Volume 1
Capítulo 21: Dívida do Psicopata
A madrugada pingava frio sobre o Cais-Leste. Guinchos metálicos guiaram o vento pelos guindastes, mastros batiam num compasso lento, e o cheiro azedo de peixe velho colava nas narinas, como se o porto contivesse a respiração até ouvir o próximo grito.
Entre muralhas de contêineres, Smael Karlai segurava Icarus pela gola, um palmo acima do chão.
Passos rangendo na madeira molhada anunciaram Rash. A névoa partiu-se, revelando-o com Lucan pendendo de um ombro. O capitão respirava em assobios curtos, mas respirava.
Rash largou o corpo a dois passos de Smael.
— Está vivo — informou, sem emoção.
Longe dali, no início da prancha de embarque, Gabi ouviu a frase e gelou; as costelas fraturadas gritaram quando ela girou, mas não recuou — o convés do Sereia Velada estava a poucos metros e a âncora já chiava contra o guincho. Mais perto da confusão, Liam plantou os pés ao lado de Lucan, apoiando o capitão com o ombro que ainda funcionava. O braço direito dele balançava inútil na tala improvisada, mas a mão esquerda agarrou o cabo da espada curta.
Smael soltou Icarus; o híbrido caiu de joelhos, tossindo. A lâmina negra Frey cintilou quando o Messor a ergueu.
— Lobo ferido volta pra morder — murmurou. — Não deixo pontas soltas.
A lâmina desceu num meio-arco. Icarus, puro instinto, travou o punho do irmão; o fio tremeu a um dedo do pescoço de Lucan.
— Smael! — o grito saiu entrecortado, mais súplica que ordem.
Gabi mexeu-se no convés de carga, incapaz de avançar, incapaz de virar o rosto. Os marinheiros em torno dela berravam para soltar as últimas amarras, mas o coração da garota martelava apenas uma pergunta: ele também vai morrer?
Esse instante bastou: Rash mergulhou, cravando a falcata nas costas do Messor. O aço aflorou abaixo da clavícula como língua de prata. Smael rangeu os dentes, mas girou — mão maciça no pescoço de Rash — e atirou o tenente contra toras de madeira. O impacto fez peixe podre e salmoura explodirem no ar.
— Saiam! — soprou, rouco.
Liam não discutiu. — Vamos, garoto — sibilou entre dentes partidos.
Icarus enfiou o ombro sob o braço bom de Lucan; o capitão exalou um gemido rouco, olhos já turvos. Gabi viu-os surgir na prancha. O convés balançou quando o trio pisou a bordo. Ela prendeu um soluço, engolindo o gosto de sangue na garganta.
— Puxa a prancha! — gritou para o imediato.
Smael arrancou a lâmina das próprias costas e cuspiu sangue. Sem perder o foco, atirou um pingente prateado para Icarus.
— Presente da sua mãe. Leva ele e sai daqui — disse, rouco, antes de se virar de volta para Rash.
Liam enganchou Lucan pelos ombros; Gabi ergueu o outro braço. Icarus hesitou.
— Não posso deixá-lo sozinho!
— Ele não perderia essa luta — retrucou Liam, já arrastando o capitão para o Sereia Velada. — Ajuda-me ou todo esse sacrifício vai ser em vão.
Rash cambaleou para fora dos caixotes com lascas presas ao cabelo e sangue nos lábios. O braço esquerdo quase não respondia, mas ele ergueu a falcata. Smael aguardava de pé, respirando com dificuldade; a própria espada girava leve na mão direita.
Rash se abaixou para furar o abdômen. Smael aparou o golpe, usou o ombro para empurrar o tenente e, no embalo, subiu a lâmina, arrancando o cinto de Rash.
O tenente girou alto; Smael mergulhou, espetando o punho na costela já trincada do adversário. O ar saiu de Rash num grunhido.
Fingindo ceder, Rash puxou a falcata num gancho lateral. Smael prendeu o pulso dele, torceu até o metal cair, e fechou a chave de braço que derrubou o tenente no convés.
O Messore fincou o joelho nas costas do outro e encostou a ponta da espada na nuca dele.
— Fim da linha — disse, sem elevar o tom.
— Então acaba logo — Rash arfou. — Mas me deixa falar sem comer madeira.
Smael apertou um segundo — só para mostrar quem mandava — e afrouxou a chave. Arrastou Rash até uma caixa quebrada, mantendo a espada a um palmo do peito dele.
— Fala.
Rash respirou fundo, os olhos seguindo um fio de chuva que deslizava até sua sobrancelha cortada.
— Nas trincheiras — começou, a voz raspando — você não tem nome, só contagem de corpos. Eu era bom nisso. Um dia, Hécate simplesmente atravessou o campo de barro como quem passeasse no jardim. Parou diante de mim e disse: “Você gosta de matar; eu preciso de alguém que mate por um propósito.” Propósito dele, claro.
Smael não se mexeu. A dor pulsava nas costas, cada latejo parecendo puxar a alma por aquele buraco.
— Mandou que eu protegesse o filho dele. Cecília nem havia cruzado teu caminho — Rash deu meio riso; virou tosse. — Ele falava de você. Disse que a missão exigia um cão perigoso, mas obediente. Deu-me patente de tenente, abriu portas, fianças, vício caro, putas caras. Em troca, eu limpava sujeira pra nobreza. Cada alvo indicava o quanto eles confiavam no meu fio.
A espada de Smael desceu um intervalo — não o bastante para libertar Rash de sua mira, apenas o suficiente para ouvir.
— Então por que tentou me matar? — a voz saiu num rosnado baixo.
Rash forçou um meio sorriso que logo virou tosse. Sangue escuro salpicou-lhe o queixo.
— Porque era o único jeito de deixar Icarus escapar sem que o Conselho decretasse sua execução — e, se você morresse, eu morreria pelo pacto.
A sirene de troca de turno arrastou-se pelo nevoeiro; a chuva engrossou, transformando poeira em lama sanguínea.
— Qual é o plano, então? — Smael passou a luva encharcada pela boca.
— Teatro convincente. — Rash apontou o Sereia Velada, que enfim soltava a âncora emperrada. — Se parecer que continuo do teu lado, mandam seis Messores atrás daquele navio. Eles precisam acreditar que atrapalhei tua missão e tentei te matar.
— E essa foi a melhor saída que achou? — Smael estreitou os olhos.
— Cansei das mortes. — O tenente ergueu o olhar para a chuva, resignado. — Paguei minha dívida com Hécate, fiz tudo que quis — o mundo perdeu a graça pra mim.
— Como encerramos isso?
— Com a minha cabeça. Sem corpo, ninguém duvida. Faz limpo.
Por um segundo os dois se mediram em silêncio. Smael sentia o pulso latejar sobre o cabedal da empunhadura, sentia também uma dívida — não de amizade, mas de reconhecimento.
— Já matei muita gente. — Rash sussurrou, lendo a hesitação nos olhos vermelhos do Messor. — Sei quando alguém treme. Não tenha remorsos. O mundo vai respirar melhor sem mim.
Smael inspirou curto; o peito protestou.
— Mas nenhuma das minhas vítimas era meu irmão.
Ele puxou Rash num abraço inesperado. O tenente endureceu, depois relaxou, permitindo que a cabeça repousasse no ombro de Smael. Sob a chuva, o coração do Messor batia forte, insistente, mesmo ferido.
Por um instante, o psicopata sentiu na própria pele o que era compaixão — um espasmo quente cortando o vazio. Olhou para o céu cinzento como quem procura estrelas invisíveis e, pela primeira vez em anos, percebeu que sentia falta de Hécate. Talvez houvesse alguém para reencontrar do outro lado, mesmo que esse alguém não o esperasse.
Smael recuou. Elevou a espada na altura do peito, olhos presos aos de Rash. A chuva cortava a cena em fios prateados. Por um momento, o convés pareceu conter só dois homens e um destino inevitável.
Ele pediu perdão com o olhar. O golpe foi rápido, exato, sem espetáculo. A lâmina atravessou ar e carne; o som seco, quase discreto, afogou‐se no rugido súbito das primeiras ondas que batiam contra a madeira. Rash tombou, inclinado, depois escorregou até se sentar contra a caixa, a cabeça pálida pendendo para o lado — quieto, sem drama. A chuva se encarregou de apagar qualquer brilho indesejado.
Ajoelhou-se, retirou do peito do morto a insígnia de tenente prateada e cortou a mão esquerda que a usava, selando o pulso com ferro ainda quente do lampião caído. Enrolou a insígnia e a mão num pedaço de lona: prova irrefutável para o Conselho.
Olhou a própria mão suja de sangue — dele e de Rash — e soltou uma risada breve, descrente. Protegido até o último segundo pelo homem que jurava ser ausente. Voltou os olhos para o véu de névoa: o Sereia Velada já ganhava calado distância, velas enfim infladas pelo vento.
Relâmpago estourou no horizonte, recortando Smael em silhueta negra. Cuidadosamente deitou Rash numa posição que lembrava descanso, não derrota. Arrancou o anel-selo do tenente e guardou junto à insígnia. Depois, com mãos que tremiam de exaustão, derramou óleo sobre as tábuas e riscou pederneira. A labareda cresceu tímida e lambeu as caixas; perfume de sardinha queimada e madeira antiga subiu no ar.
— Que o Conselho leia essa mensagem — murmurou, mais para o mar do que para os mortos.
Quando o fogo ganhou corpo, iluminou rios rubros que serpenteavam pelas fendas do convés. Smael pressionou o ferimento cicatrizando; ainda respirava. Tinha de respirar — pelo irmão, pelo pai ausente, pela promessa torta de um psicopata que descobrira tarde demais como era sentir algo.
Atrás dele, o convés incendiado rugia ao vento, lançando fagulhas que desapareciam na noite — como juramentos quebrados levados pelo mar escuro.
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