Volume 1
Capítulo 14: Um Plano
O mofo úmido do corredor engoliu o último sopro de ar do templo quando Lucan empurrou a porta de pedra. A passagem revelou um túnel baixo, revestido por tijolos tão velhos que se desfaziam em poeira cinzenta ao menor toque. Um vento frio soprava de baixo para cima, trazendo cheiro de sal e enxofre — sinal de que as galerias terminavam em algum ponto sobre a Fenda do Penhasco.
Gabi foi a primeira a entrar. Cada passo arrancava‑lhe um sussurro dolorido das costelas quebradas, mas o punhal continuava firme na mão. Liam vinha logo atrás, o braço engessado numa tala feita com flechas partidas e tiras do estandarte imperial. Icarus fechava a marcha, tocha erguida; a chama vacilante projetava serpentes de sombra nas paredes.
Lucan seguiu por último, Veritas ainda manchada de negro. O ombro recém‑recolocado latejava, mas ele não demonstrava. Quando a porta deslizou, selando o santuário atrás deles, o corredor mergulhou num silêncio reverente — como se qualquer palavra pudesse acordar fantasmas nos tijolos.
Logo o túnel se alargou numa antiga galeria de drenagem. Tubulações enferrujadas corriam sobre as cabeças, pingando água turva em sinfonia irregular. Raízes grossas irrompiam entre as pedras, prova de que, mesmo em Noctus, alguma forma teimosa de vida vegetava longe do sol.
— Fiquem na margem seca — murmurou Lucan. — O canal pode ceder.
Gabi ergueu a tocha, iluminando mosaicos partidos no piso. Nas figuras, vampiros em armaduras arcaicas perseguiam humanos ajoelhados. Ali, a história estava rachada, pisoteada, coberta de limo. Icarus sentiu uma fisgada: possivelmente aquele corredor fora rota de escravos. "Para onde os levavam?" O arrepio que subiu pela espinha respondeu antes da razão: às profundezas.
Um reflexo metálico dançou na água mais adiante. Lucan ergueu a mão, exigindo silêncio. Dois fachos de lanterna surgiram no túnel transversal — patrulheiros imperiais. O grupo se espremeu num dreno lateral, água fétida até os tornozelos. O som abafado de botas e vozes ecoou por longos segundos, depois sumiu. Quando voltaram à galeria, Icarus notou que Veritas, embainhada, vibrava baixinho como se quisesse sangue.
— Micro‑reversão, como você diria — sussurrou Liam com humor sombrio.
Lucan fez um gesto para avançar.
O corredor desembocou num átrio circular sustentado por colunas rachadas. No piso, um alçapão de ferro — redondo, com barras cruzadas — selava a descida final. Não havia dobradiças visíveis; apenas um aro grosso cravado no granito, preso por doze trancas radiais cujas runas anãs brilhavam num azul apagado.
Lucan ajoelhou‑se junto ao aro. A cicatriz em forma de rosa, em seu pulso esquerdo, ardia em carmesim, pulsando no mesmo ritmo das inscrições na lâmina de Veritas.
— Está queimando? — sussurrou Icarus.
— Seraphine marcou‑me com isso — respondeu Lucan. — Coleira mágica. Ela sente quando meu sangue ferve, mas não a direção.
Ele encaixou a ponta de Veritas numa fenda entre duas barras, tentando forçar a tranca principal. O metal gemeu… e travou. As runas nas trancas piscaram, repelindo a lâmina.
— Bloqueio de matriz tripla — resmungou Lucan. — Trabalho anão.
Icarus ajoelhou‑se ao lado dele, os olhos percorrendo os glifos quase invisíveis no aro. — Geometria prime‑espiral … números, não força. Dá licença?
Lucan recuou, surpreso. Icarus estendeu a mão para Lucan.
— Posso? Preciso da espada e… daquela pedrinha de sílex — indicou um fragmento caído perto do aro.
Lucan entregou Veritas com relutância. Icarus apoiou a lâmina rente às trancas radiais e, com o sílex, golpeou o gume em ângulo. Faíscas saltaram e ricochetearam nas runas apagadas. À terceira batida, partículas incandescentes aderiram aos glifos, revelando linhas geométricas ocultas que brilharam como teia de estrelas.
— Treze… oito… cinco… três… — murmurou, lendo o padrão Fibonacci que se formava. — Inverso de Pitrel, então.
Usou o polegar para tocar três pontos equidistantes, mas em sequência decrescente. Um estalo seco percorreu o aro: cada tranca recuou um dente. Um segundo gesto, e todas deslizaram para dentro. O alçapão ergueu‑se meio palmo, liberado.
Gabi assobiou. Liam ficou boquiaberto. — Se não fosse meu arco, apostava que era magia.
Lucan pousou a mão no ombro de Icarus, impressionado. — Lembre‑me de nunca apostar dados com você, garoto.
Icarus apenas deu de ombros. — Matemática abre mais portas que espadas.
Com um empurrão coletivo, ergueram o alçapão; um sopro de ar salgado e escuro subiu das profundezas, convidando‑os a descer.
Quatro lances de escada. Tijolo, pedra bruta, rocha úmida. O rugido do mar ecoava como se um deus respirasse na garganta de pedra.
No último patamar, a escada abria num balcão natural sobre a Fenda do Penhasco. Lá embaixo, o mar girava num redemoinho branco. Névoa fria subia e molhava os rostos.
Vigas partidas saltavam das paredes opostas. Correntes grossas sustentavam plataformas corroídas — antigo elevador de carga, agora rangendo ao vento.
— Patrulhas não descem — disse Lucan. — Mas se alguém cair…
— Vira história — completou Gabi, chutando uma pedra que se perdeu no redemoinho.
Lucan testou a primeira plataforma; o metal gemeu, mas aguentou. Fez sinal e Gabi avançou devagar. Liam, apoiado em Icarus, pulou para a segunda prancha. Icarus foi o último. A brisa ascendente quase apagou a tocha; o vórtice rugia, chamando como voz de abismo.
No meio da travessia, gotas de suor desceram pelo elo de uma corrente. Um parafuso ganhou vida, rodopiou, caiu rumo ao redemoinho cheio de fome. A plataforma de Gabi perdeu vinte centímetros de altura. Gabi cravou o punhal; Liam lançou a mini‑corda; Icarus contrapesou a tocha; Lucan incentivou em voz firme. Depois de segundos que pareciam horas, o elo parou de ceder. O metal, porém, continuou rangendo na brisa como aviso terrível.
Chegaram à borda oposta ofegantes. Lucan puxou a corda final, deixando as plataformas bambas — perseguidor nenhum passaria sem reconstrução.
Um túnel natural levou a uma porta de bronze semicircular, brasão imperial apagado. Lucan deslizou os dedos pelas runas oxidadas.
Ele acionou o painel oculto… nada. As runas piscaram, falharam. — Trancada por dentro, como eu temia.
Icarus avançou, ainda poupando o ombro de Lucan. — Mostra de novo o painel.
O jovem examinou o mecanismo, os olhos verdes percorrendo símbolos quase invisíveis. — Sequência prime‑espiral. Foi corrompida — explicou. Tocou o pulso, extraiu uma gota de seu sangue híbrido e deixou cair sobre a fechadura. O líquido deslizou, reagiu às inscrições, e a porta exalou um clique suave.
As travas se retraíram; a folha de bronze abriu‑se devagar. Lucan ergueu as sobrancelhas, genuinamente impressionado.
— Como…?
— Meu sangue contém duas frequências vitais — disse Icarus, limpando a mão. — O sistema lê como ‘permissão imperial’ e ‘matriz humana’. Curioso que ninguém tenha pensado nisso antes.
Gabi empurrou‑o de leve no ombro bom. — Foi a coisa mais estranhamente brilhante que já vi.
Além da porta, plataformas de pedra avançavam sobre mar aberto. Pequenos botes de fundo chato balançavam nas estacas, cobertos por lonas. O cheiro de sal, algas e óleo velho dominava o ar.
— Cais Fantasma — anunciou Lucan. — Fim dos túneis, começo da costa. Essas canoas não cruzam o Mar do Olho Torto. Precisamos de um navio de quilha profunda em Velaris Noctem.
— Isso fica cinquenta quilômetros ao norte! — protestou Gabi.
— Cinquenta de enseadas e falésias — corrigiu Lucan. — Quatro ou cinco noites remando, escondidos nos recifes. Melhor que voltar pro cadafalso.
Lucan testou o primeiro bote. — Dois remos de cada vez, silêncio total nos promontórios. Viu luz, sinaliza… — levantou Veritas — e corto o mastro deles.
Icarus inspirou o vento salgado. Seraphine poderia caçá‑los, mas pela primeira vez via o mar aberto. — Primeiro Velaris, depois o mundo — disse, ajudando Gabi a embarcar.
— E desta vez, garoto, você rema — brincou Lucan.
Quando soltaram as amarras, os remos cortaram a água negra sem ruído. As palmas de Icarus ardiam; o ombro de Gabi latejava; Liam tremia de esforço; Lucan mastigava a dor no próprio braço. Ainda assim, nenhum reclamou.
Na superfície, o reflexo da lua pálida de Noctus desenhava uma estrada prateada apontando ao norte — direto para Velaris Noctem.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios