmo. Não sobrou motivo.
Kael prendeu a respiração; Yara esticou a mão, exigindo o papel. Ele o entregou. A capitã leu, o olhar endurecendo. Dobrou‑o com cuidado e devolveu.
— Escuta — disse, voz baixa, firme — há duas saídas nesse beco: o chão, onde você sangra devagar, e a estrada, onde você sangra lutando. A vida não pede licença; também não devolve o que tomou. Mas se você desistir, a voz dela vence, e o velho vence, e qualquer homem que acredite que crianças nascem para apanhar vence.
Lucan fitou os olhos cor de terra dela. A chuva continuava, mas ali, entre eles, o ar ficou pesado de outro tipo de silêncio.
— Eu não consigo — sussurrou. — Eu… nem sei por quê.
— Então empresta meu motivo. — Yara segurou a moeda sob a camisa dele. — Prata é luz condensada. Guarde‑a e lembre-se: o mundo tenta roubar brilho de quem nasce na lama. Você pode dar a ele exatamente o que ele espera—ou pode erguê‑la amanhã ao sol.
Kael soltou o ar devagar.
— Capitã…
— Levanta, Lucan. — o tom dela cortou como lâmina — Pés firmes, coluna reta. Se quer morrer, deixe para outro dia; hoje você caminha, nem que seja arrastado.
A dureza na voz não escondia a mão quente que o puxava. Lucan tremeu, mas se levantou. Cada passo rugia nos ossos, porém a moeda parecia mais pesada—ou mais viva.
— E se ele me encontrar? — arriscou, já nos paralelepípedos largos.
— A Ordem da Prata não teme pais covardes — Kael respondeu.
— E se eu fracassar de novo? — a voz dele quebrou.
Yara parou sob um archote.
— Fracasso é obrigação de quem tenta. Só não some. — E o olhar dela pousou duro sobre ele — Negar a própria vida seria o único erro imperdoável.
Lucan inspirou o cheiro do archote — óleo, madeira e promessa. Permitiu‑se acreditar.
No posto avançado, o caldo queimou-lhe a língua, aquecendo tudo que parecia cinza. Yara aguardou até o copo esvaziar.
— Vai treinar. Vai odiar. Vai querer fugir. Mas, um dia, haverá alguém caído numa sarjeta e você vai lembrar desta noite. Se nessa hora recuar, então sim, ela terá morrido à toa.
Lucan sentiu as palavras como lascas de pedra desgastando culpas antigas. Puxou o bilhete, entregou‑o.
— Guarde. Não quero ler de novo.
— Nem vai precisar — ela disse, guardando o papel no bolso da armadura. — Escreveremos outra história por cima.
Um sorriso quase imperceptível ergueu o canto da boca dele. As costelas doíam menos; ou talvez o futuro doesse mais que o presente. Yara indicou a rede no dormitório. Lucan se deitou, fechou os olhos. As memórias da mãe pingavam, mas a última imagem não foi o lençol na viga; foi a prata na mão dele, refletindo um fogo que ainda não vira o sol.
"Desculpa, mãe. Amanhã eu me levanto."
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